quinta-feira, 4 de junho de 2009

O regresso à Neriquinha

Após três meses de estada no Rivungo, chegou a vez de nos mudarmos para a Neriquinha. A regra vigente determinava que cada grupo de combate ali passasse 3 meses. Decorrido esse tempo, seria rendido por outro, este por sua vez pelo seguinte e assim sucessivamente. Só o primeiro pelotão não entrava no contrato. O respectivo alferes era, por inerência, o segundo comandante da companhia. Daí que o alferes Torres fosse o substituto do capitão Cabrita nas suas faltas, ausências e impedimentos. Só não se percebia porque teria de ser exactamente o alferes mais novo em idade e também em antiguidade na tropa. Penso que isso se devia ao facto de o Torres ser o oficial de operações especiais, pressupondo-se ser entendimento de quem definia as regras, que a passagem por Lamego (onde se formavam as tropas especiais) conferia o discernimento e as capacidades que garantiam as necessárias qualidades de comando.
Era mais ou menos óbvio que o Cabrita confiava muito mais no alferes Fausto do que em qualquer outro dos quatro alferes da companhia. Aliás, teria sido essa a razão pela qual o meu pelotão foi escolhido para a primeira comissão no Rivungo. Ficava distante da Neriquinha e importava que ali estivesse alguém de confiança e com capacidade de liderança e o Fausto demonstrara bastas vezes que as possuía todas, ou quase.
Na verdade, não creio que, por ser o pelotão dos homens das operações especiais (o alferes Torres e o furriel Peixoto) fosse justificação para a sua permanência a tempo inteiro junto do comando da Companhia. Nunca me apercebi da existência de razões especiais que justificassem a atribuição da responsabilidade desta ou daquela operação a este ou àquele grupo e consequentemente a este ou àquele alferes, pelo facto de ser ou não especialista em operações especiais. Cada um alinhava de acordo com as ordens do Capitão ou segundo uma escala que se regia pelo seguinte princípio:
- Da última vez fui eu, agora vais tu.
De qualquer forma, também não me recordo de alguma vez alguém ter questionado a regra ou a ordem de marcha para o destacamento. Aliás, na tropa, não era aconselhável discutir decisões superiores e parece-me que, por esta ou por aquela razão e ainda por mais aqueloutra, quase todos preferiam o Rivungo à Neriquinha.
A outrora Santa Cruz do Cuando oferecia vários atractivos a que se podia acrescentar a vantagem de haver pouca probabilidade do Comandante de Batalhão aparecer por ali, o que não era razão de somenos importância. É que, o comandante Mendonça não era flor que se cheirasse e não me lembro de ter ouvido, em toda a comissão, uma única palavra de lisonja ao homem. Por ali apenas uma vez ou outra aparecia o comandante da companhia. Mas o capitão Cabrita não era homem de chatear sem motivo e não me parece que a notícia da sua visita fosse razão para pôr o pessoal em alvoroço.
O facto é que criei ali amizades e algum apego ao local. As agruras da missão eram suavizadas pelas rotinas criadas e a tendência para as quebrar apimentava a monotonia. Ao fim e ao cabo, tudo contribuía para que os dias passassem sem contratempos, relegando a angústia para segundo plano.
Na verdade, a transição de cada dia para o seguinte, era muitas vezes suavizada por ninharias.
Uma partida de Monopólio planeada para as instalações da Marinha, era suficiente para, muitas das vezes, contribuir para uma noite bem passada, onde uma equipa de jogadores, numa espécie de vício saudável e usando dinheiro de brincar, se desunhava pela compra de mais um prédio na Avenida da Liberdade ou na dos Aliados, seguindo-se a construção de mais um hotel virtual numa das ruas linearmente desenhadas sobre a cartolina, ali transformada em urbanização de ficção.
Certa noite, por ocasião da sua visita de acompanhamento religioso das tropas do batalhão, o alferes Capelão integrou um grupo de gente adulta e responsável (eu, o alferes Fausto, o tenente da Marinha e o Silva) que se manteve entretido até altas horas da Madrugada, num empolgante jogo de monopólio onde cada um procurava enriquecer o mais possível, levando os outros à falência. O vencedor só veio a ser declarado já sobre a madrugada, sem que alguém tenha dado pelo tempo passar ou se tenha sequer preocupado com isso. Não havendo nada de especial planeado para o dia seguinte, o tempo não contava. Desde que passasse sem se dar por ele, tudo estava bem.
Mas o Rivungo tinha ainda outras coisas. Por exemplo, o Rio Cuando. Ter tanta abundância de água, mesmo ali à mão, num sítio que não dispunha de água canalizada, não era propriamente algo a que não se desse importância. Para além do mais, podíamos mergulhar, dar uns passeios de bote e aventurarmo-nos em incursões nocturnas pelos seus meandros à caça de jacarés bebés. Com cuidado porque, mesmo minúsculos, se conseguissem apanhar um dedo entre os seus afiados dentes, não o deixavam em boas condições.
Enfim, aventuras que a juventude transformava em excitação, relegando privações para segundo plano.
Também não posso esquecer a sempre bem-vinda companhia do chefe França com a sua permanente boa disposição e laracha na ponta da língua. E o administrador Litenda, com mais uma história serôdia de feitos africanos, ou descrições de grandes caçadas e de explorações pelos recantos da savana profunda, onde não faltava a referência à sua especial destreza para conduzir por caminhos inexplorados ou impossíveis. Coisas difíceis para condutores normais. Não para ele.
- Nunca tive um acidente. Alardeava com frequência.
É verdade! Ainda não partira e já começava a sentir saudades. Mas apenas porque o destino era a Neriquinha. Se a opção fosse o regresso ao puto, tudo seria diferente e como mais tarde ficou demonstrado, a saudade daquele lugar foi mandada às urtigas. Hoje são apenas recordações.
Havia ainda a preocupação com a cadelita que adoptámos como mascote. Déramos-lhe o nome de Riquinha, numa espécie de alusão à sede da companhia. Era ainda pequenita, tropeçando amiúde, em resultado do pouco domínio que tinha das tenras patas. Rebolava por aqui e por ali e entretinha-se mordiscando as botas de cada um, ou saltitando à procura de um afago.
- Levamo-la connosco! Sentenciou o alferes Fausto.
Pela hora do almoço, ou pouco antes, chegaram duas berliets vindas da Neriquinha. Carregavam mantimentos, cerveja, tabaco e o grupo que nos renderia, exactamente aquele a que pertencia o meu amigo Gonçalves.
Seguiu-se a transferência das responsabilidades, dos stocks e equipamentos, fizeram-se as apresentações, incluíram-se recomendações, avisos e indicações de quem já dominava o espaço e arredores. Um último mergulho no rio e de novo com as poucas tralhas pessoais a tiracolo, rumámos de volta à sede da companhia, encavalitados no desconforto das berliets. Connosco seguia a cadelita, fazendo a maior viagem da sua vida.
Nem olhei para trás. Francamente, não me pareceu um adeus. Afinal, para além de não ter havido tempo de criar raízes, as saudades daqueles sítios não faziam parte dos nossos sentimentos. De qualquer forma, haveria de ali voltar, muitas vezes e mais uma comissão de três meses. Sim, regressava à Neriquinha, mas continuava a preferir o Rivungo.
Só não me passou pela cabeça que só voltaria a ver o Zé Maria, fugazmente, apenas mais umas duas ou três vezes.