quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

A FESTA

Já há algum tempo que os imbondeiros haviam florescido. Ninguém deu por isso nem pelo intenso odor a carniça que certamente exalaram. Floresceram durante a noite numa exuberância de branco açucena que não chegou a durar vinte e quatro horas. Por mim, apenas me lembro de, tempos depois dessa epifania floral, ter reparado naqueles grandes frutos dependurados de longos pedúnculos; a múkua é, de facto, um fruto esquisito a condizer com o gigantismo pouco elegante daquela árvore estranha.
Mas é assim, a acácia rubra floriu colorindo aqui e ali a paisagem de pinceladas avermelhadas, entrou novembro, a chuva ensaiou as primeiras borrascas e a paisagem começou de novo a verdecer. Não era propriamente o mês de sazão, que por aquelas bandas nenhum mês tem esse exclusivo, mas notava-se que as mangas intumesciam começando timidamente a ruborescer anunciando o princípio da maturação que lhes daria a doçura perfumada que as caracteriza, que banana, mamão e papaia há-os todo o ano. Talvez por isso ou por mera sugestão, o ar parecia-me rescender a fruta madura e aloés à mistura com o aroma adocicado e quente do dendém.
Por aquela altura, estava completa a adaptação aos rigores africanos. Já me parecia normal que as chuvas diluvianas viessem com o calor e há muito que considerava natural que não era possível dormir sem a protecção do dossel anti mosquito. É verdade! Sem darmos por isso, o tempo havia passado e estavam quase a completar-se dois anos desde que o Vera Cruz, após cruzar o oceano, nos deixara no cais de Luanda na ignorância do que nos esperava nem qual o nosso destino. Agora, que o tempo havia passado e não obstante os rigores sofridos, olhava-se para trás e, quiçá com o tempero do conforto das Mabubas, quase se podia pensar que o tempo passara depressa e isso merecia comemoração.
Pois é! Planeou-se um dia de festa e decidiu-se que seria num domingo. Aproveitava-se a folga do fim-de-semana e era o dia em que as Mabubas se enchiam de gente que, vinda de Luanda aos magotes, aproveitava o descanso semanal para visitar a barragem. Queríamos uma coisa memorável e o público ajudava a conferir grandeza aos festejos.
Não retenho pormenores mas creio que as acções preparatórias foram divididas por todos: era preciso organizar tudo, decidir o que fazer, planear os eventos, calendarizar as provas, inscrever concorrentes e convidar gente. Marcaram-se os itinerários, nomearam-se árbitros e fiscais de prova e definiram-se regras. E, como importava garantir o empenho dos competidores, mandaram-se fazer taças, galhardetes, prémios e outros troféus, três por cada modalidade, já que rancho melhorado estava garantido. Tudo autorizado pelo capitão com financiamento acautelado pelo nosso primeiro-sargento.
A promoção do evento também não foi descurada: imprimiram-se panfletos anunciando o programa de festas afixando-os por tudo quanto era sítio incluindo a tropa e o comércio do Caxito. Visitámos a pista de motocross de Luanda e chegámos a convencer alguns pilotos a participar. Enfim, um afã organizativo como se aquela fosse a nossa última missão já que, sem que se desse por isso, a guerra que para ali nos levou fora empurrada para a periferia do nosso arquivo de recordações.
Foi um dia memorável e quase se pode dizer que a localidade das Mabubas se engalanou. Não houve motocross porque não foi possível preparar uma pista adequada, mas substituímo-la por uma gincana de motorizadas. Quanto ao mais, correu tudo como planeado: a prova de pesca, sem grande empenho por parte dos peixes que não quiseram deixar-se apanhar, a natação em que o Zip, julgando-se perseguido por um crocodilo, bateu o seu record pessoal, o atletismo, com alguns craques à altura e finalmente o tão esperado rally automóvel. Na verdade, foi mais uma gincana na qual quem tinha carro participou: O Sr. Almeida com o seu Ford Escort, o João da mercearia a querer mostrar a potência do seu BMW 2002Ti novinho em folha, um desportivo de que não sou capaz de me lembrar a marca nem de quem era e, como não podia deixar ser, o velho Simca Aronde do “Bacalhau” que deu o que pôde mas sem condições para competir com a potência dos demais.
Finalmente, num cerimonial presidido pelo capitão, os prémios foram entregues aos vencedores, voltando o local à rotina de todos os dias. Tudo correra bem e terminou melhor.
À noite, como que fazendo o balanço da jornada, dei por mim a pensar que a nossa missão por terras africanas terminara. Tinham-se completado dois anos e agora apenas restava aguardar que outros nos viessem render. Pode parecer bizarro mas, ao contrário do que acontecera na Neriquinha, não senti qualquer tipo de impaciência relativamente à chegada desse dia, pelo menos naquele momento. Interiorizei apenas que podia ser em qualquer altura. Já não havia pressa e ali não se estava mal.