quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Neriquinha - Subsistência

A dieta alimentar da população da Neriquinha, era limitada.
A agricultura, meramente de subsistência, resumia-se à plantação de dois cereais: o milho e uma espécie de sorgo por ali chamada de massango. Transformados artesanalmente em farinha, cozinhavam uma papa de aspecto duvidoso que constituía uma dieta alimentar muito pobre.
Tirando isso, a mata fornecia tudo o mais.

A caça constituia a única fonte de proteínas. Mas, não obstante ser abundante na região, os métodos rudimentares de caça não garantiam muita frequência no abastecimento. Por isso, não eram esquisitos Qualquer animal que conseguissem apanhar virava refeição, como foi o caso do hipopótamo que resolveu invadir as lavras da Neriquinha Velha.Frutos silvestres não abundavam, mas as árvores do MABOCO cresciam por ali, disseminadas pela mata. Sabiam onde estava cada uma e o primeiro a chegar colhia tudo o que podia transportar

terça-feira, 1 de novembro de 2011

O resgate da avioneta

O Cuando Cubango, pelo menos no espaço que vai do Kuito Cuanavale até ao Luiana, é dominado pela savana. São extensões a perder de vista de uma paisagem plana e monótona, caracterizada por uma vegetação pouco densa, onde as chanas constituem clareiras extensas, maioritariamente atravessadas pelos inúmeros cursos de água que se passeiam indolentes sem rumo definido num terreno isento de pontos de referência.
Vista de cima, cada chana parece igual a todas as demais e as poucas particularidades que as diferenciam raramente servem de orientação a quem quer que por ali se aventure. Por esse facto, sobrevoar aquele território obriga à utilização dos instrumentos necessários à orientação do voo.
Naquele tempo, o Barros, piloto da TASA, seria o único que se atrevia a dispensar essas sofisticadas modernices. Trazendo-nos o correio duas vezes por semana, conhecia a savana como a palma das suas mãos, sabia de cor e salteado as chanas que se sucediam desde o início do percurso até à ultima e mais remota localidade e era capaz de identificar exactamente quais as clareiras onde poderia aterrar o seu pequeno Cessna em segurança, se fosse caso disso.
Mas isso era o Barros. Qualquer outro que cruzasse os ares da savana tinha de saber utilizar os instrumentos de navegação, caso contrário, o risco de se perder era real. E foi isso exactamente o que aconteceu. Certo dia, não sei como nem porquê, um pequeno monomotor pertencente a uma pequena companhia de táxis aéreos de Serpa Pinto, pilotado por um novato naquelas andanças, levantou do Rivungo com destino à Neriquinha. Consigo trazia dois passageiros, um deles, o Camassango, técnico para as questões da agricultura que, finda a sua comissão no Rivungo, regressava a Serpa Pinto.
O piloto orientou o pequeno avião na direcção nor-noroeste, seguindo à vista as chanas que se sucediam, as quais, de acordo com o mapa que tinha à sua frente, indicariam a direcção da Neriquinha. Mas, por razões que desconheço, foi-se desviando pouco a pouco do rumo certo. Crê-se que por alturas do Cúbia, inclinou ligeiramente o avião em direcção a oeste e sem se dar conta do engano passou a sobrevoar uma sucessão de chanas que o foram afastando do rumo que pretendia seguir até que se viu perdido. Andando em círculos, sobrevoou o rio Uefo, passou ao Dima e acredita-se que planou desorientado sobre os rios Capembe e Matungo até que, esgotado o combustível, acabou por se despenhar nas chanas alagadas do Utembo, quase no limite da nossa área de intervenção, alguns quilómetros a sul do local que denomináramos de esquadrão, por ali ter estado instalada uma base inimiga por nós destruída alguns meses antes, numa operação de grande envergadura.
Foi pedida ajuda à Força Aérea que disponibilizou um velho PV2, a empresa proprietária do aparelho destacou duas pequenas aeronaves, assentaram as bases na Neriquinha e lançaram-se na busca dos destroços do avião sinistrado, varrendo toda a área possível e vasculhando lá dos céus cada recanto da savana.
Só ao fim do terceiro dia de buscas, o PV2 avistou os três ocupantes do pequeno avião, deambulando perdidos numa clareira e que entretanto, quase mortos de fome e cansaço, se haviam afastado bastante do sítio onde tinham caído. Foram lançadas rações de combate que os três devoraram com sofreguidão acabando por serem recolhidos pouco tempo depois por um helicóptero da Força Aérea que os trouxe para a segurança da Neriquinha.
Fui esperá-los à pista. Conhecia bem o Camassango, pelo menos o suficiente para estar preocupado. Ao menos queria saber se estava bem. Coxeava ligeiramente, tinha umas quantas nódoas negras, uns arranhões, mas não tinha nenhum osso partido nem ferimentos graves. Em boa verdade, os três, para além do grande susto, apenas foram atormentados pela fome já que, água, havia em abundância, especialmente naquela época do ano. Estavam todos sujos, a roupa mal tratada, apresentavam um ar cansado e nitidamente empalidecido. Três dias sem comer tinham deixado as suas marcas. Ao longo dos dias em que deambularam pela mata, ainda tentaram apanhar a única coisa que lhes apareceu pela frente; uma espécie de ratazana que costumava escavar pequenos túneis nas bermas das chanas e a que nunca demos importância. Pelos vistos não chegaram a apanhar nenhuma e água foi a única coisa que conseguiram ingerir ao longo de todo o tempo que andaram perdidos.
Agora, passado o pior, importava recuperar a carcaça da pequena avioneta. Não era conveniente deixá-la ali e os seus donos faziam questão de a reaver. Não ficara muito danificada e a sua reparação mais do que se justificava.
O problema residia apenas na forma de arrancar o avião do sítio onde estava e trazê-lo até à Neriquinha, tarefa que nos foi confiada. Com efeito, o local era distante e de difícil acesso mas a nossa companhia era a única que teria condições de lá chegar, não obstante o único equipamento disponível se resumir às berliet’s, sem dúvida o único meio de transporte capaz de levar a cabo a missão, embora nos parecesse serem um pouco curtas para o efeito. Transportar um avião acidentado às costas daquelas viaturas, pelos percursos sinuosos da savana, não seria pêra doce.
Para a operação foi designado o furriel Leitão à frente de um grupo de homens do seu pelotão o que o deixou furioso. Pouco tempo antes, todo o seu grupo de combate, chefiado pelo alferes Aranha, estivera envolvido numa das operações mais difíceis da companhia, levada a cabo lá para os lados do Tossi e que tivera como objectivo perseguir o grupo do Kuenho que, um dia antes, emboscara e matara doze GE’s dos grupos de Mavinga e da N’Riquinha, no qual se incluía o nosso Fulay. E, exactamente por isso, ter de alinhar de novo, não agradou ao Leitão.
Ficou furioso, perdeu a sua costumeira postura pacífica e resolveu questionar o capitão. Procurámos acalmá-lo, dissuadi-lo, apresentando argumentos, justificações, pontos de vista. Até se tentou encontrar as razões que teriam levado o capitão a escolhê-lo. Mas nada parecia acalmá-lo, ripostando irado com uma espécie de jargão muito seu, que usava quando discordava de qualquer coisa.
- Não há nem meio !
Nitidamente exaltado caminhou em direcção ao gabinete do capitão decidido a levar avante a contestação, esquecendo-se que, na tropa, ordens não se discutem. Mas de nada lhe valeu refilar. Parece que efectivamente não havia outra escolha. Conformou-se, acatou a ordem, preparou a equipa à qual foram afectos dois mecânicos, um enfermeiro e um rádio-transmissões. Carregaram duas berliets com ferramenta, cordas, dois bidões de gasóleo, lanças de reboque e tudo o mais que se pensou poder vir a ser necessário e lá partiram, determinados a trazer a carcaça acidentada, custasse o que custasse.
Saíram, bem cedo, muito antes do sol nascer, seguindo em direcção às pontes do Cúbia, tomando depois a picada por nós aberta nas idas ao esquadrão e continuando para montante ao longo do percurso irregular e sinuoso do Cúbia.
Rodaram durante todo o dia, chegaram às chanas do Dima e continuaram para sul ultrapassando os limites já nossos conhecidos e que havíamos palmilhado aquando das incursões para os lados do esquadrão, mas agora prosseguindo a corta mato, abrindo nova picada sobre as orientações do guia, até à zona mais a sul do rio Dima.
De acordo com a informação passada pela Força Aérea, sabia-se que o avião estava semi-submerso e admitia-se que esse factor viesse a dificultar a sua recuperação. Não se conhecia a zona nem os eventuais obstáculos à progressão das viaturas, sua extensão e forma de os contornar. É que, visto de cima, tudo parecia fácil e acessível. Cá em baixo, a vegetação esconde os acidentes do terreno, as armadilhas das chanas pantanosas, os lamaçais disfarçados, os acidentes de terreno que as viaturas não conseguem vencer e os pequenos cursos de água difíceis de rodear. Ali não havia pedras ou terreno consistente; apenas areia, charcos e lodaçais.
Estávamos no tempo das chuvas e as chanas estavam alagadas, perigosas, aconselhando a rodar com as devidas cautelas e distâncias. Qualquer percurso mais baixo e fora do arvoredo podia ser uma armadilha lamacenta para as viaturas. Mas, ao fim de algum tempo e, creio, alguma persistência e com os preciosos conhecimentos do guia, lá encontraram o pequeno monomotor, meio submerso numa extensa chana alagada, algures já nos domínios do rio Utembo.
Tirá-lo dali e carregá-lo sobre uma das berliets, era agora o problema a solucionar. Não sei exactamente como o fizeram, mas lembro-me do Leitão ter contado que o pessoal livrou-se de camisas e peças de roupa inúteis, entrou naquela imensidão de água acumulada pelas recentes chuvas e que o desabrochar do capim verde fazia lembrar um extenso arrozal, desmontaram as asas, puxaram o resto da carlinga à força de braços e alguma imaginação, encaixaram sobre a carroçaria os restos do avião e encetaram a viagem de regresso, seguindo em sentido inverso o mesmo percurso sinuoso de volta à Neriquinha.
Foi com algum alívio que os vimos surgir, ao longe, envoltos numa nuvem de pó por entre a erva verde que bordejava a chana. Na verdade, não os esperávamos tão cedo, já que se admitia que o desconhecimento da zona e a esperada dificuldade em chegar ao local os retardasse mais algum tempo. Pelo menos e não apenas por mera precaução, tinham carregado mantimentos para mais uns dias.
Mas pelos vistos, tudo terá corrido pelo melhor. Estavam de regresso mais cedo do que o esperado, o que significava que afinal as dificuldades encontradas não foram tantas quantas as esperadas. Ouvi o Leitão referir que encontraram rapidamente o avião, bem visível a escassas dezenas de metros da orla da mata, semi-submerso numa zona alagada mas de pouca profundidade.
A curiosidade levou-me até junto dos recém chegados que, com ar visivelmente cansado se apeavam das viaturas. Sobre uma delas, com parte da cauda suspensa a sobrar da carroçaria nitidamente mais curta, lá vinha a carlinga amarelada do pequeno avião, desmembrado e inerte, mas pouco amachucado face ao que seria de esperar. Com efeito, parece que a água amorteceu a queda e as asas, arrumadas lateralmente apenas tinham sido separadas para possibilitar o transporte. Compreendia-se agora a razão pela qual os três ocupantes não apresentavam ferimentos de monta. Na verdade foi mais o susto que outra coisa.
O pequeno avião, sem asas, ali ficou por uns tempos, arrumado a um canto, umas duas semanas ou mais, até chegar um Nord Atlas da Força Aérea que o levou. Deu algum trabalho enfiá-lo na carlinga barriguda do Nord. Disso lembro-me perfeitamente. Um avião metido dentro de outro é a curiosa imagem que retenho.
Fiquei a ver o Nord correndo pela pista até levantar voo naquele movimento pesado a que semanalmente assistíamos desde que ali chegámos. Mas desta vez, passou-me pela cabeça uma imagem a fazer lembrar uma cena de canibalismo. O barriga de ginguba levava no seu ventre outro da sua raça. Só que mais pequeno.