quinta-feira, 25 de março de 2010

A PADARIA

Já tive oportunidade de me referir, de alguma forma, aos hábitos gastronómicos da população da Neriquinha. Para ser sintético, apenas relembro que não têm qualquer semelhança com os nossos. É que nem sequer há um simples pormenor que se pareça com a forma como nos alimentamos, por mais pequeno que seja.
Uma das iguarias que me atrevo a considerar como fazendo parte dos hábitos alimentares de qualquer ser humano, independentemente da raça ou religião, é o pão. Pão tem que existir, seja lá onde for e a Neriquinha não era excepção.
Correndo o risco de estar a ser atraiçoado pela memória, penso que a equipe de padeiros da companhia era constituída por dois profissionais: O cabo Sousa, entretanto já falecido e o soldado Luís Santos, que actualmente faz a sua vida por terras de França.
Os dois, com ajudas de uns e outros, tinham por missão garantir pão fresco bem cedo pela manhã, havendo outra fornada para o almoço e jantar. Dispunham de um forno artesanal que, bem ou mal, desempenhava a função. Era feito de pequenos tijolos refractários que suportavam bem o calor. A massa que os unia é que não, o que implicava que periodicamente tivesse de ser desmontado e reconstruído como se de um puzzle se tratasse.
Quanto à mesa de tender, uma simples tábua ao ar livre servia muito bem.
O que importava é que a sandes de paio ao pequeno-almoço estava sempre garantida, mesmo tendo de ser empurrada com duas cervejas.

sexta-feira, 12 de março de 2010

PERDIDOS...

N´riquinha, 1 de Abril de 1972.
Sábado da Ressurreição, um dia como qualquer outro, perdida que estava já a noção da diferença dos dias, ou o sentido da invocação de alguns deles, quando era a guerra e o isolamento escaldante das Terras do Fim do Mundo que nos marcavam as horas, os dias e os meses por riscar no calendário já meio sebento pregado na parede.
Meio-dia.
Vindo dos lados da Zâmbia, o ruído longínquo de um avião tipo Cessna quebrou por momentos a monotonia daquela manhã, obrigando a um breve esforço de localização e identificação de aproximação, ou não, da aeronave. As visitas eram raras e sempre pelo ar. Mas a expectativa do aparecimento de um qualquer comandante do Batalhão, Zona Militar, ou de Sector em pouso surpresa em “teatros de guerra”, que averbasse mais um “acto de bravura” ao cadastro de um eventual candidato ao 10 de Junho, era uma possibilidade sempre presente.
Em breves segundos se percebeu que a aeronave passava a uns bons quilómetros de distância e não se dirigia à N´riquinha, onde também podia fazer escala para reabastecimento.

O Domingo de Páscoa foi transposto dissolvendo na boca as tradicionais amêndoas doces em forma de elaborados esquemas de imaginação, a que alguns juntavam o sabor distante dos folares da terra, mastigados num quase masoquismo de fantasia, cuja aliança com o sol inclemente que os fustigava de manhã à noite, permitia uma breve sensação de realidade. À noite o rancho haveria de desmontar o cenário, como quem desfaz a tenda de feira e retoma o carreiro insonso das agruras da vida.

9:30 de Segunda-feira.
Um ronco potente, que nos reportava por momentos a sons longínquos provindos dos tempos da 2ª Grande Guerra, avassalou repentinamente as cercanias do aquartelamento, desenhando no céu uma figura canhestra de um cinza baço devassado por décadas de um lustro puxado à mão pela eterna pobreza dos tempos.
Era um velhinho PV-2 Harpoon, troando os seus dois motores de 2.000 HP cada, desenhando figuras em volta do aquartelamento, antes de se enfiar à pista e rolar até à porta de armas, onde se quedava por momentos desaparecido numa nuvem de poeira ruiva e fina, da qual cada um de nós preserva ainda uma espécie de memória de estimação em alguns dos recantos menos perecíveis dos sentidos.
Motores parados, haveríamos de esperar alguns minutos até que a nuvem se dissipasse e tornasse possível a aproximação.
Um pouco inquieto apressei-me e nem esperei que a poeirada se acalmasse em definitivo.
Ainda o piloto finalizava as operações habituais de fim de voo, já eu me quedava junto à asa sorvendo o calor do motor ainda em estalidos metálicos de arrefecimento.
A presença inusitada de um avião daquele tipo na N´riquinha só podia trazer maus presságios, normalmente presentes envenenados para a tropa, para quem já chegavam todas as guerras nas quais nos haviam mergulhado.
Minutos volvidos e já descia o meu amigo Capitão Pêpe no seu impecável fato de macaco azul. A ansiedade era tal que nem entrei pelos habituais cumprimentos. Disparei de imediato na esperança meio rançosa de me enganar no prenúncio.
- Vais-me dizer que vou ser atacado e põem o que resta da Força Aérea à minha disposição…!
Logo após um abraço e alguns sorrisos pela graça, que, no fundo, pouco tinha de engraçada…
- Não. A guerra parece que é outra. É que no Sábado caiu um avião, presume-se que aqui na tua área.
- Caiu um avião? Mas que avião? Aqui só há avião a meio da semana com o correio e o Nord às Terças com os géneros.
- Parece que era um mono-motor de uma empresa de Serpa Pinto que faz transporte de passageiros. Uma espécie de táxi aéreo. As últimas informações dizem que saiu do Rivungo no Sábado para reabastecer aqui, mas desapareceu e não deu mais sinal de vida.
Dando voltas à memória recordei o tal sinal de avião de Sábado sinalizado entre a N´riquinha e a Zâmbia, que conferia com a eventual rota vinda do Rivungo.
- Vais ter que me disponibilizar cama, mesa e roupa lavada não sei por quanto tempo. Isto é coisa para demorar, acho eu. Dentro de algum tempo devem começar a chegar aviões da empresa e outros para ajudarem nas buscas. Será aconselhável que preparem combustível para os necessários reabastecimentos.
- Então vamos começar pela mesa? – alvitrei.
- Não. Olha, ainda é cedo; vou dar por aí uma volta. Tendo em conta a rota, pode ser que ele tenha caído aqui por perto por falta de combustível.
E assim foi.
Ronco poderoso assistido por uma fumarada branca a sair dos escapes dos motores e eis que o PV-2 se lança em nova correria pista afora, elevando-se pesado nos ares.
Pouco tempo depois chegam dois aviões ligeiros, conforme prenunciara o Cap. Pêpe. Aterram e solicitam reabastecimento para as buscas que haveriam de ter lugar a partir daquele momento. Trata-se do proprietário do Cessna desaparecido, que dirige ele próprio um dos aviões, e traz consigo um outro também pertença da sua empresa.
Abastecem mas não levantam, porque o comando da operação de busca estava já confiado à Força Aérea, na pessoa do Cap. Pêpe, entretanto no ar.

A operação de busca e localização desenvolve-se por três dias utilizando o PV-2 e os dois aviões ligeiros da empresa, que se foram revezando com outros, sendo que o proprietário se manteve sempre presente no envolvimento das buscas. Presente e sempre muito nervoso. Viríamos a saber mais tarde que esta débil paz de espírito se relacionava com problemas de seguro de vida do piloto desaparecido, desenhando-se o pior dos cenários, caso não fosse encontrado com vida.

Quinta-feira, quarto, e último, dia de buscas, por decisão do Cap. Pêpe, partindo do princípio de que já não seria possível encontrar sobreviventes.
Delineada uma esquadria de busca a distribuir por quatro aviões agrupados num derradeiro esforço para encontrar o avião desaparecido, cada piloto tomou lugar na sua aeronave e levantou. Pêpe foi o último. Antes de subir ao PV-2, lançou-me um desafio:
- Anda daí porque tenho a sensação que nos vais dar sorte. Além disso conheces a zona e podes dar-nos uma ou outra pista.
Eu, que nunca me dei bem com os pés fora de chão firme, fosse em mar ou ar, ainda esbocei alguns argumentos enfeitando a minha relutância.
- Levantas e daqui a meia hora vais ter que me trazer de volta, com o “gregório” em primeiro plano…
- Não. Vamos levar aqui a banheira muito direitinha e sem ondas.
Convenci-me.

Naquele ponto das buscas havia uma única perspectiva; encontrar eventuais sobreviventes. O avião era na altura secundário. No Leste de Angola era frequente a queda de aeronaves sem grandes consequências para os ocupantes, tendo em conta a planura da savana. Logo, se tivessem sobrevivido, haveriam de se movimentar em busca de socorro. Nessa perspectiva, e tendo em conta alguma experiência de sobrevivência no mato que já possuíamos, havíamos sugerido, nos briefings de fim de dia, a busca em chanas abertas com água, porque a sede de cinco dias haveria de os prender num local com água e melhor visibilidade para quem os procurasse.

Tínhamos pouco mais de cinco minutos de voo. Sentava-me num banco solitário plantado a meio do avião, que na verdade voava direitinho, como havia prometido o Pêpe. Sem que nada o fizesse prever, o avião faz uma subida abrupta, para logo de seguida cair sobre a asa esquerda apontando o bico ao chão. Pensei: pregou-me uma partida, o Pêpe. Mas que raio de altura escolhida para brincadeiras.
- Pêpeeeeeeee…! Pára lá com essa m…. – gritei cá bem de trás onde me sentava agarrado a uma pega da fuselagem do avião.
Não obtive resposta no imediato, porque o PV-2 continuava meio louco como se lhe tivesse dado um ataque de nervos. As cabriolas continuavam e eu segurava-me como podia.
Na verdade era quase um verdadeiro ataque de nervos, mas de alegria.
- OS GAJOS ESTÃO ALI…!!! – grita o Pêpe meio embriagado de exultação, abrindo a porta do cockpit e apontando-me para baixo.
Olhei pela pequena janela quando o PV-2 fez um voo rasante ao solo e apenas vislumbrei três pessoas em perfeita loucura no chão: cambalhotas, saltos, abraços, braços no ar.
O Sargento de apoio à tripulação apareceu com um bidão de água preparando-se para o atirar pela porta do avião, entretanto aberta.
- Onde é que você vai com isso? – indaguei.
- Vou atirar aos gajos. Devem estar a morrer de sede. Já passaram cinco dias.
- De sede? Os gajos estão num rio… Estão é a morrer de fome…
O Sargento olhou-me, abanou a cabeça e balbuciou:
- Está a ver, capitão. É o que dá andarmos sempre aqui no ar. Nem nos apercebemos da realidade no chão.

Comunicada a posição dos sobreviventes, o PV-2 regressou de novo sereno e pousou perfeito.
- Como vês, viemos direitinhos como prometi – disse o Pêpe da porta do cockpit entretanto aberta, com uma euforia quase menina estampada no rosto, quando o avião já rolava em movimento lento para parar.
- Pois, mas lá no sítio perdeste a cabeça.
- Encontrar sobreviventes de quedas de aeronaves é a maior alegria que um piloto pode ter. Mas deixa-me contar-te; aquele braço de rio onde os encontrámos estava fora da quadrícula de buscas. Quando cheguei à bifurcação deu-me uma pancada e enfiei o avião naquele pequeno afluente do rio. Foi a sorte deles. Estavam mesmo ali à entrada.

Por volta das 17:00 um helicóptero da F.A. haveria de resgatar os três ocupantes do avião, depois de estes já terem devorado oito rações de combate entretanto lançadas dos aviões.
A história daqueles cinco dias confrontava a simplicidade das circunstâncias com o sofrimento dos três ocupantes do Cessna.
Haviam, na verdade, saído do Rivungo com muito pouco combustível, dirigindo-se à N´riquinha para reabastecer. Um procedimento normal. O piloto, um jovem pouco experiente e desconhecedor daquela área, orientou-se pela carta – antiga e obsoleta, como todas as daquela região – e dirigiu-se à antiga N´riquinha Velha, a dezoito km de distância da actual N´riquinha, sendo aquela a única que figurava na carta.
Desconhecedor da verdadeira localização da pista, ainda não assinalada nos mapas, procurou durante perto de uma hora sem a encontrar, vindo a cair a cerca de 70 km para sul.
As peripécias dariam um pequeno livro.
Num breve resumo.
Eram três os ocupantes: o piloto, um jovem africano com cerca de 23 anos (funcionário da General Electric), que se deslocava a um determinado local para reparar uma avaria, e um outro jovem cabo-verdiano que havia pedido uma boleia no Rivungo.
O jovem africano era a terceira vez que caía de avião…, mas afirmava: “… não será por isto que vou agora começar a andar a pé…”.
Nos momentos que antecederam a queda, quando o combustível faltou, enquanto o alvoroço se instalava dentro da aeronave, especialmente por parte do jovem cabo-verdiano gritando que iam morrer todos, o experimentado técnico da G.E. tomava conta dos acontecimentos: “… Calma! Ainda não morremos. Senta e reza. Se não souber rezar, senta só e acalma…”.
O piloto tendo apontado para uma chana com mais de 1 km de largura e chão plano onde poderia ter aterrado sem grande dificuldade, entendeu que mais “suave” seria pousar no pequeno curso de água que ali corria. O avião capotou de imediato resultando um ferimento no sobrolho do piloto e a destruição parcial da aeronave.
A deslocação que decidiram empreender a partir do local, procurando encontrar uma picada ou sinais de vida, foi uma epopeia que lhes perdurará pela vida fora.
Sem reservatórios onde pudessem transportar alguma água, deitaram mão das mais incríveis opções. A namorada de um deles acabou sonegada de um perfeito perfume e água-de-colónia refrescante para as tardes de calor ardente; os frascos foram esvaziados e neles acomodados alguns decilitros da preciosa água.
A fome devassou a perspectiva de morte na queda do avião e intricou mirabolantes esquemas de sobrevivência; horas foram passadas em emboscada a um rato que se enfiara num buraco e se recusou obstinadamente a participar naquela história, que, afinal, não era a sua.
Caça em abundância à distância de um tiro de flecha – mas sobranceira a um corta-unhas perdido no fundo do bolso que jamais encontrou préstimo naqueles dias – “… pareciam rir-se de nós...", percebendo-os desarmados e vulneráveis ao fragor de um único rugido de leão a bocejar o términos de uma sesta dormitada à sombra de um embondeiro”.
A noite e o medo montaram sentinelas que incendiaram todos os minutos que o cansaço rogava por um breve repouso de corpo e alma.
As horas, depois os dias, faziam bramir um âmago com 500 anos de submissão e a suspeita de uma eterna e vil escravidão: “… os portugueses, onde estão os portugueses que não nos vêm sequer procurar. Que é feito dos portugueses? Onde estão a porra dos portugueses…?”, recalcitrava estridente o desespero do jovem africano especialista em inopinados mergulhos na selva africana.

Quinto dia de uma desesperança já assumida e aceite.
Pouco além das 9 horas da manhã.
Um ruído de avião… uma alucinação entre tantas outras… um sonho acordado fermentando um desejo.
Possante e inequivocamente vivo o PV-2 rompe os céus num ronco abrupto e desesperadamente amigo. Cabriola como criança na areia da praia; rasa-lhes as cabeças num afago terno e acolhedor. Agita as asas como que acenando uma alegria que desejava comungar desesperadamente.
Por entre as mais destemperadas manifestações de regozijo, uma voz meio submersa numa emoção de novo escravizada, refunde uma confiança perdida:

“… afinal há portugueses… Olha só os portugueses que estão chegando…! Portugueses! Portugueses…!”

P.C.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Saudades de mulher branca

Se há algo de que um homem sente saudades é de mulher. Especialmente se acabou de completar 20 anos e para mais, sendo tropa. Nestas circunstâncias, mulher é coisa que, se não se tem à mão, vira obsessão.
Se está próxima e se sente a falta, força-se o encontro, mitiga-se o desejo e a saudade não chega a aparecer. Outra coisa é ser obrigado a abandonar aquela que escolhemos (ainda por cima linda) e ser levado para o outro lado do mundo. Sem qualquer hipótese de reencontro, desejar o que deixámos para trás ganha outra dimensão.
Mas quando, para além de tudo isso, somos relegados para o cantinho mais remoto do fim do mundo, como foi o caso da Neriquinha, os desejos explodem, multiplicam-se, moem o juízo e até doem, mesmo aos mais insensíveis. E garanto que só quem passou por isso sabe verdadeiramente o que é.
Ao fim de um mês a calcorrear as areias do Cuando Cubango, qualquer burra de saias, mesmo daquelas que se parecem com uma bota da tropa, começa a parecer-se com algo susceptível de despertar secretos instintos lascivos.
Com o passar do tempo, as mulheres da população, que nada deviam à beleza, pelo menos a beleza a que estávamos habituados, começam a ter graça, não obstante a pele áspera e o cabelo tipo esfregão, para não falar do cheiro característico, capaz de anular apetites insaciados. Mas, como quando se tem fome, até pão bolorento se come, os kafecos (mulher adolescente) eram mesmo a única alternativa possível, se bem que isso obrigasse a uma prévia preparação com uma parafernália de pomadas, unguentos e anti-inflamatórios contra a praga de doenças sexualmente transmissíveis que por ali grassavam, passando obrigatoriamente, após a visita, por um demorado banho purificador.
A máxima era, cautelas e caldas de galinha nunca são de mais e ninguém queria ter de ouvir as recriminações do Dr. Lacerda:
- Eu não te disse para teres cuidado! Da próxima vez que me apareceres assim, dou-te uma porrada.
O desejo de acariciar uma pele branca e macia e enterrar as mãos em cabelos sedosos tornava-se obsessivo. Aos poucos, a imagem que se procurava reter da amada deixada no puto, ia-se endeusando, virava miragem e ganhava foros de beleza extrema, quase sobrenatural.
Cada carta recebida era lida e relida. Procuravam-se cheiros que a longa viagem da missiva dissipara. Ansiava-se por uma fotografia recente que reavivasse a memória e fizesse relembrar os contornos, as curvas, os meneios. Esperava-se, enfim, que nos trouxesse de novo o imaginário do contacto impossível, da voz sensual ... eu sei lá …!!! Sabem que havia quem recebesse cassetes gravadas?
Na verdade, tudo isso só acentuava o desejo do reencontro, contribuindo para ressacas afogadas nuns golos de whisky, quando havia.
Era um facto, o desejo de mulher branca era algo que, creio, todos sentiram intensamente. Só que uns conseguiam disfarçar a falta enquanto outros a publicitavam.
- Só gostava de ver uma … nem que fosse de longe!
Confessava-se, com nostalgia evidente.
De facto, ao fim de meia dúzia de meses, mulher branca estava para nós como algo de que se ouvira falar, como se apenas a tivéssemos visto uma vez, em sonhos, mas nunca ao vivo. Olhar a fotografia era como se olhássemos para a caderneta de cromos de estrelas de cinema procurando imaginar como seriam em carne e osso.
Lembro-me que, nove meses passados, acabado de chegar à cidade do Luso, de passagem para Luanda a caminho das férias, ia sendo atropelado no meio da rua ao ficar especado, seguindo com olhares extasiados a primeira mulher branca que via ao fim de tanto tempo de isolamento. É verdade que também contribuiu o facto de já me ter desabituado do trânsito. Na Neriquinha, não havia ruas ou estradas, nem trânsito nem automóveis, já que as duas ou três berliets e os poucos unimogs eram como gota no oceano daquela savana imensa atravessada aqui e ali por picadas irregulares.
Não foi por acaso que ao fim de muitos meses me decidi a gastar uma pipa de massa e fazer uma viagem quase interminável até Lisboa, para gozar o mês de férias a que tinha direito. O pretexto era poder sair dali e rever a família. Na verdade, creio que se fosse só pela família (que certamente me perdoará o pecado) não teria metido pés a caminho.
A viagem era cara e durava uma semana, com paragens no Luso, Nova Lisboa e uma eternidade em Luanda para cumprir um conjunto de formalidades militares no Quartel General e perante um paspalho dum Sargento-Ajudante que tinha a missão de controlar as licenças, aproveitando o ensejo para controlar também o atavio. Para lidar com aquele exemplar de militar estúpido, era preciso cuidado. A probabilidade de não se gozar as férias e termos de regressar à Neriquinha, não era hipótese a pôr de parte.
Na Verdade e bem pensadas as coisas, o que me empurrou para fora da Neriquinha foi o desejo incontido de acariciar a pele aveludada e os cabelos sedosos que deixara no Cais da Rocha à partida de Lisboa. O desejo de sentir de novo o cheiro e o hálito fresco de mulher nem me deixou pensar duas vezes e foi-me tirando o sono à medida que a data da partida se aproximava. Era como se quisesse confirmar que, afinal, ela existia, era real, de carne e osso e que eu podia tocar-lhe.
Foi sol de pouca dura. As férias passaram num ápice e em pouco mais de um nada estava de regresso à Neriquinha, com as saudades de novo a atormentar-me os sentidos.
Certo dia, um avião militar, proveniente de Luanda e tendo como destino final a base de Henrique Carvalho, apareceu nos ares da Neriquinha. Avariara-se um motor e já voava à algum tempo apenas com o outro a funcionar. Não sendo aconselhável ir mais longe aterrou ali mesmo. Afinal, a nossa pista, de terra empoeirada, era um AR (Aeródromo de Recurso).
Para nossa surpresa, o Dakota vinha praticamente lotado com militares da Força Aérea e respectivas famílias. Aliás eram mais as famílias que se dirigiam a Henrique Carvalho para aí se juntarem aos respectivos maridos, na sua maioria oficiais da força aérea.
Quando se abriu a porta do Dakota, que se imobilizara na pista em frente à porta de armas, a surpresa foi total.
Uma a uma foram saindo mulheres. Primeiro uma, depois outra e mais outra e ainda outra. Ao todo, quase uma dúzia. Bem vestidas, penteadas, cheirosas e brancas meu Deus…!!! Todas elas..!!! Umas louras, outras morenas, até ruivas havia. Usavam sapatos que se enterravam na poeira sujando os pés delicados, que por ali não havia asfalto … nem calçada. Sapatos eram coisas que as mulheres da Neriquinha desconheciam, até porque não havia modelos que se adequassem àqueles pés.
Foi um corrupio. O pessoal abandonou os seus afazeres, aperaltou-se e aproximou-se. Uns mais de perto, outros mais ao longe, com respeito, sem alarido, mas com um desejo impossível de conter: ver mulheres brancas … e tão bonitas que elas eram. De repente, as mulheres ganguelas e até as kamachis, estas mais apresentáveis que aquelas, voltaram a ser tão feias quanto as acháramos à chegada.
Foi um dia memorável. Dentro do possível fizeram-se as honras da casa oferecendo o pouco que se dispunha: uns assentos junto à messe para as visitas se sentarem, uns refrescos e muita conversa, já que um passeio turístico pelo local era coisa impensável. As senhoras não deveriam estar interessadas e o calçado que usavam não o permitiria. Por outro lado, não havia nada para ver, a não ser que se quisesse mostrar o despojamento daquele nosso mundo, coisa que nem nos passou pela cabeça. Já estávamos habituados demais ao local para achar que isso era importante.
Entretanto, o pessoal, numa atitude de basbaque, ia rondando. Feromonas à solta, provocadoras, contaminavam o ar arrancando suspiros aqui e ali. Uns faziam comentários em surdina, outros apenas olhavam em silêncio. Palavrão foi coisa que desapareceu de repente. Falava-se pouco, não fosse sair alguma inconveniência, algo que pudesse ferir ouvidos tão delicados, como decerto seriam os de senhoras tão bem apresentadas.
Creio que por algum tempo até a segurança foi descurada. Não ponho de parte a possibilidade de os sentinelas terem abandonado o posto, nem que fosse apenas pelo tempo necessário para deitarem uma olhadela.
O súbito aumento populacional daquele bocado de savana delimitado por arame farpado foi de pouca duração. Pouco tempo decorreu, pareceu-nos, até que um outro avião aterrou na pista e recolheu as ilustres visitantes, levantando voo no meio de uma nuvem de pó em direcção a norte até desaparecer, diluído no azul intenso do céu.
Na Neriquinha apenas ficou o Dakota imóvel e silencioso e uma centena e meia de homens com água na boca, tecendo comentários sobre a beleza que, com olhares gulosos, acabavam de desfrutar.
- Vistes aquela loura…? A de blusa cor-de-rosa.
Perguntava um ao parceiro do lado.
- Sim, mas a morena, a de saia azul, era bem melhor. Viste as pernas dela?
Respondeu o interlocutor, procurando a concordância do outro sobre o pormenor dos membros inferiores da senhora.
- Cá para mim eram todas a estrear!
Sentenciou alarvemente o atrevido do costume.
O avião avariado, jazendo na pista, indefeso, obrigou a um reforço das sentinelas, pelo menos durante as noites que se seguiram e contribuiu para manter a animação por mais uns tempos. Com efeito, no dia seguinte, chegou um Nord Atlas que ali deixou um motor novo e uma equipa de mecânicos, que levou mais de uma semana a retirar o motor avariado e a montar o novo, garantindo um corrupio de curiosos à sua volta seguindo com interesse o desenrolar dos trabalhos.
Finalmente, com força renovada e depois de alguns ensaios e dois voos experimentais, o Dakota disse adeus à Neriquinha, deixando por uns tempos um sabor nostálgico.
Creio que foi a primeira e talvez a única vez que por ali foram vistas mulheres brancas. Para a maioria do pessoal da 3441, foi a única oportunidade, em dezoito meses, de poderem apreciar coisa tão desejada, ainda que apenas de longe e sem lhe poderem tocar. Nem sequer cheirar.
Ficaram apenas suspiros … muitos.