domingo, 1 de novembro de 2009

Raid ao Chiúme

Por: Egídio Cardoso

Um a um, os helicópteros levantaram voo, arrancando da pista um remoinho de pó vermelho. A meia dúzia de Alouette III que constituía a esquadrilha que a Força Aérea Sul-africana disponibilizara para a operação, seguiu em formação rumando a norte num voo suave sobre a savana a uma altura que permitia ver com nitidez o terreno que estava acostumado a pisar.
Sobrevoar a savana era, para mim, uma novidade, um deslumbramento que contribuiu para rapidamente anular o azedume pelo desaguisado com o comandante, não obstante continuar a parecer-me ridículo o episódio do camuflado.
Quilómetros de terrenos arenosos e chanas semi-pantanosas, pejadas de mosquitos, que lá em baixo levavam dias a vencer, eram galgadas num ápice dando uma ideia diferente da imensidão plana das Terras do Fim do Mundo.
A planura daquelas terras ganhava maior dimensão vista do alto. Até onde a vista alcançava apenas se divisava um horizonte longínquo, qual mar de cor verde seco entremeado de clareiras amareladas matizadas aqui e ali de um verde mais intenso assinalando o serpentear de rios e afluentes alimentados pelas águas das últimas chuvas. O barulho das pás dos Alouette atormentava manadas de palancas ou gazelas que, assustadas, encetavam uma correria desenfreada, fugindo daquelas coisas estranhas e barulhentas que ousavam perturbar a calma e o silêncio do seu inexplorado habitat.
Após uma viagem aparentemente curta, os helicópteros baixaram, no seu característico planar, aproximando-se da orla da mata, no outro lado de uma extensa chana, pousando sobre o terreno coberto de capim rasteiro. No ar, volteando sobre a área, apenas permaneceu o helicanhão zelando pela segurança dos aparelhos no solo. Cada esquadrilha integrava um, equipado com uma metralhadora de vinte milímetros montada transversalmente e que, em caso de ataque, despejava sobre o solo saraivadas de metralha capaz de dizimar quem se atrevesse a atacar.
Saltei sem dificuldade, não obstante o peso do equipamento que transportava, lembrando-me das vezes que, ainda em Santa Margarida, exercitei a manobra. Contudo, aí, o helicóptero pairava a alguns metros do solo, levando a entorses perante o salto para um solo irregular. Agora, em pleno cenário real, não havia razão para tal. Pousar, largar as tropas e levantar de novo, era coisa de instantes e evitava hesitações de um ou outro menos afoito que se atemorizasse perante a altura ou incerteza do solo onde aterraria.
Afastámo-nos rapidamente do local procurando protecção na orla da mata, aguardando pela segunda leva que completaria o efectivo destacado para tão importante operação.
A forma meticulosa como fora preparada, o empenho directo do comandante de batalhão, o armamento que se transportava, o envolvimento de uma esquadrilha de helicópteros vinda de propósito da vizinha Africa do Sul e o facto der ser comandada pelo próprio comandante da companhia, eram sinais mais do que suficientes para nos convencermos da sua importância.
Devia ser coisa em grande. Pelos vistos, tinha sido detectada uma grande base do inimigo, lá para os lados do Chiúme, mas ainda dentro da nossa área de actuação e falava-se à boca pequena que os altos comandos em Luanda, haviam pensado executar a acção com recurso a tropas de elite integrando forças dos comandos e unidades de pára-quedistas.
Ao que parece o Ruizinho encheu o peito de ar e atreveu-se a contrariar tão experientes estrategos.
- Quais tropas de elite qual quê! De elite eram os homens sob o seu comando, que muito melhor dariam conta do recado. Com um pouco de sorte até poderia haver feridos, ou mortos … sabe-se lá, o que a acontecer aumentaria a heroicidade da acção e o reconhecimento das altas patentes.
O grupo espalhou-se, procurando a sombra das árvores que bordejavam a chana, enquanto o capitão Cabrita conferenciava com os alferes à volta da carta militar do terreno.
Cogitando com os meus botões, à medida que, regressando, os helicópteros desapareciam ao longe, assaltou-me uma dúvida. Para mim, visto do alto, o terreno era todo igual. Pelo menos as chanas não se diferenciavam. Quem me garantia que era aquela e não outra? Como sabiam os sul-africanos que aquele era o local exacto? Podia ser a chana seguinte, outro ponto mais a norte, ou outro mais a sul.
Mas parece que o sítio era mesmo aquele, já que as ordens para o início da caminhada foram dadas sem hesitação e o carreiro por onde metemos parecia corresponder ao indicado no mapa.
Não havia tempo a perder. Era necessário chegar ao objectivo dentro dos tempos planeados, impondo-se uma progressão em ritmo vivo e esgotante, por um percurso arenoso, por vezes acidentado e irregular. As ordens vinham da frente por monossílabos. As paragens eram escassas. Parecia que o capitão Cabrita tinha fôlego de gato. Só demonstrava cansaço quando o resto do pessoal, já em dificuldade, se arrastava como que rebocado pelos da frente.
Excepto o carregador. Mais uma vez a resistência daquela gente me surpreendia. Contratado apenas para carregar as tralhas do enfermeiro e do homem das transmissões, acabou por ir aceitando carregar, a troco de algum dinheiro, os sacos de uns tantos. Como a procura era muita, improvisou uma vara, prendeu nas pontas todos os sacos que negociara, equilibrou o peso de um lado e outro e carregou-a aos ombros. O pau vergou sob o peso, mas o homem, não.
O sol aproximava-se lentamente da linha do horizonte, aliviando os corpos cansados das suas ferroadas. A ordem para parar caiu como uma bênção. Mas foi sol de pouca dura. Logo que a noite tomou conta da mata, novas ordens, dadas em surdina, puseram de novo o grupo em marcha. Só após um curto percurso em silêncio e às cegas pela mata e que pareceu durar uma eternidade, se decidiu o local de pernoita. Um sítio qualquer de contornos diluídos na densa noite. Tratava-se de uma medida de segurança visando evitar que o inimigo desse conta do sítio exacto onde dormíamos, anulando a possibilidade de ataque durante o sono.
Metido dentro de uma farda molhada de suor, acomodei-me no chão irregular o melhor que pude. Tacteei dentro do saco, escolhi uma lata de ração, abri-a em silêncio com a ajuda da faca de mato e engoli o seu conteúdo de sabor atípico. Recostei-me e adormeci vencido pelo cansaço.
O dia seguinte revelou-se demolidor. Os pés não resistiram à dura textura das botas. As costuras das calças do camuflado cederam ponto a ponto, transformando-se num pano que esvoaçava ao vento. O percurso ora irregular, ora de areia solta, fazia do caminhar martírio, tudo condimentado com um calor sufocante.
Maldizia o comandante. Não se gostando do homem, tudo o que não corria bem era culpa dele. É que, parece ter partido dele a informação de que haveria minas na zona, atoarda que determinou a opção pelas botas de cabedal, mais resistentes, em vez das de lona, mais confortáveis e adequadas ao terreno arenoso da savana.
Andar, tornou-se doloroso. As bolhas eram tantas que já não as conseguia contar. Andar descalço, com as meias a fazer de sapatos foi a melhor opção. As botas, presas uma à outra pelos atacadores, eram transportadas ao pescoço, pendentes sobre o peito, uma para cada lado.
Era imperioso continuar e encontrar o objectivo ou o que quer que nos trouxera ali. A missão teria de ser cumprida dentro dos timings e o Major de operações, sobrevoando a área na pequena Dornier, controlava os nossos passos.
O capitão, agarrado ao pequeno AVP1, comunicava lá para o alto informando da situação e recebendo no retorno, ordens, directivas e informações. Consultava os mapas e conferenciava com os alferes. Até então, nada havia sido encontrado que permitisse adivinhar a proximidade de instalações inimigas e menos ainda se estariam ou não à nossa espera, se iriam dar luta, aquietar-se ou fugir. Parece que, lá de cima, da pequena avioneta, também nada era visto. Àquela altura nem nos devia enxergar.
A proximidade do Cuando revelou sinais do que teria sido uma horta ou coisa parecida. Contudo, era óbvio que há muitos anos ali não era plantado ou colhido o que quer que fosse. Um raquítico limoeiro, enfermo pela falta de cuidados, com dois ou três limões ainda do tamanho de bolotas, fazendo companhia a uma bananeira enfezada que timidamente deixava ver por entre as tenras folhas um minúsculo cacho a desabrochar, era tudo o que restava da horta.
Contornámos o perímetro, penetrámos na mata, voltámos ao rio sem que se tivesse encontrado qualquer trilho ou sinal de vida. Interrogávamo-nos se estaríamos ou não no local certo ou se as informações que estiveram na origem de tão importante operação militar eram ou não correctas. Com o pessoal à beira do esgotamento, quase sem ração de combate e já sem saber onde procurar mais, o Capitão deu ordem de regresso. Ainda havia um longo caminho a percorrer até ao local combinado para a recolha e o tempo urgia.
A decisão, para além de bem-vinda, animou a malta, pelo menos a princípio. Mas o cansaço foi tolhendo os movimentos e atrasando a marcha. As paragens passaram a ser mais frequentes progredindo-se muito pouco.
Era um facto que não seria possível chegar ao ponto definido dentro do tempo programado. Um último esforço levou-nos a um descampado, no meio da mata a menos de meio caminho. Era uma área de vegetação rasteira e sem árvores. Apenas uns paus secos ao alto, espécie de carcaças de árvores mortas, emergiam aqui e ali por entre os arbustos. Era a solução que acabaria com o sofrimento. Bastaria limpar a área de um pau ou outro, cortar os arbustos mais viçosos e teríamos um improvisado heliporto. Era só comunicar o novo local de recolha via rádio e em dois tempos estaríamos em casa.
O homem das transmissões agarrou-se ao rádio, estabeleceu o contacto e em poucos minutos a anuência foi obtida. Numa espécie de energia renascida, cada um se precipitou sobre o que quer fosse considerado obstáculo ao pouso dos helicópteros. Facas de mato substituíram foices e machados. Os troncos secos não resistiram tombando vencidos pela força braçal que os empurrava.
Foi com alvoroço que vimos os Alouette pousar, um a um, por entre um esvoaçar de folhas e retirar-se com a primeira leva em direcção ao aconchego da Neriquinha, tão inóspita e simultaneamente tão acolhedora.
Afinal, de pouco valera o esforço. As bolhas dos pés tinham sido um sacrifício em vão. Com a garganta ressequida pelo pó, desci do helicóptero para a consistência avermelhada da pista e coxeei até à camarata. De momento, o que mais desejava era sentir a fresquidão do duche e esticar-me ao comprido. Quanto às bolhas, sararam depressa, mas durante uma semana andei de chinelos.

3 comentários:

Pedro Cabrita disse...

Hoje, e a esta distância, é curioso registar aquilo que vocês imaginavam acerca de determinadas acções, apenas com o conhecimento da decorrência das coisas e não de alguns "segredos" de planeamento que, na maior parte das vezes, tinham que ficar reservadas aos elementos do comando e mesmo algumas, só eu sabia.
A Operação no Chiúme foi uma delas e à partida estava previsto contacto com o inimigo.
Por outro lado, eu levava um recado-ameaça do Comandante que me apontou o dedo e disse: “… desta vez você tem que me trazer armas!”
“As armas” eram o condimento para a promoção do nosso Comandante… com o sacrifício da nossa carne para canhão…

Se bem se lembram, a operação teve uma envergadura enorme. Depois de nós, 4 dias depois, lançaram os GE’s e no fim uma Companhia de Comandos.
A operação acabou por ser um fiasco em termos de resultados, tendo em conta os meios utilizados.
Nós éramos o isco; os GE’s seguiam-se no sentido de bater largas zonas por onde se dispersassem os elementos armados e por fim os Comandos para recolherem os louros, ou seja, dizimarem um inimigo disperso, cansado e sem organização.

Esta operação teve vários erros de avaliação. Nem o inimigo era assim tão forte naquela zona (aparentemente veio a perceber-se que estavam mais interessados em martirizar os de Ninda, conforme se pôde ler recentemente naquela saga protagonizada pelo A. Lobo Antunes) e aquele tipo de operação com tanto meio aéreo não funcionava em zonas de grande dispersão.
Se bem se recordam, uma hora depois de sermos lançados ouviu-se o rebentamento distante duma granada, sinal de que a nossa presença estava detectada e a partir daí o efeito surpresa acabava. Era o sinal para recolher as populações que se encontravam nas lavras, a fim de as preservar.

Será interessante contar um episódio dessa operação de que ninguém teve conhecimento, porque não podia (segredos de Estado…). Sabendo agora será mais fácil perceber algumas das movimentações que ocorreram nessa operação, entre elas, as bolhas nos pés do Cardoso… De facto eram esperadas minas.

.../... (cont. post seguinte)

Pedro Cabrita disse...

.../...

O objectivo que me deram para assaltar, e que vinha assinalado numa carta entregue em mão pelo nosso Major Caetano, tinha um erro de 10º…
Razão porque andámos meio tontos de um lado para o outro, porque o objectivo que me deram não conferia com o traçado do terreno que a minha carta assinalava. Só admiti isso ao fim de dois dias, embora com enorme receio de estar a aceitar um erro tão grosseiro da parte do comando, uma coisa que me parecia inadmissível.
Mas assim era de facto. Depois de muito andarmos, invertemos o sentido da nossa marcha e aquilo que encontrámos não era obviamente o acampamento assinalado, mas um outro já antigo e abandonado. Chegámos aí já ao 4º dia de manhã. Razão porque tivemos que mudar de lugar de recolha, por termos perdido tanto tempo à procura do objectivo.
Fiquei com a ideia de que o acampamento estaria ali por perto. Contudo pareceu-me que seria arriscado procurar o contacto com o pessoal extenuado (foi de facto uma maratona) e o mais certo (o que se veio a provar) era não estar lá ninguém, tendo em conta que a nossa presença estava assinalada havia 3 dias.
Chegados à N’riquinha, ainda o heli não tinha parado as pás, já eu saída de carta na mão (qual Luís Vaz de Camões) direitinho ao Major Caetano (que já vinha ao meu encontro, aparentemente com o fim de me aquietar), meio desesperado e quase vociferando: “… a localização do objectivo tem um erro de 10º…!!!”.
Nunca cheguei a saber de quem tinha sido a falha. Mas obviamente que tinha sido perpetrado por alguém do Gabinete de Operações do Batalhão. O meu desespero tinha a ver com a irresponsabilidade dum erro daquela envergadura, que nos poderia até trazer dificuldades, enviando-nos para um sítio, quando o inimigo nos poderia aparecer de outro inesperado. E tendo em conta que era o “ar condicionado” que cometia tamanha falha e os mouros do terreno é que arcavam com o ónus, foi com alguma dificuldade que o Major lá me acalmou, reconhecendo o erro e, na prática, quase sugerindo que a coisa ficasse por ali.
E ficou. Percebi a ideia e nem mencionei isso no relatório. Obviamente que o Major seria sempre o responsável, mesmo que o erro fosse do cabo.
Não sei se estas histórias clarificam melhor alguns dos acontecimentos.
Já lá vão exactamente 36 anos….

P.C.

Egidio Cardoso disse...

É verdade, dos segredos da operação, de facto, nunca viemos a saber promenores.
Mas também é verdade que tenho consciência de que certos pormenores, os tais segredos de estado, não poderiam ser do conhecimento de tropas subalternas.
Já o referi algures nas histórias que por aqui tenho deixado.
Para mim, isso era normal.
O que descrevi relativamente a esta operação é o que a minha memória permitiu preservar. Mas fique com a certeza de que alguns do subalternos tinham consciência que andavam a reboque de planos gizados pelos guerreiros do ar condicionado. Era exactamente por isso que temíamos certas operações. Eu pelo menos, sentia sempre alguma insegurança.
O episódio das botas de cabedal não me passou ao lado.
Afinal houve muita insistência para que assim fosse e isso nunca tinha acontecido em outras operações igualmente importantes.
De quelquer forma, passado tanto tempo, já não doi nada.

Abraço
Cardoso