segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Artesãos da Neriquinha

Numa abordagem superficial, a produção de artesanato poderia parecer tratar-se de mera ocupação do tempo. Mas se se tiver em atenção o que produziam, facilmente se conclui que a arte de esculpir a madeira e moldar o ferro visava em primeira mão a produção de ferramentas e utensílios necessários ao dia a dia daquelas gentes. Aquela forja artesanal e curiosa, manipulada pelo Século Sarikissi, com a qual forçava sem esforço o ar até o braseiro que tornava o ferro incandescente, não fora invenção recente. Mais, não tinha por finalidade a simples produção de artesanato.
È claro que a lixeira da tropa se transformou num local onde encontravam matéria prima pronta a ser transformada: bocados de molas partidas das viaturas eram facilmente transformados em facas, machados (javites) e lanças; aduelas de barris que ali chegavam acondicionando azeitonas e outras conservas viravam cadeiras e artefactos e a abundância de madeira existente nas matas era facilmente transformada em objectos procurados pelos tropas dando lugar a um mercado em que cachimbos, cinzeiros artísticos, pequenas estatuetas, tambores e caretos constituíam uma fonte de rendimento até então inexistente.A arte de moldar o ferro e esculpir a madeira tornara-se um negócio, passando as ferramentas a serem aos poucos adquiridas no Chiado.
















quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O CHIADO

A população da Neriquinha e arredores não ligava muito ao dinheiro. Na verdade, o seu modo de vida e a satisfação das suas necessidades básicas dispensava tal modernismo; tiravam da terra quase tudo o que consumiam, fabricavam a maior parte dos utensílios que precisavam e colhiam na mata os materiais com que construíam as suas casas.
Era uma economia agrária, rudimentar e por ali não havia mercearias, supermercados, drogarias ou outras lojas que convidassem ao consumo.
A chegada da tropa a tão remotas paragens veio contaminar este despojado modo de vida. Com a tropa, vieram também coisas que rapidamente os conquistaram. O tabaco e o álcool contam-se entre as novidades a que rapidamente aderiram, especialmente as mulheres; com um simples maço de tabaco obtinha-se de uma mulher muitos favores.
Mas o álcool era talvez aquilo que mais apreciavam. Com muita frequência encontrava-se pelo kimbo mulheres totalmente embriagadas, à força de emborcarem quantidades significativas de uma mistela alcoólica de produção caseira obtida a partir da fermentação das sementes de massango. De cor castanho forte e com muito mau aspecto constituía até então a única bebida que conheciam para afogar as mágoas se é que era esse o intento.
À vista da beberragem, uma garrafa de brandy, de cor nacarada e límpida, assemelhava-se a coisa especial, inatingível; um néctar próprio dos deuses, mas de preço muito elevado para bolsas tão magras.
O produto era de facto muito apreciado e todos sabiam disso. Exactamente por isso, certa vez, no Rivungo, o cabo enfermeiro apostou que, prometendo uma garrafa de brandy a uma mulher que trazia fisgada, conseguiria uma noite de prazer sem gastar um centavo. Pegou numa garrafa vazia, encheu-a com metade de água e metade de álcool puro subtraído da enfermaria, adicionou meio frasco de complexo B para conferir uma cor amarelada à mistela, rolhou muito bem e deu-a de presente anunciando o melhor brandy do mundo. Foi dia de festa para a mulher; bebeu a garrafa numa noite e no dia seguinte queria mais:
- Brandy muito bom, nosso cabo, machiririca.
De uma assentada, elogiava a qualidade da mistela e com o machririca mimoseava o enfermeiro.
Mas não foram apenas novos produtos que a guerra levou àquelas bandas. Novos hábitos de consumo, algumas utilidades, umas quantas futilidades e algum dinheiro também ali chegaram, contribuindo para uma aculturação paulatina, que levou aquela gente a ir aderindo, uma após outra às novidades, até já não dispensarem certas modernices. Por exemplo muitas mulheres já não passavam sem o seu cigarro; compravam-nos, cravavam os militares ou então recebiam-nos em troca de um agrado. Na sua maioria, especialmente as mais velhas, fumavam introduzindo na boca o cigarro ao contrário. Depois de o acenderem, enfiavam na boca a ponta incandescente deixando de fora a boquilha e assim ficavam até o cigarro se consumir. Nunca percebi como faziam aquilo; não molhavam o cigarro, a chama não se apagava e consumiam-no até ao fim sem se queimarem.
A grande novidade que veio com a tropa foi o dinheiro o qual, como não podia deixar de ser, foi chegando às mãos daquele povo, quer como paga dos serviços que prestavam, quer como provento da venda do que pudesse interessar aos forasteiros; o sexo era uma boa fonte de rendimento perante a quantidade de homens sedentos de mulher e o variado artesanato que produziam tinha boa aceitação entre os tropas.
Depois havia o ordenado pago aos GE’s, substancialmente maior que as demais fontes de rendimento. Recebiam muito menos que qualquer soldado mas para eles era dinheiro que não tinham onde usar. E isso levava-os a gastá-lo na cantina, comprando álcool.
Por outro lado, lojas, naquele fim de mundo, abertas ao público, eram coisas escassas. Apenas no Rivungo havia uma rudimentar loja explorada pelo velho Miguel, vendendo pouca coisa e em Mavinga, tanto quanto me lembro, não haveria mais do que duas. Mas, como era preciso pelo menos dois dias de caminho para vencer a distância, tinham pouca utilidade para a população da Neriquinha e qualquer delas não vendia nem tabaco nem álcool; apenas uns panos coloridos, umas missangas, uma coisa ou outra e nada mais. Os clientes escasseavam, o dinheiro era pouco e os hábitos de consumo inexistentes. Ou seja comerciante por ali não se safava, o que confirmava a minha teoria de que o marinheiro Godinho, quando voltou para o Rivungo e ali se estabeleceu tomando de trespasse a lojeca ali existente, fê-lo certamente atraído pelas armadilhas do amor que o prenderam à negra por quem se embeiçou. Nunca mais regressou à civilização, acabando ali os seus dias volvidos alguns anos e não consta que tenha ficado rico.
Ora, a Neriquinha não era uma localidade. Como já se disse, era apenas um acampamento militar delimitado por uma cerca de arame farpado no meio da terra de ninguém. A população que ali habitava apenas se arrumou do outro lado da cerca, procurando a segurança e o conforto que a tropa propiciava. O facto é que, como se sabe, logo que findou a guerra, a tropa abandonou o local, a população zarpou, procurou outros lugares, ficando a Neriquinha a apodrecer, abandonada, até se converter em ruínas tomadas pela mata.
Mas, voltando ao tema do comércio, é claro que a lacuna tinha de ser suprida. A Neriquinha precisava de uma loja; a população que ali se juntou tinha necessidades que precisavam de ser satisfeitas e a tropa encarregou-se disso. A 3441 herdou da companhia anterior e suponho que também esta herdou da que a antecedeu, uma cubata grande, um barracão todo feito de capim já enegrecido pelo tempo, estrategicamente plantado perto da passagem que ligava o aquartelamento ao Kimbo, nas traseiras da ferrugem.
Eufemisticamente puseram-lhe o nome de “O CHIADO”. Ali se vendiam umas quantas tralhas: panos de diversos padrões e cores, ferramentas onde se incluíam as enxadas, panelas de ferro tipicamente portuguesas (daquelas com tripé) ideais para cozinhar sobre lenha, uns alguidares de plástico, uns canecos, uns pratos de lata esmaltada, facas, colheres, garfos, missangas e outros adornos e mais uns quantos artigos que se consideravam poderem interessar à população.
Para a gerência do estabelecimento foi designado o furriel P. Costa, acumulando com a coordenação da horta. Já que o capitão o dispensou da actividade operacional por alegadamente sofrer de uma qualquer doença incapacitante, ao menos tinha com que se entreter. Mas, vistas bem as coisas, a nomeação foi acertada. O P. Costa tinha jeito para o negócio, sabia lidar com aquelas gentes e pelos vistos era de confiança, já que, tanto quanto sei, o estabelecimento dava lucro.
Assim, quando os GE’s recebiam o seu ordenado, havia como gastar o dinheiro em coisas úteis, e não apenas na cantina, embora isso não impedisse que o stock de brandy sofresse baixas consideráveis nos dias que se seguiam. De facto, amor ao dinheiro era coisa que não tinham e menos ainda hábitos de poupança e também não aspiravam a nada que pudesse ser alcançado com as poucas notas que recebiam mensalmente.
Nesta ordem de ideias, e não tendo o dinheiro serventia, o normal era gastarem-no todo nos primeiros dias em bebida que ingeriam sem comedimento e isso poderia constituir um problema de ordem social e pior que isso de ordem disciplinar. GE’S bêbados por dias consecutivos não era muito auspiciante.
E foi por todas estas razões que o capitão, investido em representante da autoridade do Estado, determinou que uma parte do ordenado lhes fosse pago em espécie; exactamente em artigos à sua escolha que seriam fornecidos pelo Chiado, ficando assim garantido que, pelo menos essa parte, não se evaporaria em álcool.
O facto é que o Chiado foi cumprindo a sua missão: as mulheres começaram a andar mais vestidas, passaram a exibir adornos de missangas coloridas e as latas velhas e negras de fumo, recolhidas na lixeira da tropa e até então utilizadas na confecção das refeições, foram sendo substituídas por panelas de ferro.

O Chiado não abria todos os dias e quando abria era por pouco tempo, já que o fluxo escasso e intermitente de clientes, não obrigava ao cumprimento de horários comerciais. Quem quisesse comprar alguma coisa sabia onde estava o lojista e o P. Costa não se esquecia de manter o estabelecimento aberto nos dias que se seguiam ao recebimento das mesadas, quer se tratasse de GE’s, dos rapazes que lavavam a roupa, dos serviçais que ajudavam na enfermaria, na horta, na cozinha e na messe ou onde pudessem garantir uma fonte de rendimento.
O lucro do negócio propiciado pelo Chiado não engordou ninguém em particular. Foi usado até ao fim da comissão para compensar a escassez da verba para alimentação. Graças ao Chiado, comemos um pouco melhor durante o resto do tempo que durou a nossa missão por terras angolanas. E a população agradecia a possibilidade de adquirir algo de que precisasse em troca do dinheiro inútil. Não fora isso e provavelmente gastaria as suas parcas receitas monetárias em coisas supérfluas; talvez em álcool.