sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Operação Dango...

Dango, Abril de 72 - N'riquinha

A operação tinha um outro nome de código. Mas vamos chamar-lhe por agora “Operação Dango” para melhor a localizar.

Alguns trechos do livro “Capitães do Vento” relativos a essa operação.

Ficamos à espera que o Gabriel Costa nos conte a versão do outro lado da recolha do pessoal envolvido na mesma.


…/… Às duas da madrugada partimos distribuídos por sete viaturas Berliet, mais de metade fornecidas por Mavinga. As da Companhia, uma andava sem problemas, a outra tossia cada vez que o pneu se enterrava mais na areia da picada. A terceira estava de baixa. O percurso até ao objectivo era longo e desconhecido. Demasiado longo como viríamos a verificar depois. A parte que seria feita a pé presumia-se que duraria um dia inteiro de marcha rápida até às proximidades do objectivo. As viaturas tinham que ser deixadas suficientemente longe, a fim de não denunciarem a nossa presença. Partimos cedo na intenção de caminhar logo ao alvorecer, fugindo durante umas boas duas a três horas à inclemência de um sol abrasador que se esperava.

…/… Desembarcamos das viaturas cerca das seis horas. Orientei a minha carta com o auxílio da bússola e tracei o rumo a partir de um azimute previamente calculado.

…/… Depois da minha experiência no norte de Angola, eu ali andava quase de olhos vendados. Em todo o tempo de N’riquinha jamais falhámos um rumo. Na prática, durante os percursos consultava a bússola a espaços apenas para confirmar o que intuitivamente me parecia correcto. Os GE’s confirmam, por conhecimento de séculos de vivência naquela região, que aquela é a direcção certa. Se não o confirmassem eu não teria dúvidas em rever os meus cálculos.

…/… Às 14 horas começa a faltar água, após uma breve pausa para almoçar. O calor era abrasador. Não soprava qualquer brisa. A fraca arborização da savana não permitia trajectos mais frescos. A urgência em aproximarmo-nos do objectivo não sugeria grandes contornos. A velocidade a que nos deslocávamos deixava-nos exaustos e alguns começavam a ficar para trás, obrigando a paragens para recuperação dos menos preparados.

…/… Ás dez horas da noite caminhávamos devagar, apalpando o terreno plano da chana. A noite estava escura. A lua ainda não tinha aparecido. Distinguíamos os nossos vultos mas não os contornos definidos dos nossos corpos. Aquela espécie de monstro alongava-se por mais de trezentos metros de comprido.

De repente, um grito abafado de uma das mulheres que seguia na frente. Largou a trouxa que trazia à cabeça e fugiu em direcção à mata que bordejava a chana do rio. Os três GE’s que iam à minha frente saltaram cada um para seu lado. Ao mesmo tempo senti algo volumoso bater-me nas pernas e, sem compreender o que se passava, saí instintivamente do trilho em que vínhamos.

- Pisámos uma jibóia, meu captão. Schii; era grande mesmo! - Esclareceu um dos GE’s.

…/… Por fim, por volta das nove horas, ordem para parar. Estávamos no local. Tratava-se de uma confluência de um afluente de rio que entroncava naquele ao longo do qual vínhamos desde o dia anterior. As chanas eram muito largas. Os rios corriam estreitos no meio do descampado de capim seco que as formavam.

Segundo as mulheres eram dois acampamentos. Um na margem direita e outro na esquerda daquele afluente. Distavam um do outro cerca de um quilómetro. Conforme vinha planeado, o grupo de Mavinga atacaria o da margem esquerda e nós o da direita. Fora estipulado o local de encontro após o ataque. Os de Mavinga atravessariam o rio mais acima e viriam ter connosco.

…/… O Fulai ia falando com as mulheres que manteve sempre junto de si. Perguntei o que é que elas diziam.

- Elas dizer que guerrilhêro e popração já fugiu tudo! Muitos tropa! Muitos barulho!

…/… E assim foi. Para lá de uma ou outra escaramuça com uma rajada a sobrevoar-nos, dilagramas e umas trocas de tiros de morteiro, a grande operação acabou num fiasco, mesmo com aviões a mergulhar por cima de nós e a lançar foguetes sobre alvos vazios.

Eram ainda as tácticas da 2ª Guerra Mundial em uso no ano de 1972.

Aparentemente, pouco tínhamos aprendido desde 1961. Quer os generais queiram, quer não...

A recolha.

…/… As viaturas tinham já partido de madrugada de N´riquinha para nos recolher. Mas a odisseia daquela operação não estava ainda terminada. Pelas nossas contas o encontro devia dar-se por volta do meio-dia. Às treze nem viaturas nem qualquer ruído longínquo que pudesse significar a sua presença. A impaciência começou a instalar-se. Os GE’s de Mavinga ameaçavam ir a pé até a casa. Uns 120 quilómetros que se dispunham a fazer apenas porque estavam a ficar aborrecidos com aquela estória das viaturas não aparecerem.

…/… Funcionávamos ali como uma espécie de náufragos perdidos em mar revolto à espera de uma ponta de sorte que nos levasse aos salva-vidas que nos procuravam. A DO voltou a levantar de N’riquinha a fim de fazer uma avaliação do desencontro. Do ar era fácil localizar a nossa posição e a das viaturas. Só que a DO não tinha contacto rádio com estas: só connosco.

O Major de operações a bordo do avião viveu uma situação de impotência que o fez desesperar. Como fazer compreender aos das viaturas que estavam a andar mal em relação à nossa localização sem contacto rádio? O avião fazia cabriolas, depois passava muito baixo sobre as viaturas agitando as asas e apontando com o sentido do próprio voo a direcção correcta que as levaria até nós. Mas no chão quem podia compreender isto? Para eles o avião estava a saudá-los e a congratular-se com qualquer coisa que não compreendiam.

Num rasgo de improviso e imaginação lusitana, o nosso Major regressou à N’riquinha e, munindo-se de embalagens de granadas de morteiro 60 meio cheias de areia, voltou lá. Do ar enviou então as embalagens com um pequeno bilhete que dizia: “Sigam a direcção do avião!” Como ainda estavam bem longe de nós, na marcha que serpenteava por entre as árvores alteravam com frequência o rumo certo. A DO voltava a insistir nos voos rasantes redefinindo o rumo certo. O Solnado não teria imaginado melhor uma guerra como aquela. Era um pouco assim a guerra em África, em Janeiro de 1972.

Por volta das quinze horas o encontro deu-se por fim. O pessoal das viaturas vinha com oito horas de marcha e esperava-os outras tantas no regresso, que poderia ser menos moroso uma vez que bastava agora seguir os sulcos dos rodados deixados na vinda, sem preocupações de orientação. Mas a carga era de mais de vinte militares por viatura, mais o armamento e bagagem.

…/… Acomodei-me o melhor que pude procurando o espaço necessário para estender as pernas. Perto de mim encontrava-se um Furriel que tinha vindo na coluna. Procurei indagar como tinha corrido a viagem e as dificuldades que tinham encontrado. Era sempre bom ficar com uma ideia dos problemas para que, se possível, mais tarde não voltassem a repetir-se. Essa era, pelo menos, a minha perspectiva.

Não tinha sido muito difícil fazer a maior parte do percurso porque era tudo plano. Além disso tinha sido recrutado um nativo no aldeamento que dizia ter vivido naquela região anos atrás. Colocado no rebenta minas (parte da viatura sobre o rodado dianteiro) tinha vindo todo o caminho indicando com o braço o rumo a seguir até às nascentes do rio. Cerca de seis horas nesta função, porque a primeira parte do percurso era uma picada já conhecida. Concluíram que, na realidade, não ocorreram desvios no rumo que o nativo veio indicando. A memória daquela vasta região, quase sem pontos de referência, estava-lhe intacta na memória. Apenas ocorrera um curto episódio. O nativo solicitou ao chefe da coluna, se seria possível passar numa determinada árvore e parar por momentos para ele ir buscar uns haveres, que enterrara anos atrás. O Furriel nem queria acreditar. No meio de milhares de árvores, aparentemente todas semelhantes e dispersas numa paisagem monótona como era aquela que se estendia por dezenas de quilómetros, como é que seria possível localizar e identificar uma delas? Pois não se enganou uma só vez. À primeira identificou a árvore e só não recuperou todos os pertences (uns recipientes para água, segundo dizia) porque entretanto a maior parte deles já tinham sido roubados, o que não deixou de ser muito estranho numa zona árida e isolada como aquela. Uma questão a ser dirimida mais tarde com a guerrilha, supõe-se.

…/… Trazíamos apenas cerca de meia hora de viagem. O dia ia ficando cada vez mais escuro à medida que se aproximava o anoitecer. Perto de mim sentava-se o Furriel Leitão do 4º Grupo de Combate. Repentinamente, este colocou-se de joelhos e apontou para fora.

- Está ali qualquer coisa a mexer, diz.

Mandei parar a viatura. Sobressaltei-me. Uma emboscada? De facto, era só o que faltava para rematar aquela sequência de maus acontecimentos. Mandei apear alguns soldados como medida de segurança.

- Não é uma emboscada! Está ali uma coisa a mexer, mas não está escondida.

Mandei o Leitão ao local que distava uns quarenta metros. Voltou trazendo uma criança que aparentava uns seis, sete, anos de idade. Estava nua e tremia tanto que a minha primeira avaliação foi de que se tratava dum epiléptico em plena crise. A criança foi colocada entre as pernas de uma das mulheres capturadas, que a agasalhou com os panos com que se cobria. Continuava com movimentos desconexos e tremores intensos. A mulher aconchegava-o mais. Os seus olhos mortiços muito brancos fitavam-me como berlindes reluzentes desconformes num rosto magro de fome e pouca infância. Fitar-me-ia o caminho inteiro. Com tantas ordens que eu ia debitando apercebeu-se de imediato quem era ali o inimigo mor. Embora óbvio, mandei ao Fulai que perguntasse às mulheres se o conheciam. A criança tinha fugido aquando do assalto e vagueara sozinha perdida durante dois dias e uma noite, até que caíra exausta de fome e frio. A noite tinha sido toda ela de tempestade. Não teria por certo resistido a mais aquela noite, caso o Furriel a não tivesse vislumbrado naquele espaço de mata aberto onde caíra. Éramos a última viatura e ele foi o único que a viu.

Deste episódio houve uma dúvida que sempre me ficou. Quando se agitou era para que o víssemos ou procurava esconder-se? Só o terrível inimigo se fazia transportar em viaturas ruidosas. Só este varria os céus com “modernos” engenhos prateados sobreviventes da 2ª Guerra, roncando e vomitando foguetes de fogo que queimavam cubatas vazias.

Escondia-se, por certo.

Passaram seis viaturas com 120 pares de olhos. Muitos deles especialistas naquele tipo de vegetação e exímios em descortinar o inimigo acoitado. Ninguém o viu. Porquê só o Leitão? Provavelmente uma mão de Deus. Deus a quem na hora questionei com ironia de ateu insolente: mas porquê as crianças, senhor?


P. Cabrita

Dango, Agosto de 73 - Mabubas

1 comentário:

Gabriel Costa disse...

Um dia destes, sim, vou contar o que foi aquela viagem alucinante, com um velho andrajoso, sentado nos sacos de areia do guarda lamas e de mão estendida, ora para a direita ora para a esquerda, colocando-me na rota certa, debaixo de um dilúvio tremendo.