domingo, 14 de dezembro de 2008

Natal no Rivungo

O mês de Novembro daquele ano de 1971 ia já avançado quando aportámos àquelas paragens. Na Metrópole (carinhosamente apelidada de Puto) dali até ao Natal seria um saltinho. Naquele fim de mundo, a quadra festiva aproximava-se ao ritmo indolente da calmaria, andamento já de si retardado pela contagem decrescente dos dias, alimentando o desejo sofrido de ver chegado o distante dia do regresso, dando maior dimensão ao longo caminho que ainda havia a percorrer.
Em boa verdade, não creio que alguém se preocupasse com o Natal. Por ali, nada o fazia lembrar e a população local não sabia o que isso era. Sempre associei a quadra ao frio e isso era coisa que ali não havia. Também não havia ruas iluminadas, nem lojas, nem pais natais, cânticos natalícios ou jingle bells. Apenas um dia a seguir ao outro, com a noite de permeio, num território inóspito e desconhecido, infestado de mosquitos gulosos, de tamanho desmesurado, que se engalfinhavam logo que caía a noite, sugando o sangue a quem não se resguardasse por detrás de uma qualquer rede mosquiteira.
Por estas alturas, o exército costumava abrir os cordões à bolsa e recomendava rancho melhorado. Contudo, não se esperava bacalhau para a consoada. Menos ainda rabanadas, bolo-rei, fios d’ovos ou outros acepipes com que, por tradição, nos empanturramos na quadra natalícia.
É estranho! Passei três natais em África, mas apenas me lembro deste, o primeiro e único passado no Rivungo. Dos restantes, não retenho sequer uma pequena recordação, lembrança ou imagem, muito provavelmente porque eram dias normais, iguais a todos os outros. São os desígnios do tempo, que tendem a esconder nos recônditos inacessíveis da memória, factos, histórias e imagens da nossa vida, apenas deixando à superfície flashes isolados que permitem reconstituir, mais uns do que outros, alguns episódios, sem que, muitas vezes, se perceba os critérios selectivos dos neurónios em funcionamento.
Não havendo como festejar, atamancou-se uma solução para cada um dos três principais dias festivos e que passava por reunir toda a comunidade de deslocados num almoço de confraternização que tinha lugar, à vez, nas instalações de cada força. Naquele ano, ficara decidido que o almoço do dia de Natal seria na tropa, o de Ano Novo na Marinha e finalmente, o do dia de Reis, na PSP. Os dois agentes da DGS não tinham condições para o fazer, o mesmo se dizendo do Administrador e do Camassango, pelo que eram sempre, apenas convidados.
O rancho melhorado no dia de Natal, bem se pode dizer que foi obra do Máquina que, sendo uma espécie de ajudante de cozinha, foi, neste caso, ajudado pelo cozinheiro do destacamento, numa autêntica inversão de funções. Não obstante já nos termos apercebido dos dotes culinários do homem, ainda assim, todos se admiravam das suas habilidades. Aquele arroz de frango (digno substituto de um qualquer manjar de Natal) estava divinal.
A frugalidade da comezaina era limitada pela pouca variedade e escassa disponibilidade do depósito de géneros, valendo o almoço pela companhia devidamente animada com o vinho de péssima qualidade, único de que se dispunha e que era fornecido em bidões de 200 litros. Após a abertura do bidão, tinha de ser consumido em poucos dias, já que azedava a uma velocidade imparável, transformando-se rapidamente em ácido acético impróprio para o que quer que fosse. Por mim sempre preferi a cerveja. Era fresca e saborosa, indo melhor com o calor. Por outro lado, ao contrário do vinho, não tinha tempo de azedar. Esvaziada uma, havia logo outra, sempre à mão.
De qualquer forma, o Natal resumiu-se a esta espécie de evento, sem missa do galo ou noite de consoada. A rotina apenas foi alterada no reforço das sentinelas e das rondas nocturnas, não fossem os amigos turras quererem fazer-nos uma visita em tempo de maior descontracção.
No ano novo, o almoço ficou a cargo da marinha e, creiam-me, os rapazes capricharam. Especialmente no acompanhamento alcoólico. O dia coincide com o do meu aniversário e toda a gente sabia disso. Assim, fui transformado numa espécie de dono da festa e todos, tanto dum lado como do outro, fizeram jus à arte de bem receber, pugnando para que nada faltasse à minha frente. As cervejas sucediam-se e a sobremesa foi devidamente acompanhada com meia dúzia de whiskies, mais não sei quê, igualmente alcoólico, que me foram pondo à frente. A mistura, cumpriu o seu dever, dando-me conta disso quando, no fim do repasto, as pernas não obedeceram ao tentar levantar-me.
A tarde ainda ia a meio e, não obstante ninguém estivesse verdadeiramente sóbrio (excepção para o Silva que julgo apenas ter quebrado a abstinência para não fazer a desfeita) entendeu-se que o novo ano merecia outra comemoração. O Tenente, bem bebido, tal como os demais, achou que era engraçado dar uma volta pelas redondezas. Sentou-se ao volante do Land Rover da marinha e fez carregar uma grade de cerveja. Outros três ou quatro bêbados (eu incluído) tomaram também assento e lá rumámos à Missão, não sei bem para quê, já que ali não existia nada que justificasse o raid.
A viagem acabou, pelo menos para mim, na Mahínha, pequeno kimbo que distava do Rivungo uma meia dúzia de quilómetros por uma picada de areia, numa espécie de visita sem motivo, de que apenas recordo ter-me espalhado ao comprido ao tentar apear-me, verdadeiro corolário do excesso de bebida, transformada em cocktail pelas sacudidelas da curta viagem.
Não me recordo do regresso. Acordei, no dia seguinte, com o Alferes Fausto a perguntar pela bandeira. Eram horas de a içar e não estava no lugar do costume. Estremunhado, com a memória entupida, raciocínio atascado e sem vontade de me levantar, balbuciei qualquer coisa. Foi quando, ao virar-me na cama, reparei que estava embrulhado na bandeira nacional. Segundo contaram, no dia anterior, no meio da barafunda, carregaram-me às costas e atiraram-me para cima da cama. Provavelmente, porque a sobriedade não era muita, alguém agarrou no que estava mais à mão, acabando a bandeira verde rubra a fazer de lençol.
No almoço do dia de Reis, servido na PSP, a comezaina decorreu sem incidentes. A recordação de tão insólita festa de aniversário levou-me a beber apenas duas cervejas, em evidente contraste com o anfitrião - o chefe França - que, como não podia deixar de ser, se encarregou da animação, regando-a generosamente.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O Máquina

A imagem preconcebida que todos levávamos das Terras do Fim do Mundo, provavelmente condicionada pelas inúmeras paisagens africanas vistas e revistas em muitos filmes holliwoodescos, compunha cenários de um ambiente selvagem, não apenas no que concerne à fauna e à flora, mas também quanto às gentes que por ali viviam. A realidade encontrada e que aos poucos fomos conhecendo, revelou-se distante da ficção. Era bem mais selvagem.
A maioria autóctone que habitava tão remotas paragens (o povo Ganguela) vivia numa quase pré-história, facto que os rotulara de raça mais atrasada de entre as múltiplas etnias do continente africano.
A chegada da tropa àquelas longínquas terras, veio conspurcar o seu simples modo de vida com tiques de alguma civilização e hábitos europeus que nada diziam àquela gente, para quem, um qualquer pequeno trapo que permitisse improvisar uma tanga, era vestimenta mais do que suficiente. De facto, o frio era pouco e a chuva apenas água que refrescava e lavava corpos seminus sem necessidade de abrigo, o que explicava as simples e acanhadas cubatas de capim e paus aconchegados de lama, que quase só eram utilizadas para os abrigar das frias noites do cacimbo ou quando a chuva, teimando em cair de noite, arrefecia os corpos que não estivessem debaixo de qualquer coisa.
Os hábitos alimentares não primavam por grande variedade. Os frutos silvestres e algumas raízes eram consumidos no local onde eram colhidas e a agricultura apenas se quedava pela produção de milho (talvez a mais vulgar) e massango, uma variedade de sorgo muito popular em África. As correspondentes sementeiras decorriam durante a época húmida, em lavras espalhadas por lugares específicos da mata, normalmente localizados a distâncias razoáveis dos aldeamentos, para onde migravam as mulheres (a mão de obra principal) aí assentando arraiais por longos períodos, cuidando das plantas que cresciam naturalmente, apenas regadas pelas abundantes e frequentes chuvadas tropicais.
Estes dois cereais, uma vez transformados em farinha, representavam a base da alimentação de boa parte da população africana. A tarefa era, uma vez mais, cometida às mulheres, que passavam algumas horas do dia a bater de forma cadenciada, com um grosso pau, as sementes colocadas no fundo de um pilão a lembrar uma espécie de almofariz gigante, obtendo assim uma farinha grosseira, com a qual cozinhavam uma papa dura a que chamavam pirão, que ingeriam a seco, ou então acompanhada de quando em vez por alguns bocados de carne seca. Para além disso, com a fermentação de sementes de massango, produziam ainda uma beberragem alcoólica, com aspecto acastanhado, que não parecia ser muito agradável, pelo menos à vista.
Era uma sociedade patriarcal e poligâmica, na qual a mulher era força de trabalho. A posse, que definia a riqueza de cada um, apenas respeitava aos homens e era medida pelo número de mulheres e de vacas que cada um possuía. Aliás, para além de definir a riqueza, as vacas serviam para comprar mulheres, pelo que, em boa verdade, um homem era tanto mais rico quanto mais mulheres possuísse, já que isso também significava que tinha vacas para a troca. Era a que cuidava da casa, a que cuidava dos filhos, a que cuidava da lavra, as que cuidavam das vacas, etc.. As terras, essas não tinham propriedade. Não sendo de ninguém, eram de todos.
Nesta sociedade machista, a caça era a única tarefa cometida aos homens. Deslocavam-se em grupo para as zonas de caça e por lá andavam por longos períodos. Do que caçavam, comiam no local o que podiam e secavam a parte restante, armazenando reservas mal cheirosas que, no fim da temporada, transportavam para casa, constituindo as escassas proteínas da dieta alimentar daquelas gentes, dieta essa que, ditada pelos costumes, constituía, a meu ver, a razão principal para a inexistência de obesidade entre os Ganguelas.
Foi no seio desta comunidade que o Máquina, nado e criado no Rivungo, se aculturou. Era apenas mais um nativo, com todas as características culturais, sociológicas e fisiológicas dos Ganguelas, até na sua compleição franzina e pele escura, quase carvão, como o era a maioria da população. Muito popular na zona, expressava-se em bom português num discurso desenvolto e nitidamente mais culto, contrastando com os demais, que apenas dominavam dois ou três dialectos locais. O nome, ganhara-o pelo facto de possuir uma velha máquina de costura portátil com a qual, ora costurava as vestes simples daquela gente, ora remendava os rasgões de fardas de tropas, marinheiros ou polícias. O seu atelier resumia-se a uma pequena mesa que instalava sob o alpendre, em frente à porta da enfermaria, sobre a qual colocava, com mil cuidados, aquela maravilha da técnica, dando à manivela com uma mão, enquanto com a outra segurava o pano mantendo-o alinhado debaixo da agulha da geringonça, num sincronizado movimento de artesanal mestre-alfaiate.
Mas a verdadeira habilidade do Máquina era na cozinha. E também na arte da panificação, ficando explicado o pão que, no primeiro dia, apareceu na mesa ao pequeno-almoço. O Máquina, juntamente com um outro da sua raça, mas ainda rapaz, compunham uma dupla de especialistas da panificação que, com a ajuda imprescindível de um forno artesanal, garantiam pão fresco todos os dias, contribuindo para esta particularidade dos hábitos alimentares europeus, num evidente contraste com as rotinas gastronómicas dos Ganguelas.
Mas estas, contudo, não eram as únicas habilidades deste homem para as coisas da cozinha. Na verdade, para quem nunca saíra do Rivungo, os seus dotes culinários, para nossa felicidade e prazer, superavam os do Lourenço que se iniciava na difícil tarefa de alimentar soldados habituados a refilar da confecção, não obstante o curso que a tropa lhe ministrara.
Não sei se os ares africanos me abriam ou não o apetite, mas ainda tenho na memória o fabuloso arroz de frango que o homem preparava. Ou ainda, a deliciosa cabra do mato que, previamente temperada com requintes de chef pelo Máquina, era assada inteira no forno de pão.
Ainda hoje me cresce água na boca perante a lembrança do petisco, contribuindo para elevar as virtudes culinárias desta espécie de costureiro-cozinheiro ao patamar do mistério, se tivermos em consideração que o homem nunca se afastara do Rivungo mais do que as escassas dezenas de quilómetros que separavam a localidade dos kimbos próximos.
Deixei de ver o Máquina.
As comissões no Rivungo duravam três meses, pelo que, passado esse tempo, o meu grupo regressou à Neriquinha, sendo substituído por outro.
Quando ali voltámos, passado mais de um ano, para cumprir outros três meses de comissão, já não pudemos contar com as suas habilidades culinárias. Da pequena máquina de costura também não ficou rasto.
Parece que a PIDE desconfiou do à vontade com que se movimentava por entre a tropa e a marinha. Levou-o para um interrogatório e nunca mais foi visto. Disseram-nos apenas que tinha sido levado para Serpa Pinto.
Ainda hoje não sei exactamente o que motivou as desconfianças da PIDE, mas não me admirava nada que estivessem relacionadas com a evidente diferença cultural que o distinguia dos demais.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O Rivungo

Acordei estremunhado, com a desagradável sensação de que acabara de adormecer. O vozeirão do Silva serviu de despertador e o Alferes exigia o cumprimento dos horários militares. Saltei da cama. Era necessário içar a bandeira e o corneteiro Rogério já estava a postos. A bandeira lá subiu ao poste plantado no canteiro em frente, devagar, como mandam as regras, ao som roufenho da corneta, que o Rogério não era músico e como todos ali, também ele aprendera a sua especialidade em tempo recorde. Creio que foi a primeira e última vez que a solenidade do acto foi cumprida ao som da corneta. O alferes Fausto era homem exigente, disciplinador e cumpridor das regras, mas o seu bom senso sobrepunha-se a tudo. A partir daí, não obstante a bandeira tenha sido içada todos os dias, o acto foi sempre cumprido silenciosamente por quem estivesse à mão, respeitando o horário mas sem aquele rigor austero que caracterizava o formalismo.
A verdade é que a bandeira nacional subiu sempre ao poste, a horas adequadas e nunca lá ficou para além do pôr-do-sol. A corneta, essa, foi doravante deixada em descanso.
O pequeno-almoço estava na mesa. Um cântaro de café, pão e uma fatia de goiabada - compota de goiaba semelhante à marmelada - tudo servido silenciosamente pelo moço da messe, um negrinho local armado em serviçal que herdáramos da companhia anterior e que tinha também a seu cargo o arrumo dos quartos, a lavagem da roupa, a limpeza do espaço e ainda garantir que o bidão da casa de banho estivesse sempre cheio de água que recolhia de um remanso do rio Cuando localizado nas traseiras. Como paga, recebia de cada um de nós uma importância em dinheiro, cujo montante não recordo, usufruindo ainda de refeições gratuitas. Enfim, um luxo, como se costumava dizer. Para ele, a comida era um autêntico manjar quando comparada com o que tinha disponível na cubata que habitava. Quanto ao dinheiro, servia para muito pouco. A lojeca, à beira da picada, na entrada da localidade, propriedade de um velhote já em fim de estação, vendia uns panos e algumas tralhas apenas úteis à população local, mas sem interesse para os miúdos, o que significa que não havia onde gastar o dinheiro.
Não obstante a noite mal dormida e a devastadora jornada dos dias anteriores, os deveres militares e as tarefas do dia a dia obrigaram a um lançar urgente de mãos à obra. Não estávamos ali de férias e a missão de um exército em tempo de guerra tinha as suas exigências. Havia que fazer o reconhecimento do local, definir estratégias, distribuir tarefas e assegurar a preparação do almoço. Por outro lado, a cantina tinha de ser aberta, já que a cerveja e o cigarro eram quase tão importantes como a comida ou a água. Para quase tudo, o alferes Fausto demonstrou que ele era o comandante e não deixou os seus préstimos por mãos alheias. Nomeei o cabo Almeida responsável pela cantina, dei instruções sobre os preços a praticar com base na listagem passada pelos velhinhos, definiram-se as horas em que estaria aberta e assim se iniciou uma nova etapa das nossas vidas, recheada de novidades e sujeita a muitos improvisos, adaptações e ajustamentos frequentes.
A curiosidade em explorar o local sobrepôs-se ao cansaço e à necessidade de dormir, lançando-me decididamente ao reconhecimento das instalações e arredores. O edifício, construído sobre o comprido, incluía, para além da messe, com os seus quatro pequenos quartos (um autêntico luxo naquelas paragens) a cantina, no topo norte, constituída por um pequeno alpendre dotado de um improvisado balcão e a enfermaria, uma divisão estreita, equipada com três camas, uma das quais, a do próprio enfermeiro e outras duas, em beliche, para os doentes que exigissem vigilância mais apertada.
A caserna dos praças e o refeitório, constituindo uma estrutura mais baixa, rematava o edifício, denunciando uma construção posterior encostada ao corpo principal. Separada deste bloco, uma pequena construção, mais recente, albergava o posto de transmissões, onde o Vilela, cabo radiotelegrafista, transmitia e recebia mensagens, utilizando com mestria o velho sistema Morse. Este equipamento era a nossa única ligação com a Neriquinha e com o mundo exterior. Por ali se recebiam ordens e notícias e por ali se pediam instruções e ajuda, se fosse o caso. Na verdade era o único elo de ligação rápido com tudo aquilo que ultrapassasse o perímetro da povoação. Finalmente, um pequeno paiol guardava diversos tipos de granadas e vários cunhetes de munições.
A curiosidade espicaçada pelo aviso feito na noite anterior relativamente ao perigo de queda ao rio, levou-me às traseiras. Afinal, havia alguma razão para tal recomendação, se bem que, exagerada. A cozinha ficava a poucos metros do barranco que caía abruptamente sobre uma espécie de mini praia que se formava na borda de um pequeno lago de águas quietas, ali deixadas em sossego pelo caudal do Cuando, na sua passagem serpenteante por entre os caniçais da chana de alguns quilómetros de largura, terra de ninguém que definia a fronteira entre o território angolano e a Zâmbia, na outra margem. Apenas à noite, se divisava, muito ao longe, umas trémulas luzinhas da pequena povoação zambiana (Shangombo), que se pressupunha albergar o inimigo. A cozinha parecia ser o que restava de algo que, algures no passado, tinha sido improvisado para desenrascar umas refeições, como que a atestar que os arquitectos (militares?) que gizaram o edifício, se esqueceram de a incluir no projecto. Uns paus ao alto, arrumados contra a parede traseira das instalações, suportavam as folhas de zinco que cobriam o espaço, protegendo-o do sol e da chuva. Um murete de suporte aos tachos e panelas permitia enfiar a lenha por debaixo, único material de queima disponível e abundante na mata próxima. Ao lado, um pequeno forno artesanal, explicava o pão que comera ao pequeno-almoço, se bem que não tenha percebido quem o preparou, já que o Lourenço era cozinheiro de fracos recursos e da arte da panificação não percebia mesmo nada.
Não foi preciso sair dali para conhecer as forças vivas que constituíam aquela micro sociedade. Aos poucos, foram chegando para as apresentações: o Administrador, o chefe da PSP, os dois agentes da Pide DGS, o pessoal da marinha e o Camassango. Não levei muito tempo a perceber a importância do bom relacionamento entre estes representantes daquela comunidade e da prontidão com que se apresentaram. O local era pequeno e todos constituíam uma família sui generis, no seio da qual se criaram e desenvolveram amizades verdadeiramente importantes para mitigar o isolamento e compensar a ausência dos amigos e entes queridos. Por outro lado, a união faz a força e todos juntos valiam mais do que cada um de per si.
O primeiro a chegar foi o Administrador do Rivungo, uma figura que faria as delícias de qualquer caricaturista. Magro, talvez de mais, usando uma farda cor de caqui, calça apertada, realçando os genitais, justa pelos artelhos, alongando o sapato e salientando ainda mais a magreza. Pele tisnada pela exposição ao sol, mais escuro que um mulato, embora os traços fisionómicos não confirmassem a miscigenação de raças. Idade indefinida, talvez rondando a casa dos 60. Tinha um olho de vidro, rapidamente identificável e exibia uma careca luzidia que lhe deu o nome pelo qual era conhecido - Litenda - vocábulo que, no dialecto local, significava careca. Acho que nunca soube o seu verdadeiro nome. Na sua presença, tratávamo-lo sempre por Sr. Administrador. Quando ausente, era o Litenda. Na sua apresentação, sem formalismos ou salamaleques, o Litenda mostrou-se um homem vaidoso, muito orgulhoso do seu saber africano e dos costumes e defeitos da populaça que parecia não respeitar muito. Na altura, atribuí a pose a uma encenação para impressionar europeus recém chegados do “puto”. Sempre acompanhado pelo fiel Sipaio, espécie de funcionário administrativo recrutado entre a população autóctone, que o seguia dois respeitosos passos atrás, habitava uma das casas no outro lado do campo de futebol, construído alguns metros à frente das instalações militares.
No Rivungo havia apenas dois arremedos de ruas, semelhantes a picadas (até na sua consistência arenosa) mas bastante mais largas. Uma, que começava em frente às instalações da Marinha, à entrada da localidade, era ladeada à esquerda pelo campo de futebol e à direita por 3 casas, uma das quais a do Administrador, estando desabitada pelo menos uma das restantes. A outra, no topo, correndo na perpendicular a esta, terminava abruptamente na periferia da mata. Dotada de separador central, talvez fruto de ideias megalómanas de quem a projectou, estava permanentemente atolada de areia. Albergava de um lado as instalações da PSP e da DGS e do outro a residência do Camassango, um funciónário para as questões agrícolas, cujas atribuições nunca cheguei a perceber. Mulato, vivia sozinho, mas tinha uma grande facilidade em fazer amizades, pelo que era mais fácil encontrá-lo junto da tropa ou da marinha ou a cavaquear com os elementos da PSP.
As únicas estruturas pré-fabricadas, com evidente aspecto de provisório, eram exactamente a casa do Camassango e em frente, no outro lado da rua, as instalações da PSP. Eram também as últimas estruturas da rua, fazendo directamente fronteira com a orla da mata. A missão da PSP, quer ali, quer em qualquer pequena localidade do interior profundo do território, não era a de patrulhar as ruas. As duas que ali existiam não tinham trânsito; eram apenas acessos. Menos ainda garantir a ordem; o movimento era inexistente e os desacatos que pudessem surgir teriam de ser resolvidos pelas hierarquias (militares ou civis). O posto era apenas a base logística. Os seus agentes estavam distribuídos pelos Kimbos dali dependentes, dois em cada um. Eram comandados por uma personagem muito especial - O Chefe França. Fisicamente, uma fraca figura, o que conferia maior visibilidade ao farto bigode de pontas retorcidas que adornava uma cara esguia marcada pela longa exposição ao sol africano. A sua personalidade era oposta à ideia que se costuma fazer de um polícia.
Era um verdadeiro compincha, o protótipo do pândego e do gajo porreiro, sempre com uma laracha pronta a sair, acompanhada de uma gargalhada a propósito de tudo e de pouca coisa. Passe o exagero, creio que, no primeiro dia, ficou amigo de todos os recém chegados. Por companhia permanente, uma cerveja na mão, dando razão à fama de inveterado bebedor que o perseguia, ilustrada por histórias como as que se contavam da parceria que fazia com o sargento Rodrigues da marinha. O sargento Rodrigues tinha fama de grande bebedor. E físico também. Dotado de uma barriga proeminente e corpo volumoso, ninguém o batia quer na quantidade quer na rapidez com que, de um só trago, engolia cerveja após cerveja. O único que lhe conseguia dar luta era o chefe França. Contava-se que um dia, no Mugamba, ao pequeno-almoço, os dois, sentados sobre um banco, comeram trinta ovos estrelados e beberam duas grades de cerveja (o equivalente a 48 garrafas). Não consta que tenham sofrido qualquer indigestão ou perdido o apetite para o almoço, mas ficou demonstrado que o corpo franzino do França pedia meças a qualquer alarve encartado.
A delegação da omnipresente DGS era constituída apenas por dois agentes que ocupavam uma casa próxima do kimbo dos "flechas", no mesmo lado da PSP. Chocava-me a qualidade da “vivenda” dos pides que, por comparação, transformava as instalações da PSP num barracão de lata. Os Pides, com quem não foi difícil conviver, tinham uma actividade invisível. Muitas vezes me perguntei o que faziam ali aqueles dois elementos, para além de desaparecerem, de quando em vez, dentro de casa, por largas horas. Provavelmente apenas gozavam a sesta, fugindo ao calor tórrido. Contudo, diziam alguns, que a casa possuía umas catacumbas onde se dedicariam a actividades ultra secretas, histórias em que nunca acreditei, por me parecer inverosímil a existência de catacumbas. Creio que o resultado das suas investigações seguia secretamente para Serpa Pinto, retornando, via Cuito Cuanavale e desaguando em Mavinga e Neriquinha, até chegarem às bases sobre a forma de operações que a tropa tinha de cumprir, na demanda do inimigo que não se deixava ver.
Junto à entrada do Rivungo, no cimo de um suave declive que levava ao rio, estavam implantadas as instalações do Destacamento de Marinha do Cuando. Nunca imaginei que pudessem existir marinheiros onde não havia mar. Mas assim era. Mais ou menos uma dúzia, parte dos quais fuzileiros navais, logo tropa especial. Comandados por um tenente, o grupo incluía ainda um sargento e um cabo. Tinham por missão patrulhar o Rio numa extensão que podia ir desde a Neriquinha Velha até ao Luiana, seguindo o caudal preguiçosamente sinuoso do Cuando. Para o efeito, dispunham de uma LDP (Lancha de Desembarque Pequena) que para ali fora transportada aos bocados e montada no local. As LDP’s são lanchas de desembarque, de fundo chato, possibilitando a navegação em águas pouco profundas, o que, não sendo o caso do Cuando, sempre facilitava o acesso a zonas fora do caudal principal. Para isso, a proa era basculante, permitindo o desembarque de tropas numa acostagem de frente para as margens. Esta, talvez por erro dos soldadores ou decisão de natureza táctica, não tinha essa funcionalidade. Na operação de junção das partes, soldaram também a rampa de desembarque. Dispunham ainda de um pequeno bote a motor que permitia pequenas incursões militares e que se utilizava para alguns passeios até à Missão ou para percorrer os labirínticos recantos do Cuando. O local não fora escolhido por acaso. Era um ponto estratégico em que o caudal principal do Rio abandonava o seu território pantanoso e tocava terreno firme. Aí ficavam amarrados, a LDP e o bote. Aquela curva do rio permitiu também a montagem de uma tábua, fazendo a vez de prancha de salto. Ali tomávamos banho, com um ritual simples. Mergulhava-se, nadava-se para a margem para passar demoradamente sabonete pelo corpo. Um segundo mergulho retirava o sabão e só depois é que se desfrutava daquela espécie de resort, dando umas braçadas, mas procurando não desafiar a corrente que, a alguns metros da margem, tinha força mais do que suficiente para vencer a nossa resistência de nadadores amadores.
E assim, todos os dias, fato de banho vestido, toalha sobre os ombros e chinelos nos pés, percorríamos a distância que nos separava das instalações da marinha, para o banho diário, dispensando-se a utilidade do balde que equipava a casa de banho.
A verdadeira população do Rivundo, era a que habitava os dois Kimbos. Um deles, o que se espraiava em frente à marinha e constituído por palhotas alinhadas, albergava a população Ganguela, a maioria autóctone daquelas paragens. O outro, que exibia umas cubatas desalinhadas e improvisadas, era habitado exclusivamente por uma das etnias mais características do sul de Angola e ocupava o espaço por detrás da sede da DGS. Os Bosquímanos (corruptela da palavra inglesa Bushmen) gente pequena, com aspecto de garotos e idade impossível de adivinhar, congregavam um povo essencialmente nómada, que a guerra obrigou à sedentarização. A Pide-DGS, aproveitou o seu espírito guerreiro, recrutando as suas tropas (os Flechas) entre os homens deste povo que comunicavam entre si usando um dialecto impossível de imitar e de perceber. Falavam por estalidos produzidos pela língua, como os garotos a brincar.
A apresentação da localidade não ficaria completa sem a referência ao aeródromo e à Missão. Relativamente ao aeródromo ou pista (qualquer dos termos é exagerado) não passava de um espaço, no meio do mato, afastado cerca de 2 km do Rivungo, que se procurava manter desarborizado. Ali aterrava duas vezes por semana (terças e quintas) um pequenino avião da TASA (Transportes Aéreos do Sul de Angola) que nos trazia o que de mais precioso tínhamos para receber - o correio. Iria decorrer mais de um ano até que fosse construída uma pista a sério. De terra batida sim, mas extensa e logo ali, no limite do Kimbo. Até lá manteve-se a correria, em cima de um pequeno Unimog que acelerava saltitante pela picada, procurando chegar à pista antes da aterragem. Era necessário garantir a segurança da pista e receber notícias de casa. Quanto à Missão, pouco mais era do que uns restos de ruínas de umas instalações de missionários, cuja memória se perdera no tempo. De qualquer forma, o local aprazível, localizado na margem do Rio, a cerca de 2 ou 3 km, convidava a uma visita. Ali não havia nada, mas se alguma vez decidisse fazer vida de Robinson Crusoé, seria aquele o local onde assentaria arraiais.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

A Savana - da Neriquinha ao Rivungo


Não houve tempo para explorar a Neriquinha. Para o meu grupo de combate, incumbido de render o grupo destacado no Rivungo, a viagem ainda não terminara. Comandado pelo alferes Fausto e coadjuvado por três furriéis (eu, o Duarte e o Silva) estava já preparado para partir, devidamente reforçado com os necessários especialistas: um cozinheiro, um enfermeiro, um radiotelegrafista, um transmissões, dois condutores e um corneteiro, somando o conjunto, cerca de 30 homens.
Engoli o almoço à pressa, apertei o cinturão, convenientemente apetrechado com cartucheiras, cantil e demais equipamento, agarrei na G3, atirei o saco com as tralhas para cima da berliet, tomei assento ao lado do Duarte, que já se instalara junto ao condutor e sob um sol inclemente, iniciámos a marcha em direcção à clareira que, parecendo dar continuidade à pista, apontava para sul.
As duas berliets rolavam uma atrás da outra, arrastando-se bamboleantes, numa marcha lenta, com os motores em esforço, lutando contra a falta de consistência do terreno arenoso que cedia facilmente sob o seu peso, vencendo penosamente cada metro de picada e sacudindo a sua carga, por efeito das irregularidades do terreno, que a dureza da suspensão não compensava, ameaçando cuspir quem não se agarrasse com firmeza. A picada, nome dado às únicas estradas que por ali existiam, reduzia-se a dois sulcos profundos, abertos pelos rodados das viaturas, num percurso sinuoso pela savana, ora penetrando na mata de árvores de pequeno porte, ora bordejando a zona não arborizada, normalmente alagada, a que os locais chamavam de chana.
Era o primeiro encontro com a temível picada e todo o conjunto envolvente, verdadeira materialização do teatro de operações que, até então, se limitara a uma antevisão imaginária de densas e perigosas matas, onde deveríamos aplicar as técnicas militares aprendidas, desde o rastejar à queda na máscara, passando da cambalhota em frente ao salto de peixe e toda a panóplia de artes destinadas a baralhar o inimigo. A realidade presente revelava-se diferente, onde cada momento, cada troço daquele cenário, constituía uma sucessão de quadros, desenrolando-se à nossa volta e trazendo novas sensações, novidades, temores, êxtase, certezas e incertezas de um mundo desconhecido que, dentro de algum tempo, se tornaria familiar. Nada se parecia com a tenebrosa mata que imaginara, cerrada, ameaçadora, escondendo mil e um perigos. Pelo contrário! Ali, tudo era plano. Nem a mais pequena elevação de terreno, morro ou encosta que pudesse acoitar o inimigo. Quanto à mata, o tipo de arvoredo deixava ver nitidamente a uma distância razoável para o seu interior, reduzindo os meus temores. Apenas o capim me preocupava. Esta vulgar erva africana crescia viçosamente por todo o terreno como seara verde, atingindo com frequência altura superior à de um homem, podendo perfeitamente esconder um mundo de gente sem que se desse por isso.
Esquadrinhava cada pormenor, num misto de curiosidade e apreensão, procurando, por um lado, identificar a eventual ameaça e por outro, desfrutar de um cenário sem igual. Ora tenso, ora descontraído, embora não pensando seriamente na iminência de um ataque, agarrava firmemente a G3, bala na câmara, pronta a disparar, não fosse o diabo tecê-las. Ao meu lado, o Duarte não ia mais descontraído. Pelo menos agarrava a arma com convicção idêntica, muito embora não se vissem condições, no acidentado do terreno, que fizessem lembrar as características que, durante a instrução, aprendêramos a identificar como as que poderiam esconder uma emboscada.
A região, encalacrada entre dois grandes desertos africanos (o Kalaari de um lado e o de Moçâmedes do outro) era marcada pelas suas influências. O terreno, para além de plano, era irritantemente arenoso, definindo uma paisagem de savana que se impunha de forma evidente. Por ali, nem sequer um seixo do tamanho de um caroço de azeitona podia ser encontrado. Quanto ao resto, imperava o clima tropical, caracterizado por ter duas estações no ano: a das chuvas, quente e húmida e a do cacimbo, nome herdado da neblina que, na época seca, invadia a região e que durante a noite, especialmente sobre a madrugada, fazia baixar a temperatura ao ponto de congelar as gotas do orvalho. Aliás, as gélidas noites do cacimbo, contrastando com a canícula que se fazia sentir durante todo o dia, desde a aurora até para lá do ocaso, determinavam amplitudes térmicas impensáveis, próprias dos desertos africanos.
Castigados pelo sol inclemente, empapados em suor, ao qual se colava o pó fininho e escuro que nos envolvia, já levávamos mais de duas horas de sacudidelas por uma picada paralela à chana que, espraiando-se à nossa direita, definia os limites do domínio do rio Cúbia, cujo caudal, disfarçado no meio da vegetação, alimentava o assomo de pântano à sua volta.
As pontes do Cúbia, ponto de referência no trajecto entre a Neriquinha e o Rivungo, constituindo o único local de passagem para a outra margem, não era mais do que um amontoado de terra despejada sobre a zona alagada, formando uma espécie de barreira, no topo da qual, o tempo deixou que se formasse uma picada irregular. Ponte propriamente dita, apenas dois curtos e estreitos pontões em cimento, construídos sobre a única parte em que o Cúbia deixava ver o seu tímido caudal, cujo volume crescia significativamente na época das chuvas. Era a existência destes dois tabuleiros, construídos alguns meses antes,que justificava o facto de o local ser conhecido por pontes do Cúbia, no plural.
Por razões de segurança, (na altura, não descortinei se da ponte, se nossa em caso de ataque) a passagem por este caminho tinha de ser feita a pé. As viaturas passariam vazias e sempre devagar.
A chana do Cúbia, aumentada na sua extensão e povoada aqui e ali de manadas de animais semelhantes a grandes gazelas que pastavam saltitando dentro de água, alargava-se agora do lado esquerdo da picada.
- São songs.
Gritou o condutor, procurando sobrepor a sua voz ao barulho da berliet.
- A sua carne é excelente.
Acrescentou, para de seguida concluir.
- O pior é que só as podemos atingir no meio da água e é quase impossível ir lá buscá-las.
- Há por aqui muita caça?
Perguntei, apenas movido pela curiosidade.
- Sim, muita e variada, mas nesta altura do ano, está enfiada na mata.
- Não percebo!
Retorqui.
- Com as chuvas, há muita erva no interior da mata e os animais não precisam vir comer às chanas, onde normalmente há pasto todo ao ano.
Esclareceu.
Estávamos em Novembro, época das chuvas, não demorando muito até que começasse a chover, assim, de repente, sem aviso prévio e sem pedir licença, uma chuva diluviana, intensa, como se baldes de água fossem continuamente despejados do céu, criando uma cortina de água que apenas deixava ver alguns metros adiante. Em África é assim; num momento, impera um sol abrasador e no momento seguinte, chove a cântaros. Para nos proteger, apenas o poncho, já que, por ali, as viaturas não tinham nem pára-brisas nem tejadilho e até o capô, sobre o motor, tinha sido retirado, como forma de minimizar o seu aquecimento, levado ao máximo pelo esforço necessário para vencer a resistência daquele terreno de areia.
O Duarte, a meu lado, desabafava agastado, por não conseguir acender o cigarro que insistia em não largar mesmo debaixo daquele mundo de água. Até então, fumara cigarro após cigarro, sem os tirar da boca. As mãos, mantinha-as ocupadas a segurar a G3. Quanto ao poncho, um impermeável militar eficaz, apenas nos protegia da cintura para cima. Com a água a escorrer por todos os lados, era como se estivéssemos sentados sobre um charco. Mas isso não era o pior. A água que se ia acumulando no sulco trilhado pelas viaturas, misturada com a areia e lama da picada, era impelida para cima por acção do chapinhar dos pneus e acto contínuo, aspergida contra a nossa cara pelas pás da ventoinha, borrifando-nos generosamente com uma espécie de polme lamacento, com uma frequência irritante.
Caiu a noite, ainda mal vencêramos metade do percurso, transformando a paisagem, num escuro pesado, adensado pela persistente chuva, apenas deixando ver fugidias sombras projectadas pelos faróis.
- Uma emboscada agora, tramava-nos.
Atirou o Duarte, deixando talvez sair o temor que lhe ia na alma.
- Não creio, os turras têm medo da chuva.
Respondi, tentando gracejar.
- Achas? A esta velocidade, basta apontarem um pouco acima dos faróis e acertam-nos.
Insistiu.
- O que eu acho é que, se nós não vemos nada nesta escuridão, eles também não.
Referi, procurando justificar o meu ponto de vista.
- Tanto mais que o Castanheira e os condutores, que já cá andam há muito, parecem perfeitamente descontraídos.
Rematei.
O Castanheira era o Furriel da outra companhia, que fora incumbido de nos levar ao destino e claro, ao volante, estavam condutores dos velhinhos. Na volta, era necessário trazer o pessoal que estava no Rivungo e os nossos ainda não conheciam os itinerários.
Mais ou menos para lá de metade do percurso, uma breve paragem para uma apresentação dos agentes da PSP que, para surpresa minha, tinham por missão a defesa e apoio das populações autóctones que habitavam os três Kimbos por ali localizados: o Liahona, no outro extremo de uma extensa chana alagada, seguido, a uma distância razoável, do Mugamba e finalmente o Demba, pequenos aldeamentos constituídos por aglomerados de cubatas de capim, isolados no meio do mato. A noite, que entretanto caíra, não deixara perceber a insegurança e precariedade em que viviam aqueles agentes da autoridade (dois em cada kimbo) já que a população, vivendo no seu meio e não conhecendo outro mundo, negava-se a dali sair.
Apresentações feitas e concluída a rápida conversa de circunstância, seguiu-se viagem pela picada sinuosa, trilhada pelas berliets que pareciam conhecer o caminho, alcançando-se finalmente o Rivungo já a noite se instalara havia tempo, decorridas cerca de oito horas após a saída da Neriquinha e percorridos pouco mais de 120 Km.
A impaciência, não disfarçada, de quem aguardou o dia inteiro pela nossa chegada, apressou os formalismos da passagem de testemunho e da responsabilidade por tudo o que por ali havia. O alferes encarregou-se de receber o material de guerra, equipamento de transmissões e outras coisas. O Silva conferiu e recebeu todo o equipamento de cozinha e géneros alimentícios armazenados. O Duarte, não me lembro, provavelmente deambulou por ali. Eu fiquei com a cantina, algo surpreendido por verificar que o grosso da existência era constituído por pilhas de grades de cerveja e caixas com tabaco. Tudo o mais se resumia a meia dúzia de artigos e o frigorífico alimentado a petróleo, cuja transferência incluía uma rápida explicação do seu funcionamento e manutenção, que procurei perceber.
- E é se quiseres ter cerveja fresca! Avisaram.
Os velhinhos tinham pressa em partir, não parecendo incomodados, nem com a hora tardia, nem com o tempo ou dureza do percurso, tal era o desejo de sair dali. Conferi a lista pelos artigos que compunham o stock da cantina, assinei a guia de entrega e só algumas semanas depois é que verifiquei que a soma estava propositadamente aumentada em 1000 escudos. Era um truque muito usado nestas passagens de responsabilidade e para as quais não tinha sido alertado. Afinal, eu era um simples atirador de infantaria e não estava previsto ter de me responsabilizar pelo funcionamento de uma cantina onde se vendia tabaco, cerveja e outras guloseimas, para além de alguns artigos de higiene pessoal.
As berliets partiram, engolidas pela noite, levando de volta o grupo rendido, ao mesmo tempo que a algazarra ia esmorecendo, aos poucos, até restar um silêncio absoluto, que me deixou a estranha sensação de ter sido abandonado algures no fim do mundo. A realidade visível, pouco mais era do que um barracão comprido, coberto a folhas de zinco que abarcavam parte do estreito terreiro fracamente iluminado, onde desembocavam as portas que davam acesso à messe, cantina, caserna do pessoal e refeitório.
A escuridão não deixava ver mais. Pela minha parte, não tinha noção do que ficava à direita ou à esquerda, para que lado era o norte ou o sul. Apenas sabia que nas traseiras, para lá da cozinha, corria o rio Cuando. Os velhinhos avisaram para não nos aventurarmos por lá, no escuro. Corríamos o risco de cair pelo barranco e sermos apresentados a algum dos jacarés que habitavam o rio. Pelo sim pelo não e dado o adiantado da hora, ficámo-nos pela exploração da nossa nova residência. Três pequenos quartos, mais um, à entrada, com uma mesa ao centro, servindo de posto de comando, sala de jantar e local de ocupação das horas de ócio daquele improvisado estado-maior. A um canto, uma minúscula casa de banho bem equipada: uma sanita, um lavatório e um bidão de 200 litros cheio de água. Ah… e um balde. Ali não havia água canalizada e a utilidade do balde era óbvia. Servia para retirar água do bidão e despejá-la onde fosse necessário: na sanita, no lavatório ou por cima de nós próprios, numa espécie de chuveiro em cascata, o que cada um fez, à vez, antes de nos esticarmos em cima das camas, iguais a todas as enxergas que conheci na tropa, convencido de que, com o cansaço de tão longa viagem, adormeceria de imediato.
Não foi assim. Era a primeira vez que dormia no teatro de operações e ninguém me tirava da cabeça que a guerra estava ali ao lado. Discutíramos a defesa, distribuíram-se as sentinelas, ordens e instruções foram dadas numa improvisação de defesa e segurança do pessoal e das instalações, agora ocupadas por militares inexperientes e desconhecedores do terreno.
Procurei dormir. Contudo, a cabeça cheia de temores, incertezas, raciocínios e recapitulações da vertigem dos últimos dias e talvez o estranhar da cama, não o permitiam, não obstante o cansaço a isso aconselhar. Revolvendo-me na cama à procura da melhor posição, tentava em vão esvaziar a cabeça que persistia em imaginar cenários de ataque ao aquartelamento, sem me decidir sobre qual o lado de onde seria mais provável o inimigo atacar: se do rio, se da esquerda, se da direita. E se tal acontecesse, como deveríamos reagir? Instintivamente tacteei a arma, para me certificar que continuava ali, bem ao lado, junto à cabeceira, onde dormia e dormiria sempre, durante os longos meses que por ali andei. Adormeci finalmente, vencido pelo cansaço, já com a madrugada prestes a anunciar o amanhecer.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Do mar às Terras do Fim do Mundo

Ao fim de nove dias a lutar contra o grande oceano, o Vera Cruz estava de novo imóvel, bem agarrado ao cais de Luanda, tal como o havíamos encontrado à partida, em Lisboa. Não obstante esse facto, continuava estranhamente a sentir o balançar a que quase me habituara, sensação que se manteve por algum tempo, mesmo quando em terra firme. Por razões de logística, continuaríamos hospedados no navio até à manhã do dia seguinte, sendo bem vinda a dispensa concedida, que provocou uma autêntica debandada, ficando o Vera Cruz em sossego durante o resto do dia. Apresentei-me à cidade, percorrendo sem pressa toda a marginal que, partindo da zona portuária, parecia desaparecer ao longe, apontando o centro da cidade, espraiando-se como se desenhasse a compasso o suave arco que definia o contorno da baía, impondo-se decidida e caprichosamente sob a sombra de fileiras de esguias palmeiras, geometricamente alinhadas. Debruçados sobre o passeio, no lado esquerdo, mirando a ilha, uma correnteza de edifícios altaneiros conferia uma imagem de modernidade e fulgor, de entre os quais, o edifício do Banco Comercial de Angola que, erguendo-se majestosamente bem acima dos demais, exibia lá no topo a sigla BCA, a que alguém, com graça e imaginação, atribuíra outro significado. Bai Continuar Ainda, era uma referência à sua altura, especialmente quando comparada com os restantes edifícios da cidade. A curiosidade óbvia, associada ao ar aprazível da avenida, retardou o passo, adiando o encontro com o coração da cidade cheia de vida e animação. O movimento das ruas, as pitorescas esplanadas estrategicamente montadas à sombra de frondosos jacarandás, frequentadas em permanência por cauteleiros, engraxadores e cambistas apregoando condições vantajosas no câmbio de escudos portugueses por angolares, a animação, o barulho dos aparelhos de ar condicionado que equipavam qualquer estabelecimento - já que o calor não se anulava com uma simples sombra ou soprar de ventoinhas - compunham um cenário bem africano e estranhamente luminoso. A cerveja fresca, bem tirada e servida numa das esplanadas onde abanquei, acompanhada de saborosos camarões oferecidos em vez do tradicional tremoço, juntavam-se à sede a exigir outra rodada. Fiquei na dúvida se a oferta dos camarões era gentileza da casa, ou se, por ali, o camarão era mais barato que o tremoço. O desembarque formal, após a derradeira noite a bordo, deu início a uma nova etapa de uma viagem, ainda longe do fim, com o transporte para o Grafanil num estranho e indolente comboio, que nos transferiu para outra realidade, diferente, quente, colorida, porém não exótica e muito menos requintada. Cheiros até então não experimentados, davam-nos a conhecer fragrâncias exóticas numa mistura desconhecida de dem-dem fresco com o intenso perfume dos mangais, conluiando-se num desafio aos nossos sentidos olfactivos, à medida que o comboio rolava por carris que pareciam de brincar, contornando a urbe desde o porto e transmi-tindo uma ideia peculiar da cidade. A Luanda que passava perante os meus olhos, era marginal, diferente da que visitara no dia anterior. Em vez de prédios, tinha barracões, cubatas e putos seminus, com pele da cor da terra avermelhada que, numa correria desigual, tentavam competir com a marcha do comboio. Uma ou outra bananeira, que a ilusão da marcha projectava para trás, era motivo de espanto. A maior parte dos que agora chegavam nunca tinha visto uma. E também os cocos, encastrados lá no alto entre as folhas das palmeiras ou as mangas caprichosamente dependuradas de grandes árvores frondosas, vergando os ramos sob o seu peso. E os mamoeiros com os seus enormes frutos pendentes, mais alongados do que as papaias que eu conhecia. Esta espécie de letargia foi interrompida pela chiadeira que antecedeu a paragem do comboio, anunciando a chegada ao Grafanil, um entreposto militar a lembrar Santa Margarida, local de passagem das unidades para o interior, onde apenas estivemos o tempo suficiente para receber as armas (G3 novinhas em folha) e demais equipamento: cinturão, cantil, cartucheiras, carregadores, respectivas munições e porta granadas. Enfim, o suficiente para ficar convencido que ia para a guerra. De manhã, bem cedo, o sol ainda não despontara, arrumados em camiões de carroçaria entaipada, partimos em direcção ao sul. Neriquinha, sabíamos agora, era o nosso destino, um ponto no mapa a sueste, bem junto à fronteira com a Zâmbia. A curiosidade levou-nos a calcular a distância. Dois mil quilómetros em linha recta, mais coisa menos coisa, numa diagonal desenhada desde Luanda. O nascer do dia revelou a linha escura de asfalto que, abrindo-se ao avanço das viaturas, desenhava uma estrada feita de rectas infindáveis, num percurso ondulante, ladeado de viçosa vegetação alimentada pelas chuvas tropicais da época, deixando ver parcelas de terra de um vermelho acastanhado forte, onde aqui e ali, grupos de negros aravam culturas de subsistência. Era já noite quando alcançámos Nova Lisboa. Arrumados numas instalações militares nos arredores da cidade, dali saímos, a meio da manhã seguinte, em direcção à estação do caminho-de-ferro, após uma noite mal dormida, mas prontos para a próxima etapa que seria feita de comboio, inflectindo ligeiramente o sentido do percurso de sueste para leste. Levados com antecedência para a estação, por ali andámos, aguardando o momento da partida, numa espécie de habituação às relíquias ferroviárias dos Caminhos de Ferro de Benguela, enquanto a máquina a vapor ia devorando lenha, como que ganhando forças para rebocar uma infindável fila de carruagens e vagões que lhe tinham sido atrelados, numa prévia concentração para mais uma ligação entre a capital do Huambo e a longínqua cidade do Luso, atravessando uma zona que se dizia infestada de terroristas, o que gerou nervosismo e alguma apreensão. A eventualidade de um ataque durante a viagem, levou-me a, disfarçadamente, esquadrinhar a carruagem, dedicando maior atenção ao pormenor dos recantos da cabine onde me instalei, à procura de refúgio ou protecção para as balas que pudessem por ali passar. Rapidamente me apercebi que a carruagem não exibia qualquer buraco, maleita ou sinal de que alguma vez tivesse estado debaixo de fogo, concluindo que a frequência dos ataques ao comboio era treta, não passando provavelmente de histórias para amedrontar maçaricos recém-chegados. Fiquei mais tranquilo, especialmente depois de saber que, na frente do comboio, abrindo caminho, com alguma distância, seguia uma máquina rebenta minas, preparada para accionar qualquer engenho explosivo que tivesse sido colocado na linha. Mesmo assim, o temor de algum desses artefactos poder ser accionado por controlo remoto e logo, não anulável pelo estratagema do rebenta minas, deixou-me uma réstia de apreensão que me levou a explorar melhor os canais de fuga, designadamente as janelas ou a localização exacta das portas. Pareceu-me que, em caso de necessidade, seria mais fácil encontrar um abrigo mais seguro fora do comboio, num qualquer buraco ou atrás de um tronco que por ali pudesse existir. A viagem decorreu monótona, como monótona era a paisagem que, com o coração em sobressalto, os olhos vasculhavam de longe à procura do improvável inimigo, na inútil tentativa de identificar movimentos suspeitos para lá do verde incerto da vegetação que pudesse acoitar o atacante. Mas nada. Nem gente, nem movimento. Nem casario ou cubata. Nem estrada ou picada, vereda ou trilho que pudesse ser percorrido por quem quer que fosse. Pelo menos, da estreita janela da carruagem, não se divisava nada que pudesse constituir ameaça. O cair da noite determinou uma paragem na estação de Silva Porto, permitindo uma incursão pelo casario do povoado. Mas, naquele local, a noite tornava desertas as escassas ruas, pelo que o regresso ao comboio foi a decisão mais acertada, cada um procurando algum descanso numas horitas de sono, no desconforto disponível. Ainda era noite quando a máquina reiniciou a sua missão de reboque, parando finalmente resfolegante, como que exausta, na estação da cidade do Luso, aí nos entregando, sãos e salvos, quase trinta horas após a saída de Nova Lisboa. A paragem no Luso foi efémera, já que, no local de destino, os mais de 150 homens que iríamos substituir, aguardavam ansiosos a rendição. Os derradeiros quilómetros da jornada seriam feitos por via aérea, a bordo de uma aeronave até então desconhecida, pelo menos para mim. O Nord Atlas, concebido fundamentalmente para transporte de carga e lançamento de tropas pára-quedistas, teria de fazer várias viagens, levando uns e trazendo outros na volta, já que havia que rentabilizar meios e a lotação das instalações na Neriquinha era limitada. O meu pelotão, que fora incumbido de fazer a rendição do destacamento no Rivungo, integrou a primeira leva, juntamente com os especialistas a quem competia receber, da companhia rendida, equipamentos, material de guerra, viaturas, tachos, panelas e géneros, para além de outros artigos, artefactos, utensílios e quejandos que por ali existiam, constituindo uma multiplicidade de coisas difíceis de imaginar. Com algum receio, não sei se maior se menor, mas certamente diferente do que sentira ao acomodar-me no comboio em Nova Lisboa, tomei lugar num dos assentos de lona presos longitudinalmente à barriga do Nord, que levantou voo, no meio de um barulho ensurdecedor, num esforço para arrancar do solo toda aquela fuselagem recheada de vários contrapesos, iniciando uma viagem que ficou até agora gravada na memória. Num sacudir permanente, ora por efeito da trepidação dos motores, ora pelas manifestações atmosféricas e outros fenómenos similares, dava a estranha sensação de que viajávamos num qualquer veículo todo o terreno, percorrendo uma estrada esburacada que, não permitindo sequer a veleidade de um enjoo, ora pairava a alturas consideráveis ora, descendo abruptamente, rasava a copa das árvores, num arrepiante teste à nossa resistência, sobre uma paisagem de um verde desigual. Durante todo o percurso, não se viram povoações, construções ou outro sinal de vida, ficando a desagradável impressão de que voávamos com destino ao fim do mundo, como que a conferir validade ao nome pelo qual era conhecida a província do Cuando Cubango. De repente, no meio da paisagem plana, surgiu um minúsculo espaço, constituído por meia dúzia de barracões que, vistos lá do alto, pareciam ruínas desertas, não se divisando mais nada em redor, pelo menos até onde a vista alcançava. O coração bateu forte quando me apercebi que a Neriquinha era aquilo: o nosso destino e morada durante os longos meses que se seguiriam. Pensei que, mesmo sem guerra, deveria ser traumatizante viver ali. Se a isso juntarmos, a distância a que estávamos da civilização, o stress do isolamento, o temor do desconhecido e da eventualidade de um ataque, não andaríamos longe da definição de inferno. Estranho é que, volvidos alguns meses, passei a ver tão inóspito local como um lugar aprazível, familiar, de certa forma agradável. O homem, de facto, é um ser sensacional - habitua-se aos lugares onde tem de viver, mesmo que isso pareça impossível. O Nord aterrou finalmente na pista de terra batida de cor avermelhada, que corria paralela à cerca de arame farpado que delimitava o local, no meio de uma nuvem de pó vermelho levantado pelo rodopio das hélices, imobilizando-se em frente do que parecia ser a entrada daquele espaço, ocupado por meia dúzia de barracões cobertos com folhas de zinco e que constituíam, não só as instalações militares, mas toda a localidade a que chamavam de Neriquinha. A recepção que nos foi dispensada, pela sua peculiaridade e que eu interpretei como um “estão lixados”, deixou-me preocupado, especialmente depois de reparar numa pequena placa de madeira, rudimentar, estropiada, apontando uma direcção indefinida. Continha a inscrição: Lisboa 13999 Km.

sábado, 5 de julho de 2008

A TRAVESSIA

Das andanças da companhia na sua jornada em direcção a Angola, apenas restavam as escassas centenas de metros que distavam da Estação de Santa Apolónia até ao cais de embarque. A coluna de viaturas militares que se encarregou do transbordo, ocupando parte substancial da avenida 24 de Julho, virou à esquerda sobre a passagem de nível que levava ao porto, deixando ver, a pouca distância, a silhueta amarelo-esverdeada do Vera Cruz, firmemente agarrado aos pontos de amarração do Cais da Rocha Conde de Óbidos, aguardando imóvel por mais um punhado de gente trajando de igual, que em breve sobrelotaria a espécie de quartel flutuante em que fora transformado.
Outrora um dos símbolos da importante frota da marinha mercante portuguesa, passeara-se imponente pelas águas dos grandes oceanos, calcorreando as rotas migratórias portuguesas para o Brasil e América Central, no transporte de gente à procura de vida melhor, episódio da diáspora, na qual desempenhou um papel fundamental. Estava agora confinado à humilde tarefa de transportar tropas de e para África, soltando sem timidez o seu sonoro apito, num prolongado chinfrim que condizia com a sua altaneira figura. Pouco tempo depois, despediu-se dessas lides: Em 1973 foi vendido à Formosa onde acabou os seus dias.
A chegada ao cais deu lugar a um frenético corrupio, qual cenário teatral que se repetia sistematicamente há duas décadas e a que eu nunca assistira - são ambientes onde eu só poderia estar por ser um dos figurantes por imposição. Reinava uma espécie de confusão organizada, em que cada um procurava acomodar-se e às suas tralhas, no lugar do navio que lhe havia sido destinado: os soldados e cabos nos porões, em beliches improvisados de seis camas umas sobre as outras e os sargentos e oficiais, nos camarotes disponíveis, tudo numa correria de impaciência, na vã tentativa de esticar os derradeiros minutos, para os gastar no último adeus a familiares e amores que compunham a pequena multidão que se formara para as despedidas.
Cumprido o ritual, o Vera Cruz separou-se do paredão. Liberto das amarras que o prendiam, afastou-se lentamente, deixando para trás um esvoaçar de lenços e braços, no meio de um soluçar colectivo humedecido pelo rolar de lágrimas não contidas. Para a maioria, iriam decorrer mais de dois anos até que se reencontrassem.
À medida que, lentamente, iam ficando para trás, a Ponte Salazar, os Jerónimos, Torre de Belém e finalmente o Bugio, ainda retinha na lembrança o perfume e o quente sabor do último beijo da namoradita engatada na vizinhança do quarto que, enquanto estudante, ocupara em Lisboa, derradeira oportunidade para o apetecido contacto feminino que, durante os treze meses que já levava de vida militar, se limitara a encontros fugazes e esporádicos. Obrigado a interromper o curso para ingressar no exército, o namoro ficara sujeito a um jejum intermitente, entrecortado de quando em vez, ao ritmo das raras escapadelas a Lisboa, conseguidas ao sabor de uma boleia de ocasião, já que a viagem de comboio consumia parte substancial do fim de semana e o dinheiro do bilhete fazia falta.
Assim, a despedida feita reencontro justificava o maior calor e entusiasmo postos nos beijos de adeus. Foram também os últimos. É que, o namoro acabou quando ainda não estava cumprida metade da comissão. Na minha ausência, alguém ocupara o lugar, sinal de que a relação não tinha pés para andar - apenas foi boa enquanto durou. Via eu assim uma vantagem onde outros carpiam mágoas, não obstante a notícia ter-me feito ingerir, durante alguns dias, uma quantidade de álcool, para além da que seria razoável.
A silhueta escura das primeiras escarpas da costa Madeirense, que ao longe se desenhava, anunciava o fim da primeira etapa da viagem que duraria nove longos dias. O embarque de uma companhia independente formada na Madeira obrigara a uma escala no Funchal, propiciando, a mim e ao Gonçalves, um regresso à terra, ainda que fugaz, enquanto que, para uma grande parte daqueles turistas à força, constituiu a primeira e única oportunidade de conhecer a tão badalada pérola do atlântico.
Recostados na amurada, comentávamos a ironia do estar de volta, quando apenas tinham decorrido escassos dias desde que dali saíramos uma vez esgotadas as curtas férias de mobilização. Naquela curta estada, o Gonçalves tinha finalmente conseguido conquistar os amores da rapariga que, havia meses, pintava de cor-de-rosa os seus sonhos.
O Zé Maria, (tratava-o pelo nome próprio) não era de se gabar das suas conquistas, mas o sim que recebera, na sequência da ousadia de se declarar e a relação de amizade que nos unia – éramos os únicos madeirenses entre os cento e sessenta homens da companhia - soltou-lhe a língua, nomeando-me confidente. Quando se está feliz, não se resiste a contar e a aproximação da Madeira trouxe ao de cima recordações que a iminência do reencontro obrigou a exteriorizar, numa não disfarçada, porém contida euforia, bem visível no brilho dos olhos e entusiasmo posto nas palavras.
E não era para menos. Eu conhecia a razão de tão óbvia felicidade, como aliás, quase toda a gente na Madeira. A sua amada tinha sido recentemente eleita a mulher mais bonita da ilha, num concurso de misses muito popular na altura. Imagina-se, assim, o que ia na alma e na cabeça do Gonçalves, raispartando contra o andamento do navio, que a ansiedade retardava, pouco valendo ter-lhe feito compreender que a velocidade era superior ao que parecia.
Quatro horas, foi muito pouco tempo para quem acabara de chegar e já tinha de partir, mas suficiente para umas quantas despedidas. Para mim, a oportunidade para, num saltinho a casa, dar um último beijo à mãe - surpreendida porque já me fazia em terras angolanas - e ouvir o meu pai repetir mais uma e outra vez: “vê lá, tem cuidado”. O meu pai não era muito efusivo nem dado a dramas. Apenas quem o conhecia bem, perceberia, por detrás daquele simples conselho, o desgosto que lhe ia na alma.
Para o Gonçalves, a certeza de que o amor era coisa boa. Nunca cheguei a saber se isso tornou a viagem mais leve ou mais penosa. Por mim, inclino-me para a segunda hipótese, que isto de ser obrigado a deixar à mercê de uns quantos galifões, uma beleza daquelas, não é coisa fácil de superar e, honestamente, não se faz a ninguém. Com efeito, tal como aconteceu comigo, também alguém ocupou a vaga deixada pelo Zé Maria, quando ainda apenas tinham decorrido alguns meses. Não sei se isso lhe causou alguma mossa ou desgosto. Morreu num acidente inexplicável, lá para os lados do Rivungo, antes de ter tido tempo de me contar.
A aproximação da hora do jantar precipitou o regresso a bordo, caindo a noite quando se retomou a viagem, não demorando muito até que, da costa madeirense, apenas restasse uma sombra difusa no horizonte, dissolvendo-se lentamente na noite até desaparecer como num passe de mágica, à medida que nos afastávamos em direcção ao desconhecido, mergulhados numa escuridão que não deixava ver, nem o que nos rodeava, nem para onde seguíamos.
Com o amanhecer, mantinha-se o desnorte. Apenas o escuro da noite fora substituído por aquela imensidão de água, monótona, sempre igual, como se tivéssemos sido largados no meio de um nada rasgado pela proa do navio que, apontando uma direcção indefinida, mais parecia lutar contra forças invisíveis, escoltado por cardumes de peixes voadores que emergiam da superfície do oceano para logo desaparecerem, como se, após terem sido cuspidos pelo mar, teimassem em regressar apressadamente à fresquidão da água, fugindo ao calor.
A falta de pontos de referência dava a sensação de que não se saía do mesmo sítio, num vai e vem balouçante, que desequilibrava o andar e fazia nascer um enjoo, convidando ao vómito e condicionando o apetite, à medida que o agradável frio europeu do início de Novembro ia sendo gradualmente substituído por um calor insuportável, que aumentava de dia para dia, surgindo de braço dado com uma humidade espessa e persistente, que nos untava a pele de um não sei quê de gorduroso que só desaparecia com uns mergulhos na piscina em formato de tanque metálico, mas apetecivelmente cheia de água fresca sugada ao mar.
Nove dias, uns monótonos, outros nem tanto, um episódio aqui outro acolá, a chatice das inúteis formaturas no convés, marcadas para horas impróprias, limitadas a uma espécie de ensino teórico, baseado em recomendações sem sentido, que faziam ricochete na indiferença, visível no bocejo incontido, numa mal disfarçada ansiedade pela ordem de destroçar que, qual bênção, desencadeava uma correria à procura de uns momentos de lazer bem mais apreciados.
As noites eram preenchidas com jogatinas de lerpa ou king, jogos de cartas que muitas vezes se prolongavam pela madrugada, ou então com os inenarráveis serões, animados pelo grupo musical de bordo, tocando modinhas da época. Entre os seus membros, uma espécie de caricatura, semelhante a uma barbie com mais de sessenta anos, era o único elemento feminino a bordo. Com óbvios sinais de já ter ultrapassado o prazo de validade, exibia uma rala cabeleira loira, colocada sobre uma máscara de rímel, onde sobressaía uma boca desenhada a baton vermelho vivo, nitidamente esborratado nos cantos, encimando um corpo esquelético que se contorcia ao ritmo das batidas nas teclas do piano colocado estrategicamente à sua frente. O grupo esforçava-se por fazer com que a música convidasse à dança, onde a falta do elemento feminino, não obstava a que alguns foliões, ou porque toldados pelo álcool ou porque a galhofa a isso levava, arrancassem gargalhadas da geral, com as teatralizações improvisadas de danças de salão, com uns a tentar fazer de damas desajeitadas e outros de cavalheiros abusadores.
Magicando com os meus botões, perguntava-me, o que fazia ali aquela mulher, sozinha, no meio de um mar de tropas semi-alcoolizados, que despejavam um permanente chorrilho de palavrões. É que, na tropa, não se falava de outra maneira. Naquele ambiente, a forma mais educada de alguém se dirigir a outro, começava sempre por, "Oh seu cabrão...!"
A passagem do equador, anunciou-se sob a forma de um aumento do calor e da humidade do ar, sem que a tão falada linha mítica se deixasse ver, continuando a paisagem rigorosamente igual, quer em cor quer em textura, à medida que se povoava a imaginação de cenários de uma África desconhecida, numa tentativa de antecipação virtual das paisagens que nos aguardavam.
Os primeiros sinais de terra precipitaram uma correria à amurada, à vista da silhueta que, lentamente, em esboço, começou a desenhar-se na linha do horizonte, enquanto a monotonia azul aquática foi dando lugar a uma mancha difusa e acinzentada. A costa africana ganhava nitidez e cor a cada minuto que passava, até se transformar num castanho avermelhado, pincelado de verde, mas ainda insuficiente para satisfazer a curiosidade que nos assolava.
Luanda descobriu-se bem diferente dos cenários que virtualmente foram sendo desenhados no nosso imaginário. Por um lado, a inegável beleza dos contornos da baía, atapetada de água de um azul cristalino, numa quietude contagiante. Por outro lado, o multicolorido das típicas vestes africanas, à mistura com um trajar europeu a passar de moda, no meio de uma dominante cor de caqui, que caracterizava a indumentária do europeu transformado em africano. A temperatura, essa, continuava elevada, mas agradavelmente liberta daquela humidade irritante que nos acompanhou durante toda a viagem, como que a confirmar que, naquelas paragens, Novembro é verão e faz parte do trio de meses mais quentes do ano. Perceberíamos, mais tarde, que é também a época das chuvas diluvianas, criando um contraste climatérico até então desconhecido. Esta primeira impressão era estranha.
Pisar terreno africano pareceu-me surreal, assaltando-me um turbilhão de sentimentos, odores, cores e sons, que atropelavam os cinco sentidos, impedindo o fluir do pensamento e condicionando o raciocínio. Não era exactamente o que esperava mas, estranhamente, gostava, sem saber bem porquê, como numa espécie de amor à primeira vista que confirmava um lugar comum: ninguém fica indiferente a África. Com o tempo, confirmou-se que assim é. A relação com África foi sempre muito intensa e, como se demonstra, dificilmente se esquece.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Ainda cá estás...sabes?

O sotaque, inescondível, marcava-o desde a primeira luz da sua curta vida e levava-nos á terra da semelha com beselha, dos candeeiros e das abelhinhas.
O bronzeado permanente e natural, marcava-lhe na pele, o mar e o sol.
A calma da fala e a ponderação do gesto identificava-o como ilhéu - que o remanso da solidão e o barulho das ondas lacra na alma dos donos do oceano.
Chamava-se Gonçalves, Furriel José Maria Nóbrega Gonçalves, natural de Valparaíso, freguesia da Camacha, concelho de Santa Cruz, na ilha da Madeira.
Faleceu - vai fazer 36 anos - a 8 de Julho de 1972, no Rivungo num acidente estúpido, como estúpidos são todos os acidentes com armas de guerra na mão de militares.
O fogo da arma, roubou-lhe a chama da vida.
Ainda cá estás, entre nós!
Parece que foi ontem, sabes?

quarta-feira, 18 de junho de 2008

DE ÉVORA A SANTA MARGARIDA

O calor tórrido daquele verão alentejano, tornava penoso cada dia daqueles longos três meses de instrução, derretendo esforços, calcinando tudo e imprimindo um efeito retardador no tempo, à medida que paulatinamente iam sendo cimentadas amizades, conhecimentos e afinidades, primeiro passo para uma convivência de proximidade que comandaria, nos próximos dois anos e tal, a vivência deste punhado de homens recém-reunido.
Arrastava-se o tempo preenchido com frequentes marchas, corridas e exercícios vários, cumpridos a contra gosto, sob um sol sufocante e impiedoso, normal neste recanto lusíada, mas parecendo mais severo do que seria de esperar, percebendo-se o seu efeito no dia-a-dia de quem quer que por ali viva ou esteja de passagem, impondo de forma enfática uma drástica desaceleração de todo e qualquer movimento, secando tudo num afã impiedoso, com excepção do copioso suor dos corpos em permanente processo de desidratação. Se efectivamente África era tão quente e soalheira como constava dos compêndios de geografia, este era o melhor local para uma adequada adaptação, se é que isso alguma vez fora previsto nos gizados planos de instrução militar.
Foi ali, debaixo da inclemência do sol alentejano que a arte da guerra foi sendo ensinada em ritmo acelerado com transmissão de conhecimentos em catadupa, sob a forma de técnicas, práticas, procedimentos e toda uma panóplia de esquemas, tácticas, métodos evasivos, de defesa e ataque, num esgotante plano de instrução, repetido vezes sem conta a grupos formados em “U” ocupando cada um dos cantinhos menos castigados pelos implacáveis raios solares, numa tentativa nem sempre conseguida de transmitir a uns conhecimentos há pouco adquiridos por outros.
A liberdade chegava a conta gotas em cada fim de dia (para quem não estava de serviço) e com ela a oportunidade de, na tasca mais à mão ou numa esplanada da Praça do Giraldo, re-hidratar o corpo com meia dúzia de imperiais e regalar os olhos nas roliças moçoilas passantes, autênticos colírios para a vista de tropas que, num pavloviano salivar, sofriam com o jejum ditado pela distância das respectivas amadas deixadas em sossego (ou talvez não) na santa terrinha.
Com o fim da instrução, companhia formada, seguiu-se a derradeira etapa que finalmente nos tornaria aptos para o que desse e viesse na luta, que se queria feroz e sem tréguas, contra um inimigo distante e desconhecido. Designada por IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional) era destinada apenas a militares em vias de embarque para terras do ultramar, decorrendo esta espécie de ensaio geral no campo militar de Santa Margarida (perto de Abrantes) para onde havíamos sido transferidos numa autêntica demonstração de eficiência da logística de transportes.
Aqui, o efectivo foi engrossado com os especialistas vindos dos quatro cantos do território, também estes formados com a mesma rapidez e eficiência, em enfermeiros, mecânicos, vagomestres, cozinheiros, padeiros, radiotelegrafistas e técnicos de transmissões, já que, carpinteiros, pedreiros, barbeiros, pintores, electricistas, escriturários e contabilistas, homens honestos e alguns aldrabões, sisudos e foliões, esses compunham, mais uns do que outros, os cerca de 160 homens, metidos nesta aventura à força. Enfim, um conjunto de artífices que tornariam a 3441 auto-suficiente, no que toca às habilidades humanas que formam uma sociedade, verdadeira micro comunidade pronta a povoar qualquer deserto onde fosse largada, mas que ainda não tomara consciência do que a esperava.
Neste incaracterístico local de passagem efémera a caminho da guerra, plantado de barracões a fazer lembrar acampamentos militares exibidos em múltiplos filmes de acção, receberam-se as últimas dicas e executaram-se novos exercícios, desde acções na mata, a assaltos encenados com emboscadas e emboscados, uns fazendo de NT (nossas tropas) e outros de IN (o inimigo) exercitando e praticando o salto de viatura em andamento que, pelo menos para mim, acabava sempre com um joelho, uma perna ou outra parte do corpo ensanguentada, esfacelada ou pelo menos sem parte da pele, já que o solo não era relvado e os seixos abundavam, em resultado do permanente rodar, resvalar e derrapar dos Unimogs utilizados.
A sessão terminava com o salto do helicóptero que, para o efeito, pairava a alguns metros do solo, obrigando-nos a uma autêntica simulação de lançamento de tropas heli-transportadas para o assalto ao “objectivo”.
Completadas estas derradeiras semanas de exercício intenso entremeadas por idas ao enfermeiro que, de cada vez, nos perfurava a pele, injectando antídotos que nos dariam (deram) a resistência possível à chusma de maleitas e doenças tropicais a que ficaríamos expostos, com particular referência para a que nos imunizaria contra as picadas da mosca tsé-tsé, primeira pista objectiva relativamente ao local do território angolano onde seríamos largados, mas ainda não divulgado (a mosca tsé-tsé só enxameia certas partes do território). Aliás, só após a chegada a Luanda, seríamos informados do local que nos esperava, um recanto remoto do sueste angolano, muito a propósito apelidado de Terras-do-Fim-do-Mundo. Diziam alguns que tal sigilo era para nos proteger. Não sabendo pormenores, o inimigo estaria impossibilitado de armar uma qualquer emboscada aos "maçaricos" que chegavam. Se calhar era mesmo por isso. Durante o tempo que por ali vagueou, a 3441 nunca sofreu um desses ataques, contra os quais ensaiara, vezes sem conta, as técnicas reactivas.
Preparados para o que desse e viesse, chegou finalmente a tão esperada e prometida benesse final, para muitos a primeira oportunidade de voltar à terra após a incorporação. O direito a gozar dez dias de férias junto da família, incluía o pagamento do transporte para o local de naturalidade, quer fosse de comboio, camioneta, barco ou avião, tudo a expensas do exército.
O dia da partida chegou e com ele um verdadeiro reboliço nas casernas e camaratas, ocupando cada um num afã de arrumar malas e sacos, encafuando da melhor forma os parcos pertences de homens pouco habituados a tratar de roupas e demais preparos de viagem, tarefa que começava a tornar-se um hábito, acontecendo sempre que se mudava de local.
- Já me cheira a palha!
Gritava o Braga no meio da confusão, numa alusão aos apalpanços com que presentearia a namorada mal a tivesse a jeito.
Na camarata dos sargentos, a confusão não era menor. Apenas ligeiramente diferente, porque sempre havia mais peças de vestuário. Os praças não podiam nunca trajar à civil. Os sargentos e oficiais sim, quando não estavam em serviço.
- Vou apanhar o comboio das duas e com um bocado de sorte estarei amanhã em casa antes do almoço.
Anunciou o Silva.
- Se não houver problema nas ligações no Entroncamento e em Campanhã.
Emendou, sem querer lamentar-se por não viver mais perto.
- Cá por mim … penso estar em casa dentro de três horitas.
Retorquiu o Ramirez, confiante na capacidade e potência do seu Fiat 6oo, carinhosamente arrumado no parque destinado aos mais abastados e com o qual previa vencer os quilómetros que nos separavam de Lisboa.
Alguém alvitrou que umas cervejolas, ajudariam a encurtar o tempo e a distância.
- Cerveja, não sei … mas tenho ali uma garrafita de Brandy que pode dar uma ajuda.
Disse o Silva, numa clara atitude de concordância com a solução alcoólica para minimizar o efeito temporal do obstáculo.
- O ideal, é beberes a garrafa toda de uma vez.
Desafiou o Duarte em tom provocatório, no intervalo de duas chupadelas, naquele seu trejeito beijoqueiro com que sofregamente atacava a boquilha do cigarro que cuidava de manter sempre aceso.
- Se pensas que não sou capaz, estás muito enganado.
Respondeu em tom de desafio.
E, num crescendo estúpido de … não és capaz … sou pois … queres apostar, a teima foi arrematada. O Silva beberia a garrafa de Brandy, de uma assentada, sem nada em troca, apenas pelo desafio, naquela recorrente tendência da juventude de não medir as consequências de palavras e actos impensados.
Desenroscou a tampa, levou a garrafa à boca e sem a mínima hesitação engoliu todo o líquido, num glu glu ritmado, até não restar gota.
- Vês, como fui capaz! Vangloriou-se da façanha.
A aparente lucidez exibida, cessou de repente. O corpo atarracado do Silva foi repentinamente acometido de um frenesim louco. Atirava-se contra tudo o que o rodeava, cabeceava violentamente paredes e armários, ao mesmo tempo que soltava gritos roucos de autêntica demência. A loucura acabou em pouco mais de dois minutos, com um par de cabeçadas no velho e frágil roupeiro que compunha a escassa mobília da camarata, destruindo-o parcialmente. Caiu desamparado no chão e não mais se mexeu, em evidente coma alcoólico.
Fez-se um breve silêncio de imediato quebrado por alguém que exclamou:
- Não há problema! … respira!
Numa altura em que todos aguardavam ansiosamente o transporte que nos levaria ao comboio, gerou-se uma certa apreensão.
- E agora?
Diz o ditado que "ao menino e ao borracho, põe sempre Deus a mão por baixo”. No caso do Silva, valeu-lhe o facto de existir um pequeno grupo de praças que, residindo para os mesmos lados, já tinham mais ou menos combinado fazer a viagem em conjunto. Um segurou-o pelos sovacos, outro pelas pernas, os restantes carregaram os pertences e assim o levaram inanimado. Contaram-nos depois, já em pleno alto mar, que o Silva dormiu o caminho todo e nem acordou quando o comboio parou na derradeira estação. Quanto ao efeito … foi drástico. Penso que nunca mais ninguém o viu beber uma só gota de álcool. Deve ter sido o único da companhia que nunca se embebedou durante os dois longos anos em que nos mantivemos juntos por terras de além-mar.