quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

A MACHAMBA DO MATACANHA


Até ao momento das minhas primícias africanas, pelo menos até tomar consciência do seu significado, tinha a ideia preconcebida de que, naquela terra, tudo medrava e crescia com inusitado vigor. Até os putos ali nascidos, dizia-se, começam a andar pouco depois de paridos. Lembro-me, até, de me ter convencido de que, se atirasse para o lado o cocuruto folhoso de um ananás acabadinho de comer, nasceria uma nova planta no local onde caísse. E isso sem a necessidade de quaisquer cavadelas ou cuidados de maior. Bastaria o calor africano e água com fartura, coisas que, naquelas paragens, o céu oferecia em abundância.
Desiludi-me perante a aridez da savana onde apenas medravam uns esquisitos frutos selvagens que nunca antes havia visto ou ouvido falar e, mesmo esses, só por uma ou outra vez os avistei. Ainda assim, a exuberância produtiva da nossa horta na Neriquinha não deixou de me causar espanto.
Quando comecei a conhecer as Mabubas e arredores, acabei por acreditar que a imaginada maravilha que fazia as coisas desabrocharem e crescer com tamanho viço e espontaneidade, seria, afinal, verdadeira. Aqui e ali, nos locais mais inesperados, cresciam árvores de fruto. Certamente nasceram e cresceram, de forma espontânea, no local onde ganhou raiz a semente que para ali caíra. Veja-se a enorme mangueira carregadinha de frutos à beira do caminho frente à entrada da nossa camarata. Não me lembro de ver alguém comer uma só daquelas mangas, nem os putos. Provavelmente eram pouco doces ou demasiado pequenas, mas não creio que tenha ali sido plantada por alguém. O mesmo não se poderá dizer de uma outra, mais nova, existente nas traseiras da messe de sargentos. As mangas, visivelmente maiores e dependuradas em cachos, exibiam aquela apetecível cor rosada que prometia uma doçura superior.
Mas o que mais atraiu a minha atenção foi o abacateiro, encostado a um canto do largo da parada, rente ao muro que confinava com a messe de oficiais. Abacate, sempre foi uma das minhas frutas preferidas; desde pequeno que os saboreava. Aquela pereira – na minha terra chamam-se “peras abacates” – estava carregadinha de “peras”, enormes, lindas, a rirem-se para mim. Havia tempos que eu não provava uma. Contudo, ainda não estavam em condições de colher. Mas, comecei a ficar preocupado. Não obstante ser, então, uma fruta totalmente desconhecida para a rapaziada da companhia, o seu aspecto luzidio começou a atrair as atenções e a despertar o desejo de as provar. Preocupado que os começassem a colher a destempo, tive de os conter, explicar-lhes que ainda não era altura, era preciso deixar que a maturação atingisse o ponto. Graças a Deus que, talvez acreditando na minha sabedoria sobre o assunto, aguardaram o tempo certo e nada se desperdiçou.
A machamba do Matacanha era um dos exemplos mais expressivos da fecúndia daquela terra. Coisa pequena que nunca poderia ser chamada de fazenda, especialmente depois de se conhecer a imensidade da fazenda Alice e das suas extensões de laranjais a perder de vista. Na verdade, comparar a duas coisas seria ridículo. Ao lado da grande fazenda, pouco mais era que uma pequena horta e, por isso, o mais apropriado era mesmo chamar-lhe de machamba. O seu proprietário, mais conhecido por Matacanha, aproveitou a proximidade da água da barragem e lavrou o terreno fértil, ali plantando bananeiras e mamoeiros até ao limite possível da linha sinuosa que confinava com os recortes da albufeira.
O Matacanha era um homem singular e estranho. Velho, muito velho, pelo menos assim parecia, vivia sozinho. Não lhe conheci família e nunca o vi na companhia de mais ninguém que não fosse os seus empregados negros, poucos, que com ele tratavam da plantação. Vestia roupa de aspecto delido que parecia ser sempre a mesma, incluindo o cordel de fio de sisal com que sustinha as calças que ameaçavam querer fugir do laço apertado que fazia a vez de cinto. Calçava uns chanatos que mal cobriam a sola dos pés deixando a descoberto as calosidades gretadas por anos e anos de maus tratos, ficando sempre a dúvida se o seu vagaroso e bamboleante andar era resultado da precariedade do calçado ou consequência da idade e do reumático que parecia afligi-lo.
Deslocava-se sempre montado na sua motorizada, de aspecto tão velho quanto o do dono, uma zundap de primeira geração que só a ausência de maus tratos a mantinha a funcionar, que o Matacanha não era homem dado a velocidades, mais parecendo ser o velocípede a decidir o andamento imposto pelo indolente ronronar do cansado motor. A moteca, essa, retribuía a compreensão do dono transportando-o para onde fosse preciso, desde que a viagem não fosse além do Caxito, pequena vila ali perto que constituía a única urbe das redondezas.
De vez em quando, descia ao povoado ou, indo mais longe, deslocava-se ao Caxito, mais para receber as encomendas ou a paga da banana e dos mamões que vendia à tropa, seus clientes principais, que também se encarregavam, eles próprios, de fazer o transporte do produto, poupando ao hortelão o serviço de entregas que não tinha condições de satisfazer. E a tropa agradecia; bananas acabadinhas de colher vindas directamente do produtor até à mesa do refeitório, era luxo a que não estávamos habituados, tanto mais que o escudo cobrado por cada quilo, fosse ele de bananas ou de mamão doce e sumarento, era preço que não tinha concorrência em lugar nenhum. 
Certo dia, fui à sua plantação. Decidi comprar-lhe umas bananas para, aproveitando uma ida a Luanda, oferecê-las a uns primos meus que lá residiam. Encontrei-o no meio do bananal acompanhado por dois dos seus empregados que pressurosamente faziam chegar a cada planta a água que, chupada da barragem por um motor de rega, corria com abundância por entre os regos.
- Escolha um, leve o que quiser! E apontava, brandindo um singelo pau, com uma forquilha na ponta, que nunca largava, especialmente quando andava pela machamba. Era, dizia, a sua defesa contra as cobras que por ali rastejavam. Usando a forquilha, entalava-as contra o solo até as matar, sufocando-as. 
- Quanto lhe devo? Perguntei enquanto vasculhava os bolsos à procura do dinheiro. 
- Isso é uma coisa de nada! Leve lá as bananas e que façam bom proveito aos seus primos.
Voltei mais vezes e de cada vez carreguei um cacho de bananas com algumas já a luzir anunciando a maturação iminente. Em todas elas, o Matacanha nunca quis receber dinheiro. Fazendo um gesto amplo com o pau anti cobras, como que querendo abarcar todo o bananal, rematava.
- Tenho muitas! Isso não é nada.