quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O campo de futebol

Equipamento importante existente em qualquer lado. Este, o da Neriquinha viu o seu piso melhorado pela utilização da terra vermelha trazida de outro lado para dar maior consistência à anhara até então usada como pista de aviação e que permitiu a sua promoção a AR (Aeródromo de Recurso).
O verde viçoso ao fundo, realçando o vermelho da pista e do campo de futebol, diz-nos que era a época das chuvas. Durante o cacimbo, a paisagem tinha a cor do deserto.

O jogo de futebol, quebrava a monotonia, reforçava a camaradagem, exercitava os músculos e abria o apetite para o jantar após um demorado duche que nos livrava do pó vermelho entranhado em tudo que era buraco ou refego e transformado em argamassa por efeito do suor.


(Fotografias retiradas da coleção do Vilela)

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

TEMPESTADE NO MATO.

Em plena operação no mato.
A noite parecia calma. O sono tinha-nos vencido a todos por volta das sete, oito horas. Apenas dois militares se mantinham acordados, fazendo os habituais turnos de vigilância, resistindo como podiam à vontade de encostar a arma e fechar os olhos até que rompessem os primeiros raios de sol.
Duas horas da madrugada. Caem alguns pingos de água, antecedidos de um leve murmúrio de vento que agita os ramos das árvores onde nos abrigamos. O céu estrelado minutos antes tornou-se escuro apagando de súbito todo aquele cintilar de milhares de pontos brilhantes que nos serviam de tecto e ao mesmo tempo de uma espécie de jogo de embalar com que nos entretínhamos a esperar o sono, assistindo às estrelas cadentes riscando o céu como balas que nos passavam ao lado naquele jogo de fantasia das noites de relento. O céu no mato tem outro brilho, outro encanto. Tudo parece mais vivo e fulgurante.
A chuva foi engrossando tornando-se diluviana em poucos minutos. O meio sossego de mais uma pernoita a céu aberto foi abruptamente interrompido, obrigando a rearranjos de acomodação (por entre uma outra chuvada, mas de impropérios que amaldiçoavam tudo o que vinha à cabeça e que se nos afiguravam apropriados no aliviar da tormenta), na maior parte das vezes buscar apenas uma outra forma de não naufragar nas torrentes de água que Deus nos enviava.
Um clarão distante prenuncia um trovão, que segundos depois ecoa longínquo, sinal de que a tempestade maior há-de passar ao largo. O vento aumenta fustigando-nos com ondas de chuva que varrem o abrigo precário que nos proporcionam as árvores, destroçando algumas tendas erguidas para abrigo de algumas horas. Aquele trovão distante foi o único que se ouviu num espaço de tempo longo e suficiente para que se admitisse que ficaríamos pela chuva forte que caía e mesmo essa deveria ser breve.
Sem que nada o fizesse prever, um relâmpago fortíssimo iluminou de repente as redondezas como um flash fotográfico, tornando dia claro aquele sítio. O suficiente para tornar possível distinguir os vultos escuros dos ponchos dos militares que se abrigavam como podiam, fazendo lembrar um cacho de cogumelos luzidios nascidos junto ao tronco das árvores em busca da frescura da sombra.
O trovão estourou um ou dois segundos depois, sem o ribombar habitual dos ecos que a distância a que se encontra a tempestade proporciona. Ainda não estávamos recompostos daquele estrondo medonho que rasgava o silêncio da noite, deixando-nos vulneráveis como grãos de areia no deserto levados por uma enxurrada inesperada, e já outro ainda mais medonho rasgava de alto a baixo uma árvore secular a menos de trezentos metros de distância. Durante uma hora aquela tempestade pairou sobre nós reduzindo a cinzas algumas árvores das proximidades como se houvesse algo que a prendesse ali. A situação era bem pior que um ataque inimigo. Ao inimigo responde-se com as mesmas armas; ganha-se e perde-se. Aquele não. Agigantava-se com uma força indomável para a qual não tínhamos armas para responder nem sequer meios de defesa que nos abrigassem.
O vento amainou. A tempestade instalou-se sobre nós e parecia não querer deixar-nos enquanto não cumprisse uma espécie de desígnio que a mim me parecia um desejo claro de nos exterminar. De vez em quando distinguiamos o ruído da árvore que era atingida pelo raio como se um enorme machado a rachasse de alto a abaixo. Começa a pairar no espírito de cada um de nós um certo jogo de lotaria em que a sorte e o azar brincavam com a vida e a morte. Quando nos calharia a nossa árvore a ser pulverizada por aquela língua de fogo que nos haveria de lamber a todos, sorvendo-nos como um dragão esfaimado que nos engoliria de um golpe só?!
2:45. A distância mínima das árvores que a espaços ouvíamos reduzirem-se a pedaços de carvão continuava pelos cerca de trezentos metros. Concluo que no tal jogo de sorte e azar não temos que nos queixar muito. Cerca de sessenta espingardas agrupadas num raio que não iria para além dos vinte ou trinta metros é um tremendo volume de metal que em condições normais tinha todas as condições para atrair o desejo de qualquer um daquelas dezenas, centenas, de raios que nos fustigavam havia quarenta e cinco minutos.
Na minha cabeça fervilham outras tempestades. Dei ordem para que todos saíssem debaixo das árvores e aguardassem a uma distância segura que a tempestade passasse. Havia quem achasse que não valia a pena. Que aquilo havia de estar quase a passar. Pois, mas quando um raio se sentir atraído por esta molhada de ferro não vai por certo avisar com a devida antecedência, retrucava o Capitãozinho proveta, mais uma vez sujeito a apertos que jamais imaginara, nem estavam previstos nas NEP’s (Normas de Execução Permanente – uns calhamaços que continham a tropa toda...) ou em qualquer outra norma redigida sobre o joelho, aquando do desenvolvimento daquela ideia de loucos em que todos nós já estávamos enterrados havia mais de um ano.
Depois havia um outro problema ainda mais grave e mais susceptível de poder acontecer. Todos nós trazíamos granadas defensivas à cintura. Tínhamos aprendido que estas rebentavam por simpatia, que era um termo muito curioso. Ou seja, se houver um rebentamento próximo e suficientemente forte a granada também rebenta pelo simples impacto do estrondo. Comecei a pensar que aqueles estouros medonhos que se ouviam à nossa volta eram capazes de ter potência suficiente para se tornarem “simpáticos” com as nossas granadas. Depois se uma rebentasse, a simpatia era bem capaz de se estender às outras e a catástrofe incalculável.
Decidi-me por mandar que todos deixassem as granadas num determinado local distante e protegido por um tronco de árvore grosso, suficiente para nos proteger dos milhentos estilhaços que voariam na nossa direcção se uma detonação viesse a ter lugar.
Durante mais cerca de meia hora todos ficaram de cócoras a uma distância segura das árvores, aguardando que todo aquele pesadelo passasse. Os raios continuavam a estourar sobre nós com uma potência que nos reduzia a seres insignificantes esmagados por tanto poder e força. Uma noite de água e fogo baralhada com os dias guerra.
Por fim o silêncio, quase tão repentino quanto o da chegada da tempestade. Voltámos ao “conforto” de um chão encharcado debaixo das árvores onde os últimos pingos de água escorriam ainda das folhas e nos acabavam de ensopar após um dilúvio de mais de uma hora de chuva ininterrupta.
Passou meia hora. Algumas estrelas apareciam meio envergonhadas por entre restos de nuvens que corriam numa determinada direcção. O tempo agora era de espera pela manhã que nos traria os raios de sol retemperadores secando-nos a roupa em pouco tempo. Como de costume naquelas ocasiões, ninguém tinha condições para reformular as condições de pernoita. A regra era sentar com o poncho enfiado pela cabeça, abrigando a arma e o saco por baixo dele a fim de manter funcionais quer a arma quer os alimentos, e esperar pela manhã para retomar a caminhada. A noite de sono estava perdida. As chagas do corpo sem redenção à vista. O hábito à chuva nocturna já fazia parte das nossas rotinas de dezenas de operações no mato pelo que, muitos, habituados àquele sofrimento acabavam por adormecer mesmo assim. Eu era dos que já dormitava procurando esquecer aquele pesadelo que nos fustigara por mais de uma hora. O corpo encharcado resignava-se a tudo e dispunha-se ao descanso possível.
Um estrondo enorme sacudiu tudo de novo colocando-me em pé de um salto. Precisei de alguns segundos para compreender o que se estava a passar.
- Estamos a ser atacados? A esta hora? Não me lembro de tal.
Passa das três e meia. Um soldado pragueja ao meu lado; “F....., que filho da p... de trovão... Quase que me borrava todo! Ainda tenho o zumbido nos ouvidos.”
Em segundos chovia de novo copiosamente. Como se nascessem de um nova fornalha de incandescências pairando sobre nós, os relâmpagos fustigavam-nos de novo com a mesma ferocidade de meia hora antes. Tudo recomeçara tão de repente como da primeira vez. Desta não vamos escapar, penso. Novamente tudo para fora das árvores, granadas depositadas longe e uma lavra de cogumelos plantados de novo fora das árvores, aguardando que Deus tivesse misericórdia de nós e escutasse as rezas que não se ouviam mas que se sentiam subir aos céus e, já agora, se compadecesse dos praguejos que com elas se misturavam em crenças pouco divinas e mais de colher proventos com o fervor dos insultos do que com os favores da fé.
Tudo se repetiu como uma segunda sessão de uma mesma representação. A mesma intensidade, o mesmo fogo de artifício que quase dispensava luz artificial para que pudéssemos distinguir tudo com clareza. Aquela espera pela lotaria da sobrevivência iria durar mais meia hora.
Por fim tudo acalmou. No ar sentia-se um leve cheiro eléctrico produzido pelas descargas contínuas que fustigaram as redondezas por mais de duas horas. Aos poucos pequenos vultos movimentam-se silenciosos e errantes como que a medo em busca de lugares incertos, pairando depois em pé por largos minutos para logo depois regressarem ao mesmo sítio como se estivessem perdidos, ou à espera que algo acontecesse. Os primeiros alvores da madrugada anunciavam-se a leste por onde os últimos fulgores da tempestade ainda se perdem faiscando as nuvens com uma frequência impressionante de raios que ligavam o céu à terra.
Levantei-me ainda a medo receando que um último suspiro de tempestade me colhesse menos abrigado. Os meus olhos dirigiram-se por intuição para oeste procurando descortinar se mais alguma borrasca se desenhava no horizonte agora mais claro e descortinável. Afastei-me um pouco procurando limpar o meu campo de visão de algumas árvores que me impediam de ver mais além. O céu era já azul, embora um azul quase negro, onde bruxuleantes se apagavam já as últimas estrelas. O inferno parecia por fim apaziguado.
Olhávamo-nos ainda com ar assustado e com pouco que dizer. Alguns rematavam ainda algumas preces de reforço à protecção recebida, ou partes duma longa ladainha ainda não terminada, mas prometida e iniciada durante a hora de aperto. Um sinal da cruz feito à socapa completava o ofertório e sinalizava o fim da liquidação do benefício colhido, enquanto outros iam sacudindo o poncho e a roupa, ou descalçavam as botas procurando que o sol, que se adivinhava, secasse um pouco as meias e as vestes, que duma forma ou de outra estavam encharcadas da chuva e do suor do dia anterior.

Não apetece caminhar. Não apetece fazer a guerra. Apetece prostrar e esperar o tempo de partir, de regressar.
O tempo de tudo terminar. O tempo de quase tudo recomeçar…

P.Cabrita

(Alguém se lembra desta noite?)

Excerto do livro “Capitães do Vento”

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

OS PRIMOS


Durante a guerra colonial, em Angola, as partes beligerantes contavam com apoios vizinhos. No Sul, o exército português tinha o apoio quase incondicional da África do Sul, enquanto o MPLA contava com a Zâmbia.
A ajuda sul-africana tinha várias vertentes. Na Neriquinha víamo-la nos rótulos da ração de combate e de forma intensa na participação da sua força aérea, sempre que uma qualquer operação implicasse o envolvimento de helicópteros.
Mesmo não se estando por dentro dos meandros das negociações ou do pedido de apoio, a ideia que ficava é que não olhavam a meios. Sempre que fosse preciso, uma esquadrilha de Alouette III surgia com os aparelhos que fossem considerados necessários. Nós só entrávamos com o combustível. JP1 era coisa que não faltava na Neriquinha, e a logística militar encarregava-se de não descurar o abastecimento.
Chamávamo-los de “os primos”. Da origem do nome não conheço pormenores. Aliás, penso que o baptismo não foi da autoria da 3441. A designação já vinha de trás e era a forma como todos se referiam aos vizinhos do Sul.
- Prá semana temos cá os primos! Dizia-se sempre que se avizinhava uma operação em maior escala ou a ser levada a cabo em zonas mais afastadas e inacessíveis por terra.
Eram sempre bem-vindos. Traziam animação e quebravam a monotonia doentia do ram-ram estupidificante.
Parqueavam na pista, para lá do arame farpado, obrigando a um reforço adicional das sentinelas com mais dois ou três homens posicionados estrategicamente dia e noite, zelando pela segurança dos aparelhos. Fosse quem fosse o escalonado, barafustava sempre.
- Porra! Calha-me sempre a fava!
Para mim eram dias fantásticos. Perdia a noção do tempo seguindo todos os passos da criteriosa e quase religiosa sequência dos cuidados com a manutenção, autênticos mimos que dispensavam àquelas máquinas extraordinárias. Deliciava-me a tentar entender como funcionavam. Acessoriamente, desenferrujava o mal sabido inglês escolar.
É claro que isso só acontecia quando eu não participava na operação em curso. Nessa altura apenas os via à chegada, durante o voo e à partida. Não acompanhava o frenesim em terra mas, sendo um dos transportados, dava para ver como manobravam aquelas coisas, para além de desfrutar da sensação de um voo que não se assemelhava ao de qualquer avião. Pairava-se no ar, podia-se voar alto ou baixinho e pousar onde se quisesse. Até dava para ir à caça. Já imaginaram caçar de Helicópetro? Normalmente apanhavam-se duas peças que se transportavam dependuradas, uma em cada estribo. Assim garantiam o equilíbrio do voo.
A tripulação era sui generis. Embora simpáticos e de certa forma, compinchas, o seu comportamento denunciava os tiques da realidade política da África do Sul onde então vigorava um regime de apartheide com uma segregação racial levada a sério. A facilidade com que os portugueses conviviam com os negros era coisa estranha para o seu entendimento.
- you do like negros! Indeed.
Esta espécie de desprezo racial ficou demonstrada quando, certa noite, após o jantar, na sequência de um quase ritual alcoólico, ofereceram uma cerveja ao rapaz negro que ajudava na messe. O que a princípio parecia simpatia, não era mais do que uma atitude deliberada de o embebedar. Com a ajuda de um funil que lhe colocaram à força na boca, foram despejando cerveja após cerveja, directamente para a garganta do infeliz. Só a nossa intervenção livrou a horrorizada vítima das mãos dos três militares que o seguravam.
- Just Joking. Justificaram-se no meio das risadas.
A relação destes homens com o álcool era uma das suas imagens de marca. Durante todo o dia e enquanto durasse a sua actividade, nunca ingeriam uma simples gota de álcool. Apenas bebiam refrigerantes desde a gasosa à laranjada, mesmo às refeições, o que nos parecia estranho, já que, sendo o vinho, zurrapa, duas cervejas era o mínimo que qualquer um bebia ao almoço, com a devida excepção de um ou outro abstémico. Mas os Sul-Africanos, nem isso. Nem água bebiam. Apenas laranjadas e coisas assim, revelando a disciplina rígida de quem tinha a responsabilidade de pilotar helicópteros ou fazer a sua manutenção.
Mas, ao fim do dia, arrumados os aparelhos, feita a sua criteriosa manutenção, cobertas com lona todas as suas partes sensíveis e concluídas as tarefas de que estavam incumbidos, recolhiam aos balneários, substituam os fatos-de-macaco camuflados por roupa civil e apareciam um após outro na messe. Faziam-se acompanhar invariavelmente por garrafas de um brandy produzido na África do Sul.
O intragável brandy Richelieu deveria ser a sua bebida preferida. Traziam sempre caixas daquilo e bebiam-no desalmadamente.
Aliás, era impressionante a quantidade de álcool que aqueles odres ingeriam no bocado de noite que mediava entre o fim do jantar e a hora de recolher. Numa autêntica bagunça feita orgia alcoólica, bebiam o Richelieu puro ou misturado com cerveja em proporções iguais. Confesso que nunca pensei que se pudesse misturar brandy com cerveja e menos ainda naquelas quantidades.
Tinham técnicas eficazes para se embebedarem depressa e bem. Uma delas era a referida mistura. Outra passava por uma espécie de prova de habilidade e concentração onde também alinhávamos. Um grupo, de seis ou sete, sentava-se à roda de um mesa, cada um com uma garrafa de cerveja vazia. O objectivo era passar a garrafa ao seguinte, recolher a que nos era deixada pelo anterior e passá-la de novo ao seguinte, tudo ao ritmo de uma canção sem letra, comandada pelas batidas do fundo da garrafa na mesa. Importava ter atenção ao ritmo e ao facto de, a cada duas passagens de garrafa, não a largar, voltar atrás e depois à frente e só então largá-la para o seguinte. Quem se enganasse teria de beber uma cerveja.
Claro que, quanto mais nos enganávamos, mais se bebia e quanto mais se bebia mais nos enganávamos, num ciclo vicioso de onde só se saía caindo para o lado.
Por volta da meia-noite estavam todos tão bebidos que chegávamos a duvidar que no dia seguinte os helicópteros levantassem. Uns cambaleavam até à cama e outros eram levados pelos mais resistentes. Mas o facto é que se levantavam cedo, frescos, lúcidos e prontos para a tarefa de transportar tropas para os locais da operação, em segurança e com um sentido de responsabilidade e disciplina notáveis, como se nada tivesse acontecido no dia anterior. É que nem falavam nisso.
Na noite seguinte voltavam ao mesmo, repondo o stock de Richelieu e infligindo baixas significativas no nosso stock de cerveja.
Tudo acabava quando, cumprida a missão, carregavam tudo nos helicópteros e voavam em formação rumo a sul, prometendo voltar. Na operação seguinte voltavam. Alguns eram os mesmos, outros não. Contudo o comportamento não se alterava: refrigerantes durante o dia e excesso de álcool à noite. Até as caixas de Richelieu pareciam as mesmas.