segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O assassino do Bacalhau foi descoberto

Todos temos ainda a ingrata memória do assassinato do Virgílio Cabral, conhecido entre os seus companheiros da guerra como o “Bacalhau”, barbaramente assassinado a golpes de faca que deixavam transparecer uma raiva selvagem, o bastante para ser notícia de primeira página de jornais.
Passado todo este tempo, cumpre dar a notícia que, após aturadas investigações, a Polícia Judiciária descobriu o assassino. Afinal, era alguém que o infeliz do Virgílio costumava levar lá para casa. Parece que o móbil principal do crime teria sido o furto de umas economias, imprudentemente guardadas numa gaveta qualquer.
O autor de tão selvática atitude encontra-se preso no Brasil, país de onde é oriundo e para onde fugira após a bárbara matança.
O Virgílio pode agora descansar em paz; afinal, algo a que todos têm direito

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Missão no Chipundo

Recordo o Chipundo como uma espécie de derradeira fronteira. Localizado lá bem para baixo, a sul do Rivungo, no limite inferior, espécie de extrema da área operacional atribuída à companhia, era, bem se pode dizer, um verdadeiro fim-de-mundo plantado no próprio fim do mundo, usufruindo da mansuetude refrescante do Rio Cuando que, no seu indolente serpentear em direcção a sul, ali tocava a margem que definia o perímetro do aldeamento. O Chipundo era um aglomerado de palhotas de capim, de maior dimensão que um simples kimbo e, por isso, tinha um administrador de posto e um pequeno efectivo da PSP, ambos dependentes das chefias administrativas e policiais estacionadas no Rivungo.
Ao longo das duas comissões, se assim se pode chamar às duas vezes que coube ao meu grupo de combate guarnecer o nosso destacamento na pequena povoação do Rivungo – seis meses ao todo – fui mandado ir ao Chipundo, umas quantas vezes. Uma delas, para recolher e levar dali o Land Rover da PSP, estropiado na sequência do acidente que matou o subchefe, retalhado pelos estilhaços da granada que, por incúria sua, explodiu dentro da cabine da viatura e a outra, a que inspirou esta crónica, incumbido de uma missão de patrulhamento e segurança – para marcar presença – daquelas a que se dava o nome de “acção”, designativo de uma operação militar de pouca importância.
A picada que levava ao Chipundo atravessando sempre a mesma savana, plana e agreste, sempre me deu a sensação de ser a descer, não obstante nada naquele percurso subisse ou descesse. E, no regresso, pelas mesmas razões, parecia-me sempre a subir. Mas era apenas impressão minha, uma espécie de armadilha do subconsciente, talvez condicionado pelo facto de, aquele caminho levar ao sul e às terras do Luiana, lá, junto à Faixa do Caprivi, vizinha do grande delta do Okavango, bem longe da área que nos cabia, já de si demasiado extensa.
O facto é que a picada, essa, serpenteava caprichosa, como aliás qualquer caminho que por ali existisse, umas vezes areenta e cansativa onde as viaturas se enterravam lavrando areia seca e fofa, noutras lisa, bordejando as chanas secas para, mais à frente, atravessando charcos e arroios, se transformar em lamaçais insuspeitos. Não sei porquê, mas foi o único sítio onde me deparei com ameaçadoras manadas de búfalos pastando, indolentes, e bandos de pequenos e pacíficos macacos, às centenas, saltitando de árvore em árvore.
Como de costume, saímos cedo, arrumados no pequeno unimog do destacamento, com a capacidade exacta para transportar o grupo designado para a missão: eu, um cabo, quatro soldados, o condutor um transmissões e um enfermeiro, alcançando-se o Chipungo em pouco menos de quatro horas, onde o pessoal da PSP já nos aguardava expectante frente ao pequeno posto localizado do lado direito do aglomerado de cubatas, não muito longe da orla da mata.
Ficámos por ali um bocado. Um dos objectivos era exactamente o de marcar presença, coisa que não exigia grande esforço. Naquele lugar, tão remoto, a chegada da tropa era sempre um acontecimento e creio que os ouvidos apurados da população já há algum tempo haviam identificado a nossa aproximação denunciada pelo barulho do motor do unimog que não se confunde com qualquer outro. Preguiçámos por ali, almoçámos, aproveitámos o ensejo para contar as poucas novidades, usufruiu-se da permanente boa disposição do subchefe e recuperámos da viagem que não fora, e nunca era, propriamente um passeio.
Mas era necessário dar continuidade à missão. Rumámos a sul, seguindo a picada que, iniciando-se na orla da mata, serpentava pelo capim e rolámos durante algum tempo, o suficiente para se perder de vista as cumieiras de colmo das palhotas do kimbo. Saímos da picada e penetrámos na mata até se encontrar um local com sombra logo ali à beira de um riacho que me limitei a supor ser um daqueles braços de rio abandonados pelo caudal principal do Cuando. A nossa missão não tinha propriamente um objectivo determinado por um qualquer ponto a atingir. Limitava-se a estar presente, andar por ali, mostrar que a tropa não se confinava ao sossego do aquartelamento e, para ser honesto, estarmos ali, ou mais abaixo não tinha diferença e não comprometia o cumprimento da missão.
Instalámo-nos, cada um escolheu a melhor sombra, escrutinámos cuidadosamente todo o espaço à volta para evitar surpresas desagradáveis, cuidou-se da segurança definindo as escalas de sentinela, estendeu-se por sobre as árvores a antena do rádio, na altura, um moderno Racal TR28, estabeleceu-se contacto com a base informando da nossa posição e por ali molengámos até que a noite caiu.
Aquela noite foi um inferno. Caiu uma chuvada e com ela o desconforto de um friozinho austral pouco agradável, embora eu estivesse preparado para isso; vesti uma camisola de lã junto ao corpo, por cima enfiei a camisa do camuflado e, por cima desta, o dólman que, reforçado por uma camada de entre-tela, garantia uma protecção extra contra o frio e uma barreira contra as ferroadas das melgas. Enterrei o quico na cabeça, enrolei-me no poncho e procurei dormir. Consegui, mas por pouco tempo, o suficiente para as melgas me descobrirem. Rondaram zumbindo a noite toda à procura de sangue fresco, esbofeteei-me mais vezes do que desejava, enrodilhei-me o melhor que pude na protecção impermeável do poncho mas nada as demoveu. Quando o dia clareou e o frio da noite se foi, todos exibiam o rescaldo da luta travada contra o mosquitame. As bolsas de sangue das melgas esborrachadas à bofetada, tinham deixado, na cara de cada um, a sua marca sob a forma de riscos a fazerem lembrar pinturas índias. A princípio, cheguei a admitir que escolheramos mal o lugar para pernoitar mas, bem vistas coisas, melgas haveria sempre, mais perto ou mais longe da água e, pelo menos da sombra, não nos podíamos queixar.
Considerei que a missão estava cumprida e regressámos ao Chipundo. Ainda tínhamos muitas horas pela frente até chegarmos ao aconchego dos lençóis à nossa espera no Rivungo. E dava jeito lá chegar a tempo do jantar. Fizeram-se as despedidas e o condutor pôs o unimog em marcha em direcção à picada que nos trouxera até ali. Olhei de relance e julguei perceber um aceno de despedida do subchefe da PSP.
Seria a última vez que o veria vivo; aquela granada, estupidamente negligenciada, haveria de o matar antes que voltássemos a nos encontrar.

domingo, 1 de novembro de 2015

As armadilhas da chana II

Muito haveria ainda para dizer sobre as particularidades das chanas do Cuando Cubango. Será talvez mania minha insistir nisto mas, a verdade é que ainda recordo, quase em detalhe, aquelas imensidões que nem o arvoredo se atreve a incomodar. Começando num verde luxuriante no pico da época das chuvas, aquelas cearas de capim viçoso, mudam de cor ao sabor dos equinócios, esmaecendo num processo que as vai matizando lentamente de amarelos tímidos até adquirirem aquele ocre de restolho seco que enegrece por efeito das grandes queimadas, voltando a rejuvenescer com as primeiras águas da época seguinte. É uma natureza que, morrendo pelo fogo, renasce das cinzas, exuberante e pujante como se o fogo lhe conferisse vitalidade.
Eram estas mesmas chanas que, formando uma intricada e caótica sucessão de espaços impossíveis de contornar, se interpunham no nosso caminho, dificultando o andamento das viaturas, como se, resistindo, se procurassem vingar da nossa intromissão que, bem se pode dizer, profanava a quietude daquele mundo selvagem, sobrepondo-se ao suave murmúrio do roçagar do capim embalado pela brisa amolengada por força do calor sufocante que chegava a calar o cucuritar das rolas empoleiradas no esparso arvoredo circundante. O facto é que, para se ir a qualquer lado, não havia forma de seguir em frente sem as atravessar já que, a tentativa de as contornar aumentava a distância e não se resolvia a questão. Podia-se evitar atravessar uma chana, mas caía-se necessariamente no meio de outra.
Com o tempo, aprendemos a conhecê-las, especialmente as que se atravessavam no caminho que nos levava ao Rivungo, local onde, para além da Marinha, da PSP e da PIDE, existia um destacamento da companhia da Neriquinha. Explica-se assim porque se conhecia bem aquele caminho de longo tracto.
Cruzávamo-lo com frequência, não só pela necessidade de manter a ligação com os nossos que lá estavam como, também, pelo facto de constituir a única via para o reabastecimento da tropa, dos marinheiros, dos polícias e das estruturas administrativas ali existentes, sem deixar de lado a população dos kimbos que se encontravam nas imediações.
Trilhar aqueles caminhos era uma aventura; por muitos cuidados que se tivesse e por muito que se pensasse que já se sabia tudo, acontecia sempre algo de inesperado. Sair da Neriquinha em direcção ao Rivungo tinha horários de partida mais ou menos estabelecidos mas, a hora da chegada, embora estimada, nunca era uma certeza. No regresso, a história era a mesma. Um dia, o desagradável aconteceu comigo; na ida, tudo correu dentro do previsto mas, no regresso, quando o pior já ficara para trás, as duas berliets enterraram-se nos lamaçais das chanas do Cúbia quando ainda o sol mal tinha acabado de despontar. Só dali conseguimos sair ao fim do dia, já noite cerrada, depois de muito trabalho e a ajuda preciosa que entretanto veio da Neriquinha em nosso socorro.
É verdade, cruzar aquela savana exigia muito cuidado e a escolha criteriosa do trilho por onde se rolava. Retenho gravada na memória a imagem daquela chana que antecedia o kimbo do Lihaona. Não havia forma de lá chegar a não ser seguindo pelo troço de picada enlameada que a cruzava. A situação foi sendo resolvida colocando transversalmente uns troncos de árvore os quais, com o passar das viaturas, se foram enterrando na lama, conferindo a consistência necessária. Mas isso obrigava a que ali se passasse muito devagar num permanente bamboleio com os pneus mastigando a lama e resvalando nos troncos escorregadios, castigando a estrutura das viaturas e os ossos de quem lá ia.
O episódio que agora recordo e a que, felizmente não assisti, faz parte da história da companhia e desenrolou-se naquele bocado pouco consistente que ligava os kimbos do Liahona e do Mugamba. Enquanto durava a estação seca, a picada que por ali serpenteava secava e endurecia. Com o tempo e o passar frequente das viaturas, foi ficando compactada e adquirindo consistência. Quando as chuvas regressavam e as areias abeberavam de água, aquele bocado de caminho ficava submerso mas, ou porque já estivesse suficientemente endurecido ou por qualquer outra razão que não sei explicar, permanecia com a consistência necessária para as viaturas poderem passar sem atascar, desde que se rodasse muito lentamente e não se desviassem nem um nadinha de nada do traçado da picada submersa.
Até que, um dia, por razões que me não chegaram, o pior aconteceu. Parece que, por culpa involuntária de alguém, talvez à mistura com um quanto baste de excessiva confiança e complementado com um bom bocado de imprudência e uma pitada de má sorte, o condutor de uma berliet desviou-se do traçado submerso da picada. Ainda que o desvio tivesse sido ligeiro, patinou, enterrou-se na lama e imobilizou-se. Tentou fazer marcha atrás, usou dos truques que entretanto a experiência já lhe ensinara para sair do atoleiro, mas tudo foi em vão. A viatura quedou-se, ali, submissa, presa na lama. Cortaram árvores, fizeram fustes, escavaram, empurraram, puxaram, usaram os macacos hidráulicos, desenvolveram teorias e fizeram experiências. Mas nada resultou. A noite fez descer o seu manto negro, os mosquitos atacaram em força, o cansaço tomou conta de todas e a viatura continuou queda e muda, presa no amplexo peganhento da lama.
Vieram reforços da Neriquinha, construiu-se um acampamento e por mais de uma semana, desde o nascer ao pôr-do-sol, todos se afanaram nos trabalhos necessários ao desatolanço da berliet, muitos dos quais debaixo de água. Não conheço os pormenores, mas ouvi dizer que quase foi preciso levantar a viatura aos poucos metendo-lhe troncos por baixo.
Quem não ficou contente, foi o nosso comandante, lá no Cuito Cuanavale. Não me admiro nada que tenha descarregado os seus maus fígados em cima do capitão. Na sua forma pouco compreensiva de ver as coisas, certamente entendeu que a culpa, fosse qual fosse, teria sido do comandante da companhia, não obstante este tivesse estado a quilómetros de distância do local

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

As armadilhas da chana

Na savana imensa que caracteriza as terras-do-fim-do mundo, uma chana é a designação que aquele povo dá a qualquer espaço plano, silente e sem árvores ou arbustos que o sombreiem. Descampado será porventura o termo que por cá se usa para designar algo semelhante mas, desiluda-se quem pense que é a mesma coisa. Chana só existe naquelas paragens e não me parece que possa ser comparada com o que quer que se lhe assemelhe. Planície não é certamente.
Uma chana, normalmente abraça qualquer curso de água e essas fazem lembrar pântanos, mas sem areias movediças, que é coisa que nunca ouvi dizer que existisse por ali. Mas também as há onde não corre água; estendem-se em zonas mais baixas para onde, na diluviana época das chuvas, a água escorre pelo terreno arenoso e se aquieta submissa até que o sol as leve. São as chanas secas, como era a da Neriquinha. Por ser seca e nunca ali ter medrado uma árvore, acabou por se transformar naturalmente na pista poeirenta onde, duas vezes por semana, aterrava o pequeno Cessna do Barros que nos trazia o tão desejado correio. Aliás, uma chana era sempre um recurso para qualquer piloto que cruzasse aqueles céus: mais aquém ou mais além havia sempre uma aberta onde era possível aterrar um pequeno avião sem dificuldades de maior, como daquela vez em que faltou o combustível a uma pequena avioneta. O mais difícil foi chegar lá com um jerrican de gasolina mas, depois de abastecido, levantou voo com facilidade e rumou ao seu destino.
Tinham ainda outra vantagem. No tempo do cacimbo, quando, com a ausência de chuva, tudo secava, mesmo as que não tinham um curso de água por perto, retinham normalmente humidade que garantia a verdura perene das ervas e, em casos de necessidade, era sempre um local onde se poderia encontrar água para matar a sede. Bastava escavar um pequeno buraco com um palmo de profundidade e esperar que a água nascesse. Os bichos sabiam disso, nós sabíamos disso e até as hienas estavam informadas. Por tudo o que ficou dito, era o sítio mais óbvio para se encontrar caça.
Mas, para além de esconderem lamaçais, constituíam ainda espaços incaracterísticos; mais recorte menos recorte, mais curva menos curva, mais larga ou mais estreita, todas se pareciam umas com as outras. E, quando a sua extensão se alongava a perder de vista, era quase impossível a quem estivesse no meio delas, perceber o exacto ponto onde se encontrava. Sendo todas absolutamente planas, o mais abaixo não diferia do mais acima e não havia mapa que nos ajudasse. Só mesmo um guia local nos podia levar a algum lado.
Vistas do céu, o seu aspecto era diferente. A mim, nas vezes em que andei lá por cima, sempre me pareceram como peladas no meio daquela imensidão de verde, numa sucessão caótica de espaços que apenas insinuavam cursos de água escondidos pela vegetação, hesitantes, sem direcção definida e descobrindo-se onde menos se esperava em fartas lagoas que reflectiam resplendorosas o azul intenso do céu.
Para o Barros, piloto da empresa de táxis aéreos do sul de Angola (TASA) que voava diariamente por sobre aquela imensa savana, todo aquele intrincado de chanas e linhas de água era como se fosse um mapa desenhado pela natureza. Conhecia cada palmo da savana e dizia-se que nunca usava as cartas e instrumentos de navegação para se orientar. Normalmente o percurso que fazia era sempre o mesmo: nuns dias descia ao longo do rio Cuito, noutras, quando nos trazia o correio, seguia, a partir de Serpa Pinto em direcção ao Cuito Cuanavale, tomava a direcção do Rio Lomba até ao Dima, seguia por Mavinga e enfiava direito à Neriquinha onde, ansiosos, o esperávamos duas vezes por semana. Depois, sobrevoava as chanas que se estendiam a oeste do Rio Cuando em direcção ao Rivungo. O percurso seguinte, de regresso a Serpa Pinto, já não nos interessava. Assim, se alguma vez o soube, o tempo lá se encarregou de o arrumar nos escaninhos mais profundos da memória, lugar de onde nunca mais saiu.
Mas isso era o Barros, qualquer outro piloto que por ali se aventurasse não podia dispensar a ajuda das cartas e do mais que, para o efeito, equipa os aviões. Certa vez, um piloto, novato e desconhecedor daquelas paragens, incumbido de levar até Serpa Pinto um engenheiro agrónomo que para ali se deslocara para tratar de assuntos da sua especialidade, levantou da pista do Rivungo com pouco combustível planeando reabastecer na Neriquinha, orientando o voo pela carta que reproduzia fielmente os rios, afluentes e riachos que se avistavam de lá de cima.
Havia, contudo, um problema; todas as cartas da região assinalavam aquela nossa precária e provisória residência como estando localizada nas margens do Rio Cuando, aí uns vinte quilómetros para leste, local então designado por Neriquinha-Velha onde apenas havia umas lavras, alguma população dispersa e quatro paredes quase desfeitas, verdadeiro esqueleto de uma casa que por ali existira. Ou seja, as cartas não conheciam a localização da nossa Neriquinha e, pelos vistos, aquele piloto também não.
Como é bom de ver, dirigira o avião para um local onde não poderia aterrar e, ao aperceber-se disso, terá pensado que se desviou do rumo. Deu uma volta, e mais outra sem nunca divisar a tão famigerada pista e na ânsia de a encontrar, desorientou-se e foi-se desviando cada vez mais do seu objectivo até não conseguir mais encaixar no mapa os recortes do terreno lá em baixo. Desatinou e deambulou pelos céus da savana até que se lhe esgotou o combustível sem que tivesse divisado o seu objectivo.
Nem discernimento teve para procurar uma chana seca. Acabou por amarar no meio do capim alagado, ali logo ao lado de um acampamento inimigo que tínhamos destruído um par de meses antes, muito longe do seu destino inicial.
Tirando umas escoriações, todos saíram ilesos da queda, mas deambularam por aquelas matas durante três dias antes que fossem encontrados por um PV2 da força aérea quando, depois de ter passado a pente fino toda a região estava prestes a desistir. É caso para dizer que não morreram da queda mas iam morrendo de fome.
A carcaça do avião, essa, foi recuperada, mais tarde, numa espantosa aventura chefiada pelo furriel Leitão. Mas isso já eu contei aqui.


terça-feira, 1 de setembro de 2015

Os caminhos da savana II

É mais um pequeno acrescento a tudo o que escrevi sobre as capacidades de orientação das gentes que habitam uma das zonas remotas do território angolano. E estamos a falar de um povo que, pelo menos naqueles tempos, tendo hábitos de vida bastante afastados do que se poderia designar por civilização, era considerado como integrantes da mais atrasada de todas as etnias que povoavam aquele imenso território, atraso que, como é bom de ver, era medido a partir da comparação com o padrão de vida dito civilizado, citadino ou, se se quiser elevar a bitola, evoluído.
Só que, aquele povo, para levar a sua vida, não necessitava de nenhuma das vantagens ou alegadas mordomias do mundo moderno. Pautavam o seu modus vivendi por hábitos ancestrais, tinham pavor a quase tudo o que se assemelhasse a uma qualquer maquineta, eram capazes de considerar o médico analfabeto quando comparado com a imensa sabedoria do curandeiro da aldeia e as suas superstições quase que condicionavam tudo o que faziam ou pensavam. Por exemplo, uma máquina fotográfica era uma invenção do demónio para lhes roubar a alma e um rádio bem podia ser o portal que o dito utilizava para, desde as profundezas do inferno, enviar as suas ameaças aos que por cá andassem. Feitiçarias, enfim.
Pois! Podiam ser tudo isso, mas eram doutores relativamente ao que era preciso conhecer para tirar partido do muito pouco que aquela terra estéril e areenta tinha para dar. Em tudo o que tivesse a ver com isso a sua sabedoria era imensa, especialmente quando comparada com a nossa total ignorância sobre tais assuntos. Por ali, a nossa vasta cultura era de pouca serventia, especialmente quando o que importava era saber por onde andar, quer estejamos a falar do terreno que se pisava quer da direcção a tomar para chegar a algum lado.
O episódio passou-se comigo na companhia de outros três em quem o juízo e as cautelas pareciam interessar pouco. E surgiu na sequência de uma proposta feita por um dos fuzileiros do destacamento de marinha estacionado no Rivungo. Ainda não decorrera um mês desde que ali chegáramos e para nós, imberbes principiantes, os mistérios da savana ainda eram exactamente isso; mistérios, desconhecidos e insondáveis. Mas para o pessoal da Marinha, que já ali estava há algum tempo, não seria bem assim. O marinheiro, de quem infelizmente não consigo recordar o nome, veio ter connosco e propôs uma caçada. Naquela altura do ano, as chanas do Uefo costumavam apresentar-se como uma extensa pastagem verdejante e seria certamente fácil encontrar, algures no meio das ervas, uma vítima a condizer. Era só escolher.
O Alferes autorizou, a escolha da equipa reuniu consenso, aperraram-se armas, embainharam-se as facas de mato, atestou-se o depósito do Unimog e, quando as três já se aproximavam das quatro da matina, eu, o Silva, o homem da marinha e o condutor Figueiredo, mais conhecido por Comandos e que parecia só ter medo de agulhas e injecções, largámos em direcção à picada sinuosa que se dirigia ao Caxoxo, pequeno Kimbo localizado nas imediações das margens do Uefo, aonde chegámos uma hora depois, já o sol, que por ali costuma ser madrugador, despontava por entre as árvores. Naquelas paragens, às cinco da manhã já é dia claro e pelas seis o calor já frita miolos.
Os homens da PSP, ali destacados, indicaram-nos um guia de confiança, deram-nos umas dicas, desejaram boa sorte e partimos, sem pressa, que a picada, ora de areia solta ora lamacenta, não ajudava, em direcção à grande chana do rio de fraco caudal que serpenteia em direcção a sul.
Avançámos, ao sabor dos meandros da chana, procurando evitar as zonas mais alagadas, perscrutando cada recanto da mata e detendo o olhar em cada tufo de capim, tentando adivinhar onde estariam as manadas de palancas que, na nossa ignorância de principiantes, se considerava certo andarem por ali.
Mas nem um bicho se nos apresentou, nada mesmo. Naquele extenso prado verdejante, de beleza feérica, longe de tudo e sem nada que pudesse perturbar a paz circundante ou assustar o que quer que fosse, não se via vivalma.
Continuámos para sul, desflorando aquela paisagem virgem, confiantes de que o guia nos saberia trazer de volta e na espectativa de que, em qualquer dos recantos caprichosamente recortados na paisagem, surgisse o que quer que fosse que justificasse a viagem. De repente, quando, já desanimados, nos preparávamos par regressar, surgiu o vulto amarelo ocre de um antílope, um nunce como era conhecido, mordiscando placidamente um tufo de erva, quase passando despercebido na linha que separa o descampado da mata que bordeja a chana.
Num primeiro momento não se apercebeu da nossa aproximação, até que provavelmente alertado pelo ronronar do motor que o Comandos procurava controlar com uma aproximação cautelosa, o bicho deu um pinote e encetou uma cavalgada desenfreada em direcção ao interior da mata ao mesmo tempo que o condutor, acelerando a fundo, lhe seguia no encalço, procurando competir com a corrida de um animal que ziguezagueando por entre o arvoredo, saltando por cima de cada obstáculo, se afanava em fugir à besta roncante que lhe seguia na peugada.
O Comandos, sacando da sua perícia, exigiu do Unimog tudo o que ele tinha para dar e lançou-se numa louca correria mata adentro, derrubando árvores, contornado as de maior porte, evitando num último momento uma depressão no terreno que, escondida pelo capim, surgira pela frente, perseguindo o animal até que, depois de dois saltos impelidos pelas ágeis patas traseiras, o nunce despareceu por entre a vegetação.
Parámos. Esfreguei as mãos doridas do esforço feito para me segurar ao banco, retomámos a compostura, conferenciámos e decidiu-se que o melhor era regressar, ainda que de mãos a abanar. Olhámos em volta. A mata circundante era incaracterística, sem pontos de referência. A chana do Uefo desaparecera e depois daquela correria sem destino ninguém sabia para que lado ficava o norte e menos ainda que direcção seguir.
Era exactamente para isso que se precisava do guia e o homem cumpriu plenamente a sua função. Sentou-se sobre a parte superior do encosto dos bancos, pés nus, sujos e gretados sobre o assento, esticou o braço para a frente indicando o caminho a tomar e, sem dizer palavra, esperou que se iniciasse a marcha. O Comandos arrancou, seguindo a direcção apontada pelo braço do homem, conduzindo a viatura a corta mato, sem pressas, desviando-se das árvores e contornando a vegetação mais espessa. Sempre que, um obstáculo obrigava a um desvio de maior amplitude, o braço do guia, parecendo dotado de uma qualquer agulha magnética, movia-se para a esquerda ou para a direita, corrigindo o rumo, como se perseguisse um ponto invisível, no meio do arvoredo.
Seguimos assim, por longo tempo, confiando apenas no braço estendido do guia. Por mim, interrogava-me seriamente se seria aquele o caminho certo. As árvores pareciam ser sempre as mesmas, a vegetação rasteira à nossa frente, uma repetição da que se acabara de pisar e aquela árvore, um pouco mais frondosa que as demais, não era diferente da que se tinha contornado um quarto de hora antes. Cheguei a pensar que seguíamos em sentido oposto ao que eu pressupunha ser o correcto, para de seguida, duvidando da certeza do guia, imaginá-lo um elemento do inimigo a levar-nos em direcção a uma qualquer emboscada. Contudo, se era por ali que o guia apontava, era por ali que se seguia, até porque opção diferente não havia.
Finalmente, depois de tanto ziguezague e sem nunca se divisar um horizonte, logo ali, a seguir a uma espécie de moita mais espessa, como se surgisse do nada, a picada desenhou-se por entre o capim para, cinco minutos depois, após uma ligeira depressão, se divisar claramente as palhotas do Caxoxo.
Não sei como, mas o homem trouxe-nos direitinhos ao ponto de partida. Ou conhecia cada árvore daquela mata imensa ou então memorizou mentalmente o percurso feito na ida para, numa espécie de recriação da lenda de Ariadne, nos trazer de volta seguindo o fio criteriosamente gravado na sua memória.
Na altura, não me ocorreu outra explicação.

sábado, 1 de agosto de 2015

Os Caminhos da Savana

Haverá sempre mais uma estória para contar sobre a saga da 3441 por terras africanas. O problema é que, muito provavelmente, eu nem sequer as conheça. Já não se trata de devaneios da memória, é mesmo assunto esgotado.
Mas, por qualquer razão, o comentário do Cabrita postado na última crónica, fez-me recordar mais um pequeno episódio que, não obstante ser coisa de somenos, nos deixou, a todos, perplexos, especialmente se tivermos em atenção que, por essa altura, ainda estávamos em início de habituação aos rigores daquela terra estéril e hostil e pouco ou nada sabíamos acerca das capacidades das gentes que por ali habitavam.
Da grande operação ao Esquadrão, sei pouco, e mesmo esse pouco, apenas de ouvir contar. E tudo porque não participei nessa grande primeira aventura belicista da companhia que meteu ataques ao solo com os velhos T6 da Força Aérea, a abrir caminho para o avanço das forças no terreno que contavam com a maior parte do efectivo da companhia, quase metade da companhia de Mavinga e ainda com o precioso reforço dos grupos de GE’s da Neriquinha e Mavinga. Tenho algumas fotos a ilustrar aquela grande campanha, retiradas do acervo do Aranha. Pelo menos a fumaçada dos disparos dos  lança-granadas e dos morteiros são bem visíveis para não falar das cubatas queimadas e das trincheiras inimigas escavadas na areia.
Mas o que me veio à memória foi exactamente a recordação dos problemas de orientação e das dificuldades em definir um rumo num terreno demasiadamente plano e sem pontos de referência. Tirando uma excepção aqui e outra acolá, a paisagem mais parecia uma mesma imagem sucessivamente repetida num cenário virgem e selvagem que talvez nunca tivesse, até então, visto gente. A imagem da Dornier a indicar o caminho ilustra bem a dificuldade de, cá em baixo, definir um rumo, embora para aquela gente isso parecesse coisa singela.
Se bem se lembram, nunca antes a tropa chegara àquele local, o que, penso eu, determinou que o nosso inimigo de então tenha decidido ali instalar uma base. Era longe e não havia caminho que lá levasse. Chegar às suas imediações implicou um longo percurso a corta-mato, seguindo as indicações de um guia que mais parecia orientar-se por telepatia exigindo aos condutores das berliets especiais habilidades na condução por entre o fraco arvoredo, sem perceberem bem por onde iam. Dizia-se que se orientavam pelas estrelas mas, das vezes que presenciei tais capacidades, o guia desorientou-se logo que caiu a noite e reencontrou o caminho mal nasceu o sol. De uma das vezes cheguei a pensar que o homem conhecia cada árvore daquela imensa savana.
Recordo-me do Gabriel contar  a aventura que foi a grande viagem através de matas e chanas desde as pontes do Cúbia até às imediações do estrutura inimiga que apelidámos de “o esquadrão”. Fiz esse caminho, mais tarde, pelo menos uma vez. Mas nessa altura já a picada estava claramente desenhada no terreno arenoso. Para isso, bastou passar duas vezes pelo mesmo sítio. Era assim que se construíam caminhos nas terras do fim do mundo. Mas, naquele momento ainda nada disso existia. Apenas areia afogueada de calor sem caminhos que se pudessem seguir.
O episódio passou-se no fim da operação. Havia que fazer de novo o caminho até àquele remoto lugar, recolher o pessoal e regressar. Para isso foi preciso encontrar um guia, alguém que conhecesse bem a zona. E, pelos vistos, isso não foi coisa difícil. Alguns da população da Neriquinha teriam vivido por ali antes da guerra que os empurrou para junto da cerca de arame farpado que delimitava o quadrado, afogado em pó, que nos serviu de morada por mais de dezoito meses. E aquele que veio a ser escolhido demonstrou que, de facto, conhecia bem os andanhos daquelas matas incaracterísticas.
Sentou-se sobre os sacos de areia do rebenta-minas, braço estendido para a frente qual agulha de uma bússola humana e foi apontando o rumo, movendo o braço ora à direita, ora à esquerda. Contornaram árvores, rodearam chanas, passaram sobre charcos, choveu torrencialmente, caiu a noite e o guia continuava a indicar o caminho como se tivesse de memória cada árvore, cada recanto, cada acidente de terreno não obstante tudo parecesse igual, numa paisagem imutável e agreste.
De repente, sem que ninguém o esperasse, fez sinal para parar. Inicialmente pensou-se que vira algo, alguma ameaça, uma emboscada. Pensou-se o pior. Mas o homem, saltando da viatura, embrenhou-se na mata de onde regressou, pouco tempo depois, trazendo na mão uma panela de ferro, escura e enferrujada pelo tempo e pelas intempéries.  Simplesmente recordara que, anos antes, quiçá fugindo com a família às vicissitudes da guerra, deixara para trás aquele utensílio doméstico.
Pelos vistos, nunca esqueceu o lugar onde a deixou. Recolhia-a, agora, como se fora algo muito precioso. Não me admiro nada que, para ele, aquela panela fosse uma relíquia. Provavelmente, algo que lhe trazia à memória recordações que o advento da guerra apagara.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

O ataque às ILHAS MENGUELAS

Ainda que passados muitos anos e a memória continue inexoravelmente a degradar-se, retenho a ideia de que muitos dos profissionais da tropa daquele tempo nunca chegaram a perceber de facto que a guerra nas colónias não encaixava em regras susceptíveis de poderem conferir significado a definições padronizáveis. Retenho de memória que os conceitos teóricos, plasmados nas sebentas da escola da guerra, dactilografadas e sistematicamente duplicadas a setencil, se referiam amiúde ao facto de aquela ser uma guerra de guerrilha, mantida por hordas de guerrilheiros não treinados e avessos a convenções.
Ainda assim, na cabeça de alguns velhos do restelo que ocupavam as cúpulas da hierarquia militar de então, continuavam vivas velhas tácticas e estratégias com barbas e bolor, manuscritas em acervos enegrecidos pelo tempo e guardados nos sótãos bafientos da memória de gente que parou no tempo e se mostrou incapaz de perceber que a guerra travada nas matas africanas não tinha nada a ver com as grandes batalhas da idade média e não seguia qualquer dos modelos clássicos que enchem as páginas dos compêndios militares por onde haviam estudado.
Alguns deles, se calhar, continuavam a confiar na eficácia das velhas tácticas quiçá acreditando ser possível aplicar nas matas africanas o estratagema do quadrado, derradeiro esquema defensivo utilizado pelo General Custer na batalha de Litle Big Horn contra uma nação inteira de índios Sioux ou até o medieval ouriço que se sabe ter sido utlizado pela infantaria de Nuno Ávares Pereira contra a cavalaria da coroa Espanhola na célebre Batalha dos Atoleiros nos conturbados anos do fim da primeira metade do século XVII.
Pode parecer inverosímil mas, das duas, uma; ou o nosso comandante não sabia mesmo o que era a táctica do ouriço ou ainda não percebera que a guerra que na altura se travava era outra. A verdade é que, perante o catastrófico resultado da operação levada a cabo lá para os lados da Quirongosa onde treze GE´s, entre eles o nosso Fulay, encurralados pelos guerrilheiros do grupo do Kuenho, perderam a vida sem que sequer pudessem ter esboçado um gesto de defesa, o distinto oficial tenha proferido a suprema crítica:
- Porque não fizeram o ouriço?
Bem, mas o episódio que aqui me trás tem, mais uma vez como protagonista, o nosso incrível Major Tamegão quando, certa vez, o grupo estacionado no Rivungo foi incumbido de patrulhar as margens do rio Cuando até às imediações das Ilhas Menguelas, algures situados no meio do lodaçal que estabelece a fronteira entre Angola e a Zâmbia, lá bem para baixo, a meio caminho entre o Rivungo e o Luiana. Transcrevo a descrição do Eduardo Aranha que melhor do que ninguém conhece o episódio.


“Devo começar por dizer que essas ilhas não eram, nem são, qualquer espaço paradisíaco no meio do mar ou de um rio na moda para ir fazer férias ou passar luas-de-mel. Na fronteira leste sul de Angola está o rio Cuando que na altura, pelos registos, pertencia a Portugal e não à Zâmbia. Pelo que aqueles amontoados de terra arborizada que existiam pelo meio do rio e que aqui no Tejo  se chamam mouchões e servem para a agricultura, lá  pelas áfricas serviam  para esconder elementos guerrilheiros que, de noite, ousavam enfiar-se em pirogas e atravessar o rio infiltrando -se no território angolano.
Uma vez, numa operação militar, que eu não tive o prazer de comandar, estava prevista uma patrulha a pé pela margem direita do Cuando, o mais chegadinho possível a terra para não molhar os pezinhos e ninguém se constipar, pois o objectivo principal da tropa portuguesa era poder regressar à sua aldeia natal  todo completo de cabeça e corpo.  
Regressados da operação ao Rivungo, estava, ao que me contaram, o major Tamegão, como sempre vestido da sua personalidade grotesca e dos adereços de farda igualmente ridículos: dois cantis com “água de capim”, para fazer bem aos rinzes, três pares de óculos presos por fios de nylon e uma Manelika verde-vivo pintada à mão. Neste excelente aparato dirigiu-se ao comandante da referida operação inquirindo-o sobre o sucesso da mesma na aniquilação do inimigo. Na resposta, evasiva como sempre, foi-lhe dito o que também sempre se dizia; que pegadas se tinham visto, muitas, mas inimigos nenhuns, que talvez estivessem nas Ilhas Menguelas, local inacessível para tropas apeadas. Aí, muito dentro da sua lógica de oficial cujos estudos teriam parado pela Grande Guerra de 1914-1918, o sr. Major Tamegão, perguntou: -Porque não fizeram uma balsa!? Ora, balsa é o mesmo que jangada, mas é um termo menos usado que o segundo e, como o major era do norte, muita gente, do sul, pensou que ele poderia estar- se a referir a um valsa à beira-rio, o que só entre homens e naquelas paragens deveria ter-se revestido de enorme romantismo.”


Alguns meses depois, o tenente Valério, na altura o comandante da Marinha do Rivungo a quem, segundo julgo, se haviam queimado parte dos neurónios que controlam o bom senso, resolveu pôr a lancha a navegar, ultrapassando para sul tais ilhas. No regresso foi metralhado, atacado à granada, perdeu um homem atingido por uma rajada de chumbo mortífero e só a muito custo conseguiu que a lancha vencesse a correnteza e regressasse ao seu ancoradouro no recesso do Rivungo, muito mal tratada e com a moral dos seus homens a razão de juros.
Uma lancha, blindada, guarnecida de fuzileiros bem treinados e equipada com uma metralhadora Oerlikon de grosso calibre, quase que foi impedida de navegar. E o nosso major a querer que se construísse uma balsa!
Cá para mim, ou o homem via muitos filmes ou era leitor assíduo das histórias aos quadradinhos do Major Alvega.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Goma-arábica, a cola que sabia a mel


Ainda nem haviam decorrido duas semanas desde que, amesendados na grande cidade aguardando sem pressas o dia em que se encetaria a viagem de regresso a casa e já muitas das agruras por que passáramos começavam a transformar-se em remotas recordações. Por mim, aquela certeza de que jamais voltaria a calcorrear as esgotantes e quentes areias das terras-do-fim-do-mundo trazia uma confortante sensação de bem-estar apenas perturbada pela recordação do inacreditável acidente que nos levara o Morgado. Exactamente quando já parecia certo que todos regressariam ilesos, o destino decidiu fazer-nos pagar a ousadia de termos conseguido escapar à má sorte, como se o azar que nos levou o Gonçalves não tivesse sido já paga suficiente. Mas, feita a catarse, com a ajuda da juventude que tudo supera, os dias continuaram a correr, intensos, quentes e aconchegantes, vividos como se houvesse pressa em compensar os tempos de escassez que, por aquelas alturas, já me pareciam suficientemente distantes.
O facto é que, aplacadas que estavam as mágoas, cauterizadas as feridas da alma e completada a convalescença com doses maciças do bálsamo apaziguador das Mabubas, tudo aquilo por que se passara parecia agora coisa de somenos.
Terá sido por aquela altura que se deu início a uma espécie de ritual que ainda hoje se repete: a irresistível tendência para trazer à espuma dos dias a lembrança dos episódios rocambolescos, dos sustos e maleitas, das alegrias e dissabores vividos e sofridos no tempo que durou a nossa passagem pelas guerras da Neriquinha, recordados a propósito de tudo e de nada, contados e recontados, explicados e relembrados como quem conta a história da última fita vista na soirée do cinema Miramar.
Foi por estas alturas que, certa manhã, lá na Pensão dos Coqueiros, unidade hoteleira modesta onde costumávamos pernoitar, creio que ao pequeno-almoço, descosendo a língua em conversa de circunstância, porventura recuperando da ressaca da noite anterior, alguém se lembrou de ter ouvido contar uma das máximas do nosso major Tamegão. Para tanto bastou um refrescar de memória trazido pelo ritual de untar a torrada com compota.
Constava que nada afectava o apetite do major e dizia-se que nunca reclamava do rancho. Aliás, o seu aspecto roliço e maneirinho era prova disso mesmo. A sua mais que conhecida fama de lateiro, típica de quem nunca reclama do rancho, ficou suficientemente demonstrada, quando, numa das poucas vezes que a sua missão o obrigou a descer ao inferno da Neriquinha, devorou um prato de massa guisada com atum que o vago-mestre incluíra na ementa numa tentativa de retaliação pelas exigências e observações esparvoadas que o homem fizera aos mapas de controlo do depósito de géneros. Tudo em vão. Enquanto toda a companhia achou a refeição uma porcaria, o Major, rapando o prato onde um último fio de massa resistia às suas arremetidas, apenas deixou escapar um: - Isto estava muito bom!
Mas, voltando à compota, parece que o homem, lá na messe do Cuito Cuanavale, descobriu um frasco com mel. A sua consistência e a cor ligeiramente ambarada eram características mais do que suficientes para que nem sequer lhe passasse pela cabeça que pudesse ser outra coisa. Aliás, estando na messe e com aquele delicioso aspecto a fazer-lhe nascer na boca uma aguadilha de gula, no seu entender não poderia ser outra coisa. Assim, todas as manhãs, a fatia de pão que lhe servia de mata-bicho, foi sendo generosamente untada com o produto e saboreada em gulosas dentadas intervaladas por largos golos de café com leite, lauta refeição por vezes finalizada com pomposa e sonora eructação.
Até que, certo dia, a mulher do médico que, uma ou outra vez o calor obrigava a madrugar, deu conta de que, afinal, era o major o responsável pelo esvaziamento constante e paulatino do conteúdo do frasco.
- O senhor major come isso? Interrogou a senhora com não disfarçada surpresa.
- Sim, eu gosto muito de mel. É muito saudável. Respondeu o oficial um tanto ou quanto atónito como se considerasse a pergunta descabida.
- Mas isso não é mel, senhor major. Isso é goma-arábica; trouxeram-na há dias da secretaria para colar uns papéis.
Apanhado de surpresa o homem, contudo, não desarmou.
- Ah é? Mas olhe que é muito bom.
Consta que, ainda assim, mesmo se apercebendo de que, afinal, andara a ingerir cola o tempo todo, não se coibiu de comer o pão até ao último migalho.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Em memória, e a minha homenagem, aos que por lá ficaram sem glória mas com honra.



emblema 3441.

Em tempo porque o tempo não guarda rancores aos que partiram sem tempo...

(Excertos do livro "Capitães do Vento")

Gonçalves

../...
Más notícias. A primeira derrota. Somos um a menos. 
Tinham corrido rumores de um ataque iminente ao Rivungo. Numa tentativa de rentabilizar todos os meios, um lança-granadas foguete sem uso e esquecido a um canto é resgatado à letargia enferrujada em que se encontrava e decidido experimentar ali mesmo no destacamento. Sabia-se como funcionava, mas ninguém ali tinha alguma vez disparado aquela arma. Aprontaram um tiro para a chana do rio Cuando. O soldado que vai operar a arma ajeita-a no ombro com o dedo no gatilho de modo a encontrar a melhor posição para o impacto. Um toque ligeiro e esta dispara-se inadvertidamente lançando para trás um cone de fogo mortífero com uns bons dez metros de comprimento, enquanto a granada se perdia na chana. O Furriel Gonçalves apanhou em cheio com todos aqueles gases incandescentes. Teve morte imediata. Um acidente tão estúpido quanto estúpida era a guerra.

Doloroso foi depois explicar à família como se perde um filho de forma tão bruta na troca de correspondência que mantive com os pais durante algum tempo. Ajudou um pouco o facto de o pai ser, também ele, um militar. Compreensivo, foi mais da vida e não da morte que falámos. Dolorosamente compreensivo sem força nem vontade para se insurgir contra a guerra que o roubava assim de forma tão dura e cruel. Afinal, a profissão que abraçou haveria de se transformar numa espécie de carrasco que lhe levaria os seus.

Morgado

.../...
Seria já em Luanda que sofreríamos a segunda derrota que nos decepou um segundo e último membro. Foi como que um “morrer na praia” e foi mesmo na praia que morreu a cinco dias de embarcar.
A tropa parada e sem nada que fazer, para mais com o “cacimbo” entranhado no corpo e na alma, tende para a asneira. Procurando amenizar aquele tempo de espera foram organizadas idas à praia em colunas de Berliet.
Um grupo estendia-se ao sol onde procurava harmonizar o contraste da alvura do tronco com o negro do antebraço e pescoço em V. Afogueado pelo calor o Ilídio Morgado disse levantando-se.
- Vou dar um mergulho. Reparem bem na minha pinta a mergulhar.
O mergulho foi elevado e acrobático com descida a pique. Da areia os companheiros ficaram a ver o Ilídio a boiar depois do mergulho “fazendo fôlego...”. Passaram dois, três minutos até que se compreendeu que algo não tinha corrido bem. O Ilídio continuava a boiar de barriga para baixo. Ele não tinha “fôlego” para aquele tempo todo. Retiraram-no da água já praticamente morto por afogamento, após ter batido com a cabeça no fundo de areia e ter partido o pescoço.

Não havia melhor forma de despedaçar a alegria incontida que todos vestiam no rosto naqueles últimos cinco dias de Luanda sem emboscadas de inimigos conhecidos, poeira de picada ou fome de ração de combate.

À porta do cemitério de Luanda soou um “... funeral arma!” em voz rouca gritada que rasgou o silêncio de desespero da penúltima manhã quente de guerra em África. Seguiu-se-lhe uma espécie de silêncio ensurdecedor semelhante ao de uma execução. Depois o troar uníssono de seis disparos que atordoam e deixam a sensação de nos embaterem no peito e nos vararem de lado a lado. Um segundo disparo de homenagem à vida em tempo de morte apanha-nos num meio adormecimento de resignação para com as leis da vida. O terceiro grito vociferado pelas seis G3 que, voltadas aos céus imploram ou questionam algo que não consigo vislumbrar, já não nos diz o que quer que seja, nem nos consegue sequer acordar daquele entorpecimento momentâneo que se abate sobre todos. O silêncio que fica é difícil de romper. O tempo pára e é como se não quiséssemos que continue como que receando viver a realidade que se lhe segue.
E o cais de partida ali tão perto. Data e hora de regresso marcada e alterada abruptamente a cinco dias do fim de quase todas as tormentas. Adiada para sempre a hora feliz da chegada. Por cumprir, e ali amortalhada, aquela nesga de esperança de um retalhado “... adeus ... e até ao meu regresso!”.

E o frio do Puto que nos chega com cinco dias de antecedência e enregela às onze horas da manhã de calor ardente cavalgando um fio fino de suor gelado que nos percorre as costas e estremece o peito numa angústia que nos desgoverna os sentidos e derrota o desejo tardio de vingar a morte.


sexta-feira, 1 de maio de 2015

Em memória do Ilídio Morgado

Quase que passou despercebido. Não fora duas ou três situações extremas que o marcaram e o facto de termos sido relegados para o fim do mundo, confinados a um singelo quadrado delimitado por uma precária cerca de arame farpado que nos impôs uma longa convivência de proximidade, a lembrança da sua passagem pela companhia teria provavelmente ficado perdida no limbo da nossa memória colectiva.
O Ilídio Morgado era um soldado do meu pelotão integrando aquele lote dos que não dão muito nas vistas. Beirão, oriundo de uma pequena freguesia do Conselho de Sátão, comportava-se de forma algo bisonha e falava devagar conferindo às palavras aquela pronúncia sibilina característica do linguajar das gentes que habitam a região a norte das Terras de Viriato. Não sei se era preguiçoso mas a ideia que vagamente retenho da sua figura, do seu andar vagaroso e da postura indolente que punha em tudo o que fazia, deixa-me essa possibilidade. Creio que nunca fez inimigos e não consta que alguma vez alguém tivesse feito qualquer reparo menos abonatório ao Ilídio, mas também não consigo identificar nenhum grupo de amigos mais chegados a que pertencesse.
Em resumo, pode dizer-se que era um homem comum sem nada de especial que se lhe apontasse a não ser o facto de, por vezes, beber um pouco mais do que a conta.
Contudo, a ser esse o seu maior defeito, convenhamos que era uma coisa de nada se tivermos em atenção que, pelo menos naquele tempo, a melhor forma de mitigar a sede e afrontar o calor, passava pela ingestão de cerveja em quantidades razoáveis. Era barata e havia em quantidades generosas. Excluindo o Candeeiro, pescador dos mares algarvios que ficou na memória de todos pela frequência com que se enfrascava e pelo mau feitio que apenas se manifestava quando toldado por uma cerveja a mais, o Ilídio, se calhar, integrava o restrito grupo dos que ficaram na memória colectiva como aqueles que, com mais assiduidade, exageravam um pouco na quantidade de imperiais.
O excesso de bebida não trouxe problemas a ninguém. É claro que nestas coisas, há sempre excepções e o Candeeiro é uma flagrante excepção. Nele, a bebida, queimando o seu fraco bom senso, fazia com que andasse sempre de candeias às avessas com as hierarquias daí resultando algumas ameaças de punições severas por parte do comandante da companhia. Mas não o Morgado; nele, a bebida apenas lhe soltava a língua, desatando num falaçar trôpego que nunca lhe trouxe problemas de maior quanto a questões disciplinares mas, tanto quanto a minha memória retém, foi o único que sofreu na pele as consequências de beber demais.
Pois é, certa vez, como que por castigo da providência, sentiu de forma muito dolorosa as consequências de um dia de excessos. Não sei se alguém se lembra mas, quando faltava para aí cerca de um par de meses para o fim da comissão, fez coincidir uma bebedeira valente com o dia que lhe competia estar de serviço de guarda à baia que controlava o acesso de viaturas à localidade, dia em que, para piorar as coisas, era aguardada a visita de um grupo de altas patentes militares, que suponho constituído pelo comandante de batalhão e respectivo séquito.
Ninguém sabe como e ele também nunca conseguiu explicar, deu um tiro em si mesmo quando, ao abaixar-se esforçando-se por manter o equilíbrio que o excesso de bebida tornava precário, accionou o gatilho da G3. São coincidências fatais e até hoje ainda ninguém conseguiu perceber por que artes do demo, num local como as Mabubas, tinha uma bala na câmara pronta a disparar. Acabou por ter sorte, a bala apenas lhe perfurou o braço obrigando-o a andar entrapado durante uns tempos.
Este pequeno incidente, a que na altura não se deu muita importância – coisas do vinho, dir‑se‑á, embora me pareça que a bebedeira era de cerveja – não deixa de ter o seu quê de premonitório. Cá para mim, a negra e encapuçada figura sem rosto, de gadanha a tiracolo, já andaria a rondar o infeliz do Morgado.
O tempo passou e a missão chegou ao fim. Agora era o tempo da diversão, do entretém, do dolce far niente. Matavam-se as saudades de tudo aquilo de que, por demasiado tempo, não se teve acesso, gozando hoje uma coisa, amanhã outra, por vezes exageradamente e ao fim do dia planeava-se o que fazer no dia seguinte. Enfim, aproveitava-se o tempo enquanto não chegava o dia do regresso a casa. A praia, porque não era longe, passou a ser local de visita assídua. E o Morgado, porque no sítio onde nascera era coisa que não havia, também por lá andou, até porque o calor a isso convidava.
Não conheço pormenores, mas num desses dias, estando ele na brincadeira com a malta do grupo que com ele decidira passar o dia na praia, resolveu fazer uma habilidade. Correu em direcção à água e ensaiou um mergulho, atirando-se de cabeça contra a onda que entretanto se desfizera espalhando-se preguiçosamente no areal.
O mergulho saiu desorganizado, espalhafatoso, descoordenado e sem estilo, visível na forma como se estatelou pesadamente nos escassos vinte centímetros de água que mal chegava a meia canela. No imediato, ninguém se apercebeu que o corpo do Morgado, inerte, apenas se movia ao sabor das ondas num embalo de vai e vem. Quando alguém deu o alarme, já era tarde. A autópsia, contou-me o alferes Correia que conduziu o processo de averiguações, concluiu que partira o pescoço.
A notícia do passamento do malogrado soldado produziu um efeito devastador no pessoal, trazendo à lembrança a trágica morte do furriel Gonçalves que desastradamente ocorrera lá bem para baixo, nos confins da savana, reabrindo feridas que só há bem pouco tempo haviam cicatrizado. O clima de festa e de diversão de que todos tiravam partido murchou e a alegria desapareceu dando lugar a uma consternação colectiva, a uma revolta surda visível no semblante de cada um.
Que raio. O pior já havia passado e já só faltava tão pouco tempo para tudo terminar.
Não foi justo.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Enquanto a peluda não chega

A nossa vida mudou radicalmente. De um momento em que quase tudo era condicionado por uma disciplina militar ditada por uma enormidade de obrigações e regras de conduta até então cumpridas quase por inércia, qual reflexo condicionado de quem se teve de habituar a uma disciplina que não admitia contestação, passou-se a um estado em que cada um fazia o que mais lhe dava na gana.
É verdade, a peluda estava a poucos dias de vista e isso levava a comportamentos pouco consentâneos com as exigências militares, reduzindo os regulamentos a uma mera insignificância. Era algo de novo, uma espécie de liberdade que entrava de rompante pelas vidas de jovens que, por tempo que mais pareceu uma eternidade, se sentiram encarcerados num mundo de fardas, ordens, regras, ditames e posturas, obrigados a assumir responsabilidades, passar privações e coleccionar arrelias que esculpiram um fácies amadurecido na cara daqueles meninos quase imberbes que, dois anos antes, desembarcavam no cais de Luanda prontos para fazer uma guerra que nenhum havia começado.
Tenho ainda a longínqua recordação do alívio que experimentei perante a iminência do despir definitivo da farda em simultâneo com o formal depor das armas materializado na entrega nas arrecadações da parafernália belicista que, dois anos antes, naquele mesmo lugar, nos fora entregue e que então assumi serem sinais óbvios de que estávamos ali de passagem a caminho da guerra que, era suposto, nos esperava naquele ermo lá nos confins da savana para onde fomos relegados.
Agora que tudo passara, assistia-se a um desmontar da máquina, sendo por demais óbvio de que já nenhum oficial ou sargento se sentia com autoridade para dar ordens que ninguém parecia estar já disposto a obedecer. Constituindo etapas do ritual de corte de relações com o rigor militar, as regras foram sendo compassivamente cumpridas com aquela certeza de que faziam parte do cerimonial do divórcio ou do fim do contrato que todos foram compelidos a aceitar no momento da incorporação.
Naquela fase, a grande tarefa da companhia resumia-se ao arrumar da casa. E isso significava cumprir uma extensa e escrupulosa via-sacra por tudo quanto era repartição ou serviço da pesada burocracia militar. Era preciso pagar e encerrar contas, elaborar guias de entrega, devolver materiais e equipamentos, fazer requerimentos, assinar papelada e obter a necessária quitação que desobrigaria a companhia de tudo quanto era compromisso ou responsabilidade. Felizmente que tínhamos um primeiro-sargento de eleição, um homem, conhecedor daquele mundo complexo que apenas nos pedia ajuda pontual numa coisa ou noutra. Tirando isso, o tempo estava por nossa conta.
Por mim, inebriei-me com o cheiro a maresia, enchi os olhos daquele mar azul cristalino e caminhei sem destino gozando o bulício da cidade, não resistindo a percorrer a marginal ziguezagueando por entre as palmeiras. Pareceram-me familiares em nítido contraste com a primeira impressão experimentada dois anos antes quando, fugindo ao enjoativo convés do Vera Cruz, dei os primeiros passos naquela terra quente e perfumada que parecia inchar de calor. Pelo menos agora, não estranhei a pacífica quietude da baía que, nas cálidas noites austrais, derramava sobre a marginal centelhas de luz em sintonia com o marulhar de águas calmas.
Depois, abusei de bifes com batatas fritas e mostarda aos montes, preguicei nas esplanadas das cervejarias exagerando na cerveja devidamente acompanhada e mergulhei vezes sem conta nas águas cálidas do Atlântico que placidamente banhavam a areia cor de ouro da ilha. Depois de tanto maldizer as estafantes areias brancas da savana do Cuando Cubango, não hesitei em alagartar-me pelas praias da ilha e embrulhar-me no areal com sabor a sal para, depois de feito croquete, a dissolver num mergulho gostoso nas cálidas ondas salgadas daquele mar que apetecia abraçar.
Vi todas as fitas que passavam nos muitos cinemas da cidade, intoxiquei-me no fumo dos cafés saboreando bicas e lendo placidamente os jornais do dia, matei saudades do pastel de nata e enchi os olhos de mulheres lindas e singelamente sedutoras. Voltei à praia sempre que pude, desfrutei as delícias da noite, conheci a Gruta, afamado cabaré logo ali à entrada da ilha e apreciei o seu badalado espectáculo de striptease levado à cena por um friso de meninas que se esmeravam numa representação lasciva capaz de fazer crescer água na boca aos mais susceptíveis ou mais carentes. Ia-se ali não só pelo espectáculo mas também por uma mão cheia de outras coisas. Naquele local buliçoso enchiam-se os olhos de cor e glamour, inspirava-se o perfume de mulher oferecida, usufruia-se da fartura de sedução que espichava dos meneios de mulheres que sabiam da arte e, porque não, suspirava-se por um agrado, que mais do que isso não era permitido, que ali não era casa de putaria. Visitar a Gruta era imperativo, quase uma missão obrigatória para qualquer militar que se prezasse.
Tirando isso, lambuzei-me com a célebre muamba na Mãe-Preta, matei a fome fora de horas devorando o conhecido bitoque servido a qualquer hora da noite naquele bar lá para os lados do Clube Naval e por pouco não gastei todas as economias que a ausência de tudo e o não ter onde gastar me obrigaram a amealhar nos confins da savana.
Sei que, em cada dia, acabada a desbunda, recolhia a algum lugar. Provavelmente regressava ao Grafanil. Havia sempre aquela viatura, estranha, pesada e com ar muito antigo que, a horários estabelecidos, numa marcha pesada de quem não tinha pressa, fazia a ligação entre a Mutamba e aquele entreposto militar conhecido de todos. Andava muito devagar que a idade não dava para mais e dizia-se que gastava cem litros aos cem. Um exagero.
Mas, por mais estranho que possa parecer, não sou capaz de me recordar nem da camarata nem da cama. Provavelmente passei lá pouco tempo.

domingo, 1 de março de 2015

Adeus às Mabubas - O regresso à cidade

Não teve história a nossa saída das Mabubas. O facto de não reter pormenores convence-me disso. Contudo, recordo-me muito bem de, talvez estupidamente, ter recordado o dia em que, montados nas viaturas do MVL, saímos do degredo da Neriquinha e iniciámos aquela empolgante aventura que foi a grande viagem desde as terras do fim do mundo até ao paraíso de que agora nos despedíamos. Bem, paraíso apenas por comparação com o inferno que nos serviu de morada nos primeiros dezoito meses e pouco, ermo do qual ninguém tinha saudades. Pela parte que me toca, nunca me passou pela cabeça que alguma vez pudesse voltar àquele quadrado areento delimitado por uma ferrugenta cerca de arame farpado. Contudo, admitia que, se alguma vez voltasse a Angola, um dos primeiros locais que procuraria visitar seria certamente a barragem e a camarata, provavelmente em ruínas, onde se situava o quarto que partilhei com o Morais e que decorámos como se fosse a nossa casa.
Mais uma vez encafuei as minhas tralhas dentro da mala, cuidei de verificar que não deixava nada para trás e arrumei tudo o melhor que pude numa das viaturas que, no largo frente ao comando, aguardavam o momento de nos levarem para a cidade. Acomodei-me num canto qualquer, disse adeus a quem ficava e aguardei sem pressa a hora da partida.
As viaturas subiram a rua, lentamente. Passaram frente à messe, depois pelo boteco do Manolo, o barracão do cinema e finalmente a cancela de controlo já guardada por soldados acabados de tomar o nosso lugar. A guerra seguia em frente, naquela sistemática substituição de contingentes, uns a chegar outros a partir numa permanente adaptação a novos lugares e novas missões. Para os recém-chegados, a acalmia necessária para lamber as feridas da alma, para nós, o adeus definitivo aos quartos de sentinela, às rondas nocturnas e à limpeza das armas, arrumadas a um canto desde que libertos da savana.
A viagem até Luanda foi curta e sem surpresas. Era uma estrada normal como todas as estradas. Nos últimos oito meses havíamo-la percorrido inúmeras vezes e era certo que nada iria acontecer que merecesse ser memorizado. Passámos pelo posto de controlo do Sassa, logo ali abaixo, antes do Caxito, bordejámos os canaviais da Tentativa onde uma máquina preparava a terra para nova plantação, atravessámos Porto Quipiri, o desvio para a Barra do Dande, depois Sassalemba, os campos de algodão e de mandioca e, em pouco tempo, logo depois de Kifangondo, iniciou-se a descida em direcção ao Cacuaco onde o bando de flamingos cor‑de‑rosa, catando a praia, parecia nunca dali ter saído passeando-se pachorrentamente como sempre os vi fazer nos últimos meses em que me habituei a mirá-los. Aquela seria a última vez; nunca mais os tornaria a ver.
Penetrámos o trânsito citadino. Nada a que já não estivéssemos habituados. Os últimos tempos nas Mabubas, com as frequentes idas e vindas a Luanda, fizeram-nos esquecer o silêncio da enorme e desértica savana. Mas esta última viagem materializava o regresso definitivo à civilização, ao bulício da cidade, ao trânsito, com tudo o que isso tem de bom e de mau. Para mim, contudo, representava finalmente a fuga às agruras e aos tratos de polé infligidos por uma natureza hostil. Agora sim, a mata ficava para trás e a guerra, que sentimos ir desaparecendo das nossas vidas no sossego das Mabubas, chegara definitivamente ao fim.
Entrámos no Grafanil, uma espécie de antecâmara para o inferno das matas e o stress da guerra para quem chegava a Angola. Passáramos por isso dois anos e quase dois meses atrás. Mas, para nós, que chegávamos ao fim daquela malquista missão, representava o limiar da civilização e o recomeço da vida que ficara parada no tempo.