quarta-feira, 16 de março de 2011

Ruinas da Neriquinha

Há muito tempo que procuro imagens actuais da Neriquinha recorrendo às facilidades que o Google Earth disponibiliza. Mas em vão. Consegui identificar o local mas a imagem não passava de um borrão que nada deixava ver. Apenas quem, como nós, por ali andou, conseguia reconhecer os sinais no meio do verde que escondia o local. Pelo menos até agora.
Finalmente o satélite da Google andou pelas imediações e embora ainda não seja absolutamente nítido, é já possível visualizar as ruínas daquilo que foi a nossa morada por uns longos dezoito meses distribuídos pelos anos de 1971 a 1973.
Vê-se nitidamente que a mata invadiu o local e tudo o que não era construção de cimento e tijolo desapareceu. Mas lá estão, nítidos, os restos do edifício da FAP, da messe, da casa dos oficiais, do depósito de géneros e transmissões e até da cozinha, sendo ainda visível o chão de cimento do refeitório e os restos da ferrugem. Tudo o mais desapareceu, incluindo o chiado, o depósito da água e naturalmente o kimbo.
Fica provado que a população apenas ali estava pela proximidade da tropa. Na verdade as suas actividades agrícolas e de caça, desenvolviam-se fora dali, nos locais das lavras, para onde parece que se deslocaram quando a tropa abandonou o local.
O Google mostra claramente o kimbo que se formou junto às margens do Rio Cuando, no local que designávamos por Neriquinha Velha. Na verdade, tratava-se da verdadeira Neriquinha, onde a população mantinha as suas lavras e criava gado.
O mais curioso é ver o que se encontra seguindo o curso do Rio Cúbia pela margem esquerda, desde as pontes até Mavinga. Nesse percurso, encontrei pelo menos três kimbos que me lembro não existirem na altura.
Pelos vistos a população voltou aos seus hábitos ancestrais, viver junto do local onde se dedicam às suas actividades de mera subsistência.
Tenho a certeza que são felizes.

terça-feira, 1 de março de 2011

O unimog da PSP caiu ao Rio

Já o disse várias vezes: o Rivungo era uma circunscrição com Administrador, PSP, tropa, marinha e um rio caudaloso. Pode parecer pouca coisa, mas marcava a fronteira entre, digamos, um buraco e um local onde se poderia viver. Era uma localidade com população civil própria, autóctone, mas própria, enquanto a Neriquinha não passava de um acampamento militar cujas tendas haviam sido substituídas por barracões, um par de anos antes, atraindo uma população mais ou menos nómada que se fixou logo ali, a seguir ao arame farpado, beneficiando de alguma segurança (se é que dela precisavam) e das facilidades propiciadas pela logística militar. Entre elas, a água canalizada a partir de um depósito metálico encavalitado numa estrutura de ferro e uma pista de terra batida onde, de quando em quando, aterravam aviões que faziam a ligação ao mundo exterior.
No Rivungo não havia pista, pelo menos coisa que fosse digna desse nome. Apenas uma pequena clareira no meio da mata a cerca de dois ou três quilómetros da periferia, permitia a aterragem dos pequenos puxa-empurra que nos traziam o correio e pouco mais. Era uma chatice, já que, sempre que estava para chegar o avião, era destacada para a necessária segurança uma equipa composta por quatro militares, chefiados por um furriel. É verdade, todas as terças e quintas e sempre que qualquer pequena aeronave por ali aportasse, a equipa de prevenção encavalitava-se no pequeno unimog que acelerava pela picada irregular procurando chegar ao local de aterragem antes da aproximação do avião, postando-se aí em formação defensiva para que aterrasse em segurança. Na verdade, nunca me pareceu que protegesse grande coisa. Eram apenas quatro homens que só conseguiam cobrir a zona onde o avião se imobilizava, ficando todo o comprimento da pista desprotegido. De qualquer forma, se nos atrasássemos, o Barros não aterrava, voando em círculos até que chegássemos ao local. Noutras alturas, aterrava mesmo assim.
A sorte era haver sempre voluntários. Desejosos de tocar o correio metido dentro do saco cinzento que o piloto entregava ao furriel, estavam sempre prontos. Mal chegava a mensagem via rádio, agarravam na G3 e corriam para o pequeno unimog. Ali chegados e sempre no local onde se sabia que sistematicamente o avião parava, dispunham-se os escassos homens dos dois lados do campo e esperava-se com alguma impaciência a chegado do Cessna. Toda a manobra de aterragem, entrega do correio e levantar voo de novo, não demorava mais de cinco minutos; noutro ponto, outros aguardavam ansiosos a chegada das preciosas notícias. Assim, mal o avião ganhava velocidade, subia-se para a viatura aí se aguardando que o avião se elevasse no ar, iniciando-se de imediato o regresso, no máximo da velocidade permitida pela picada esburacada em direcção ao aquartelamento, com pressa de ler as notícias.
Até que um dia chegaram ao Rivungo vários camiões transportando máquinas, escavadoras, niveladoras, pás basculantes, um cilindro e homens para trabalhar. Uma equipa de construtores e toda uma parafernália de geringonças que começaram, logo ali ao lado do Kimbo, na orla da mata, a deitar abaixo árvores, limpar e aplanar o terreno livrando-o de tudo o que pudesse atrapalhar. Enfim, um corrupio e uma azáfama nunca vistos por aquelas bandas.
É verdade, fora decidido construir uma pista de aviação a sério, grande, e ali pertinho, o que iria dispensar a correria pela mata em direcção à clareira isolada. Sim, uma pista de terra, mas nova, bem construída, de propósito e não uma simples clareira que tinha de ser capinada sempre que as ervas, regadas pelas abundantes chuvas, se atreviam a brotar com maior viço.
No Rivungo, também não havia água canalizada. Provavelmente a proximidade do rio e a abundância de água fresca, potável e acessível, não motivou ninguém a exigir a construção de um qualquer sistema que permitisse esse luxo e as autoridades administrativas, por seu turno, também nunca tomaram a iniciativa. Nem sequer um simples depósito, por mais artesanal que fosse. O da Neriquinha não era lá grande coisa, mas servia na perfeição.
Água no Rivungo tinha de ser retirada do rio, em baldes e transferida para bidões estrategicamente colocados onde fosse necessário. Se a memória não me atraiçoa, nas nossas instalações havia uns três e chegavam para o gasto. A proximidade do Rio facilitava o seu enchimento feito a poder de trabalho braçal do garoto da messe e ajudantes da cozinha num vai e vem, encosta abaixo, encosta acima.
A tropa, porque instalada mesmo à beira do rio, tinha o acesso facilitado, mas a PSP, não. Costumavam abastecer-se nas cercanias do ancoradouro da Lancha, dentro do perímetro da marinha, no local que elegemos como a nossa estância de veraneio privativa. Ali tomava-se banho, nadava-se e mergulhava-se de uma prancha de saltos improvisada. O caudal era forte e garantia a recolha de água não estagnada, muito embora, a pujança do Cuando trouxesse em permanência água fresca sempre renovada a qualquer ponto da sua passagem serpenteante.
Utilizavam quatro ou cinco bidões de 200 litros que carregavam, vazios, na pequena carroçaria do unimog que descia em marcha-atrás pelo declive até à babugem. Aí, com recurso a baldes e ajuda dos serviçais, iam lentamente enchendo os bidões até ficarem a transbordar. Depois, com o motor na sua máxima força, arrancavam lentamente encosta acima, transportando o precioso líquido para as suas instalações no outro lado da localidade.
Naquele dia, as coisas não correram bem ao condutor, um PSP negro e corpulento, espécie de amanuense, com funções de cozinheiro que se encarregava das tarefas com características mais domésticas.
Por razões que as leis da física poderiam explicar, a estrutura da viatura foi cedendo à medida que o aumento gradual do peso da água foi exercendo pressão sobre o velho unimog.
De repente, os travões cederam e o unimog moveu-se, desequilibrando os bidões que rolaram sobre a carroçaria precipitando-os no rio e obrigando a viatura a descair até os rodados traseiros galgarem o degrau barrento da margem. Só não capotou, porque a queda de dois ou três dos bidões aliviou o esforço da viatura que ficou em equilíbrio instável quase na vertical, com um rodado da frente no ar e os dois traseiros dentro de água, assentes na espécie de plataforma com cerca de 20 cm de água que antecedia a profundeza do leito do rio.
Do sítio onde estava, já não sairia pelos seus próprios meios e a posição em que ficou piorava as coisas. Sá havia uma solução: o recurso às máquinas de serviço às obras da nova pista. Felizmente que estavam ali, à mão, e qualquer delas com força suficiente para resgatar do rio o velho unimog.
Para o efeito, foi escolhida uma caterpillar, de pá basculante e pneus enormes, estacionada logo acima, junto com algumas das demais. Era fim do dia, os trabalhos tinham sido interrompidos e as máquinas deixadas em descanso. O manobrador, chamado para a prestação de auxílio, se calhar habituado a operar a máquina nas infindáveis planuras do Cuando Cubango, esqueceu-se que naquele local o terreno não era plano nem arenoso como tudo o resto e que os travões a ar precisavam de algum tempo para ficarem operacionais. E o pior é que estivera parada durante todo o dia, provavelmente por não ter sido necessária.
Ligou a máquina, elevou a pá, manobrou-a e dirigiu-se às arrecuas em direcção ao rio. Mal começou a descida, ganhou velocidade e no momento em que precisou dos travões, não tinha. A máquina descontrolada ganhou vida própria, saltando e balouçando perigosamente a cada acidente do percurso, perante o ar assustado do homem que, carregando desenfreadamente do pedal do travão, nada podia fazer para a deter.
Cá em baixo, no intervalo de um mergulho, apercebemo-nos que a máquina não iria parar. A velocidade cada vez maior e o ar de desespero do manobrador eram disso sinal evidente. Na dúvida, cada um fugiu para seu lado, procurando adivinhar a trajectória da besta, deixando-lhe caminho livre.
Excepto o infeliz Unimog. Impossibilitado de sair dali, foi abandonado à sua sorte. Ainda assim, valeu-lhe alguma perícia do manobrador da máquina que, no último momento, com um golpe no volante, evitou o abalroamento.
Mas não foi suficiente. Um dos grandes rodados atingiu de raspão o unimog e a pá, no seu balanço descoordenado, deu-lhe um último safanão empurrando-o perigosamente para a água.
Não sei como, mas a verdade é que, no momento em que toda a gente pensava ver a máquina no fundo do rio, esta imobilizou-se, beneficiando talvez da ajuda, sabe-se lá como, oferecida pela resistência do vulnerável unimog, que travou de alguma forma a sua marcha desenfreada, acabando por ficar perigosamente semi-submersa, com o motor a resfolegar ofegante como que a refazer-se do susto.
Foi preciso uma segunda máquina, esta de lagartas que, oferecendo a segurança de se sentir bem em qualquer terreno, desceu lentamente o declive e rebocou as viaturas acidentadas, retirando-as da sua posição incómoda: primeiro a máquina antes que o rio a levasse e depois o unimog.
Não me lembro como o pessoal da PSP se desenrascou naquele dia sem água, mas sei que os bidões que caíram lá ficaram, submersos, na parte mais funda do leito do rio e de onde nunca mais saíram. Se calhar ainda lá estão.