sábado, 4 de julho de 2009

Neriquinha. Nova etapa


Não me lembro de pormenores da viagem de regresso à Neriquinha. Provavelmente correu sem incidentes.
Percorremos assim o mesmo trajecto feito três meses antes, mas agora em sentido inverso, passando de novo pelo Demba, Mugamba e Lihaona, seguindo-se o inevitável pontão de cimento das pontes do Cúbia e finalmente o itinerário sinuoso que conduzia à pista de terra avermelhada, companheira inseparável da cerca de arame farpado que limitava a fortificação desprovida de muros ou ameias.
Os cerca de 120 quilómetros que separavam a Neriquinha do Rivungo deverão ter levado as costumeiras sete ou oito horas a percorrer, já que apenas uma ou outra vez se conseguiu, em condições excepcionais, bater o recorde de seis horas. E isso foi em dia bom, sem furos, atascansos, avarias das berliets e muita ousadia na condução.
Cansado, moído da viagem, coberto de pó escuro riscado pela escorrência do suor, apeei-me da berliet, carreguei a trouxa atravessei a parada bordejada pela simbologia que recordava as companhias anteriores e dirigi-me ao barracão comprido que, plantado em frente, incluía a camarata dos furriéis, a respectiva messe e bar, a dos oficiais (que na tropa não havia misturas) e ainda o armazém de medicamentos, no topo que rematava a espécie de L que o edifício formava.
A construção, feita de tijolo e pintada de um branco já escurecido pelo tempo, era encimada por um telhado de folhas de zinco em terceira ou quarta mão, com todo o ar de já não serem novas quando ali foram pregadas. Nunca cheguei a perceber esta mania de utilizar zinco na cobertura dos edifícios, numa terra em que o sol imperava inclemente durante todo o ano, elevando as temperaturas acima dos quarenta graus. As chapas de zinco sobreaquecidas transformavam o interior das instalações num forno e de pouco ou nada valia o arejamento que separava a cobertura do topo da parede, nem as arejadas janelas de rede mosquiteira em lugar de vidraça.
No seu interior, sobre o comprido, uma dúzia de camas, arrumadas em duas filas contra as paredes, deixava um estreito corredor ao centro. Escolhi uma das vazias, larguei o saco, desfiz-me da farda, com cuidado para não espalhar o pó, agarrei no sabonete que arrumara algures entre as tralhas e dirigi-me aos balneários.
Havia duche, um autêntico luxo. Mesmo frio, era melhor que no Rivungo. Pelo menos não tinha que percorrer a distância que separava o aquartelamento do Rio, ao fundo das instalações da Marinha.
Enfiei-me debaixo do frouxo, porém abundante jorro de água, sentindo a fresquidão saborosa que, escorrendo pelo corpo, decapava a primeira camada de sarro resultante do suor peganhento amassado com terra e se transformava numa pequena torrente escura que desaparecia apressadamente pelo ralo a um canto.
Passei sabonete, várias vezes, à medida que ia inspeccionando o espaço. Os duches, instalados em quatro pequenas divisões tinham, arrumadas na frente, a pouco mais de meio metro, quatro sanitas de louça, em forma de funil, implantadas sobre uma plataforma de cimento, formando um recanto comunitário de higiene. Quem tomava duche podia desfrutar do espectáculo de quem ali estivesse acocorado em esgares de esforço. Inversamente esse perdia, por vezes, a necessária concentração para vencer a prisão de ventre, perante a forma mais ou menos artística com que cada um se esfregava debaixo do duche.
Explicaram-me depois que os duches só funcionavam há pouco tempo. Na Neriquinha havia um depósito metálico, encavalitado sobre uma estrutura, também ela metálica, alimentado por água sugada de um furo que ali fora aberto. Em toda aquela região plana, havia água a escassos metros de profundidade, não obstante o ambiente agreste à superfície. Mas, quando a companhia chegou, a bomba que a extraía e a levava ao depósito, estava avariada. O comandante da companhia anterior era um tanto ou quanto relaxado ou pouco dado a chatices. Ou, então, limitou-se a deixar a resolução do problema para outros.
A verdade é que, durante os primeiros meses, a água era recolhida a alguns quilómetros dali e transportada em bidões mal amanhados. Nunca cheguei a perceber como toda a companhia tomou banho durante todo esse tempo. Provavelmente iam, à vez, à Neriqinha Velha, restos da antiga povoação outrora chamada de Nova Riquinha, junto às margens do Rio Cuando e distando cerca de 15 quilómetros, onde ainda existiam umas paredes em ruínas a testemunhar as poucas casas que outrora albergaram colonos aventureiros. Sim, porque ninguém que não tivesse espírito de explorador se atreveria a viver em local tão ermo e selvagem longe de qualquer civilização, numa terra pouco amistosa e sem vias de comunicação. Creio que a guerra, desalojou os aventureiros atrevidos.
Parece que a existência da pista de aviação foi determinante para a construção das instalações militares naquele local, apropriando-se do nome e abreviando-o para N’Riquinha. Com o tempo, perdeu o apóstrofo, acabando na grafia ainda hoje usada: Neriquinha.
A construção do aquartelamento militar acabou por atrair a população autóctone que ancorou as suas cubatas ao abrigo da tropa, logo ali, junto ao arame farpado.
Quanto à Nova Riquinha, continuou a ser local de pastagens do gado e das lavras da população. Contudo, envelheceu. Quando ali chegámos já lhe chamavam Neriquinha Velha, uma espécie de contradição que apelidava de velho o que se dizia novo.
Já recuperado e liberto do incómodo da viagem, saí para o pátio, à porta da camarata. Na frente, no outro lado da parada, quase junto à cerca de arame farpado, as instalações da força aérea, numa construção mais recente e bem acabada, contrastando com a evidente precariedade das nossas. Apenas albergavam dois cabos telegrafistas, mas eram maiores e mais cómodas.
À direita, um estreito caminho de tabuinhas, estrutura precária semelhante à existente nas praias para poupar o esforço de caminhar sobre a areia, conduzia ao edifício que albergava a secretaria, a enfermaria e o gabinete do capitão. No topo deste edifício, uns metros mais à frente, qual sentinela, o depósito de água enganchado em cima da estrutura que o segurava.
Por momentos, senti saudades do Rivungo. Seria necessário criar novas rotinas ou adaptar-me às que por ali já se haviam instalado. A cadelita riquinha parecia enfrentar o mesmo problema. Aproximou-se abanando o rabo. Julguei perceber, no seu menear, um pedido de amparo enroscando-se aos meus pés enquanto, sentado numa tosca cadeira, procurava mitigar a sede com uma cerveja. Por ali, a água com o seu intenso sabor a ferro, era desagradável e não parecia matar a sede.