terça-feira, 5 de maio de 2015

Em memória, e a minha homenagem, aos que por lá ficaram sem glória mas com honra.



emblema 3441.

Em tempo porque o tempo não guarda rancores aos que partiram sem tempo...

(Excertos do livro "Capitães do Vento")

Gonçalves

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Más notícias. A primeira derrota. Somos um a menos. 
Tinham corrido rumores de um ataque iminente ao Rivungo. Numa tentativa de rentabilizar todos os meios, um lança-granadas foguete sem uso e esquecido a um canto é resgatado à letargia enferrujada em que se encontrava e decidido experimentar ali mesmo no destacamento. Sabia-se como funcionava, mas ninguém ali tinha alguma vez disparado aquela arma. Aprontaram um tiro para a chana do rio Cuando. O soldado que vai operar a arma ajeita-a no ombro com o dedo no gatilho de modo a encontrar a melhor posição para o impacto. Um toque ligeiro e esta dispara-se inadvertidamente lançando para trás um cone de fogo mortífero com uns bons dez metros de comprimento, enquanto a granada se perdia na chana. O Furriel Gonçalves apanhou em cheio com todos aqueles gases incandescentes. Teve morte imediata. Um acidente tão estúpido quanto estúpida era a guerra.

Doloroso foi depois explicar à família como se perde um filho de forma tão bruta na troca de correspondência que mantive com os pais durante algum tempo. Ajudou um pouco o facto de o pai ser, também ele, um militar. Compreensivo, foi mais da vida e não da morte que falámos. Dolorosamente compreensivo sem força nem vontade para se insurgir contra a guerra que o roubava assim de forma tão dura e cruel. Afinal, a profissão que abraçou haveria de se transformar numa espécie de carrasco que lhe levaria os seus.

Morgado

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Seria já em Luanda que sofreríamos a segunda derrota que nos decepou um segundo e último membro. Foi como que um “morrer na praia” e foi mesmo na praia que morreu a cinco dias de embarcar.
A tropa parada e sem nada que fazer, para mais com o “cacimbo” entranhado no corpo e na alma, tende para a asneira. Procurando amenizar aquele tempo de espera foram organizadas idas à praia em colunas de Berliet.
Um grupo estendia-se ao sol onde procurava harmonizar o contraste da alvura do tronco com o negro do antebraço e pescoço em V. Afogueado pelo calor o Ilídio Morgado disse levantando-se.
- Vou dar um mergulho. Reparem bem na minha pinta a mergulhar.
O mergulho foi elevado e acrobático com descida a pique. Da areia os companheiros ficaram a ver o Ilídio a boiar depois do mergulho “fazendo fôlego...”. Passaram dois, três minutos até que se compreendeu que algo não tinha corrido bem. O Ilídio continuava a boiar de barriga para baixo. Ele não tinha “fôlego” para aquele tempo todo. Retiraram-no da água já praticamente morto por afogamento, após ter batido com a cabeça no fundo de areia e ter partido o pescoço.

Não havia melhor forma de despedaçar a alegria incontida que todos vestiam no rosto naqueles últimos cinco dias de Luanda sem emboscadas de inimigos conhecidos, poeira de picada ou fome de ração de combate.

À porta do cemitério de Luanda soou um “... funeral arma!” em voz rouca gritada que rasgou o silêncio de desespero da penúltima manhã quente de guerra em África. Seguiu-se-lhe uma espécie de silêncio ensurdecedor semelhante ao de uma execução. Depois o troar uníssono de seis disparos que atordoam e deixam a sensação de nos embaterem no peito e nos vararem de lado a lado. Um segundo disparo de homenagem à vida em tempo de morte apanha-nos num meio adormecimento de resignação para com as leis da vida. O terceiro grito vociferado pelas seis G3 que, voltadas aos céus imploram ou questionam algo que não consigo vislumbrar, já não nos diz o que quer que seja, nem nos consegue sequer acordar daquele entorpecimento momentâneo que se abate sobre todos. O silêncio que fica é difícil de romper. O tempo pára e é como se não quiséssemos que continue como que receando viver a realidade que se lhe segue.
E o cais de partida ali tão perto. Data e hora de regresso marcada e alterada abruptamente a cinco dias do fim de quase todas as tormentas. Adiada para sempre a hora feliz da chegada. Por cumprir, e ali amortalhada, aquela nesga de esperança de um retalhado “... adeus ... e até ao meu regresso!”.

E o frio do Puto que nos chega com cinco dias de antecedência e enregela às onze horas da manhã de calor ardente cavalgando um fio fino de suor gelado que nos percorre as costas e estremece o peito numa angústia que nos desgoverna os sentidos e derrota o desejo tardio de vingar a morte.


sexta-feira, 1 de maio de 2015

Em memória do Ilídio Morgado

Quase que passou despercebido. Não fora duas ou três situações extremas que o marcaram e o facto de termos sido relegados para o fim do mundo, confinados a um singelo quadrado delimitado por uma precária cerca de arame farpado que nos impôs uma longa convivência de proximidade, a lembrança da sua passagem pela companhia teria provavelmente ficado perdida no limbo da nossa memória colectiva.
O Ilídio Morgado era um soldado do meu pelotão integrando aquele lote dos que não dão muito nas vistas. Beirão, oriundo de uma pequena freguesia do Conselho de Sátão, comportava-se de forma algo bisonha e falava devagar conferindo às palavras aquela pronúncia sibilina característica do linguajar das gentes que habitam a região a norte das Terras de Viriato. Não sei se era preguiçoso mas a ideia que vagamente retenho da sua figura, do seu andar vagaroso e da postura indolente que punha em tudo o que fazia, deixa-me essa possibilidade. Creio que nunca fez inimigos e não consta que alguma vez alguém tivesse feito qualquer reparo menos abonatório ao Ilídio, mas também não consigo identificar nenhum grupo de amigos mais chegados a que pertencesse.
Em resumo, pode dizer-se que era um homem comum sem nada de especial que se lhe apontasse a não ser o facto de, por vezes, beber um pouco mais do que a conta.
Contudo, a ser esse o seu maior defeito, convenhamos que era uma coisa de nada se tivermos em atenção que, pelo menos naquele tempo, a melhor forma de mitigar a sede e afrontar o calor, passava pela ingestão de cerveja em quantidades razoáveis. Era barata e havia em quantidades generosas. Excluindo o Candeeiro, pescador dos mares algarvios que ficou na memória de todos pela frequência com que se enfrascava e pelo mau feitio que apenas se manifestava quando toldado por uma cerveja a mais, o Ilídio, se calhar, integrava o restrito grupo dos que ficaram na memória colectiva como aqueles que, com mais assiduidade, exageravam um pouco na quantidade de imperiais.
O excesso de bebida não trouxe problemas a ninguém. É claro que nestas coisas, há sempre excepções e o Candeeiro é uma flagrante excepção. Nele, a bebida, queimando o seu fraco bom senso, fazia com que andasse sempre de candeias às avessas com as hierarquias daí resultando algumas ameaças de punições severas por parte do comandante da companhia. Mas não o Morgado; nele, a bebida apenas lhe soltava a língua, desatando num falaçar trôpego que nunca lhe trouxe problemas de maior quanto a questões disciplinares mas, tanto quanto a minha memória retém, foi o único que sofreu na pele as consequências de beber demais.
Pois é, certa vez, como que por castigo da providência, sentiu de forma muito dolorosa as consequências de um dia de excessos. Não sei se alguém se lembra mas, quando faltava para aí cerca de um par de meses para o fim da comissão, fez coincidir uma bebedeira valente com o dia que lhe competia estar de serviço de guarda à baia que controlava o acesso de viaturas à localidade, dia em que, para piorar as coisas, era aguardada a visita de um grupo de altas patentes militares, que suponho constituído pelo comandante de batalhão e respectivo séquito.
Ninguém sabe como e ele também nunca conseguiu explicar, deu um tiro em si mesmo quando, ao abaixar-se esforçando-se por manter o equilíbrio que o excesso de bebida tornava precário, accionou o gatilho da G3. São coincidências fatais e até hoje ainda ninguém conseguiu perceber por que artes do demo, num local como as Mabubas, tinha uma bala na câmara pronta a disparar. Acabou por ter sorte, a bala apenas lhe perfurou o braço obrigando-o a andar entrapado durante uns tempos.
Este pequeno incidente, a que na altura não se deu muita importância – coisas do vinho, dir‑se‑á, embora me pareça que a bebedeira era de cerveja – não deixa de ter o seu quê de premonitório. Cá para mim, a negra e encapuçada figura sem rosto, de gadanha a tiracolo, já andaria a rondar o infeliz do Morgado.
O tempo passou e a missão chegou ao fim. Agora era o tempo da diversão, do entretém, do dolce far niente. Matavam-se as saudades de tudo aquilo de que, por demasiado tempo, não se teve acesso, gozando hoje uma coisa, amanhã outra, por vezes exageradamente e ao fim do dia planeava-se o que fazer no dia seguinte. Enfim, aproveitava-se o tempo enquanto não chegava o dia do regresso a casa. A praia, porque não era longe, passou a ser local de visita assídua. E o Morgado, porque no sítio onde nascera era coisa que não havia, também por lá andou, até porque o calor a isso convidava.
Não conheço pormenores, mas num desses dias, estando ele na brincadeira com a malta do grupo que com ele decidira passar o dia na praia, resolveu fazer uma habilidade. Correu em direcção à água e ensaiou um mergulho, atirando-se de cabeça contra a onda que entretanto se desfizera espalhando-se preguiçosamente no areal.
O mergulho saiu desorganizado, espalhafatoso, descoordenado e sem estilo, visível na forma como se estatelou pesadamente nos escassos vinte centímetros de água que mal chegava a meia canela. No imediato, ninguém se apercebeu que o corpo do Morgado, inerte, apenas se movia ao sabor das ondas num embalo de vai e vem. Quando alguém deu o alarme, já era tarde. A autópsia, contou-me o alferes Correia que conduziu o processo de averiguações, concluiu que partira o pescoço.
A notícia do passamento do malogrado soldado produziu um efeito devastador no pessoal, trazendo à lembrança a trágica morte do furriel Gonçalves que desastradamente ocorrera lá bem para baixo, nos confins da savana, reabrindo feridas que só há bem pouco tempo haviam cicatrizado. O clima de festa e de diversão de que todos tiravam partido murchou e a alegria desapareceu dando lugar a uma consternação colectiva, a uma revolta surda visível no semblante de cada um.
Que raio. O pior já havia passado e já só faltava tão pouco tempo para tudo terminar.
Não foi justo.