quarta-feira, 11 de maio de 2011

Angola-Onde está a dignidade do Estado Português?

A BAIXA DE LUANDA COM AS SUAS NOVAS CONSTRUÇÕES EM ALTURA



Por motivos profissionais, tive que me deslocar a Angola no passado mês de Março. Tentei, sempre dentro dos limites do tempo disponível, informar-me sobre as transformações que aquele país está a passar e visitar os locais que a memória ainda preserva, e, o que vi, era, de uma maneira geral, positivo: estão a nascer, por todo o lado, hospitais e centros de saúde, escolas, universidades e centros de formação profissional, constroem-se milhares de quilómetros de estradas, recuperam-se e reestruturam-se centenas de pontes, requalificam-se e urbanizam-se as cidades, na periferia (de Luanda, Huambo, Benguela, Lobito, Soyo e Kuito) nascem centros comerciais e bairros de habitação com milhares de fogos, ampliam-se portos de mar e aeroportos, o comércio vai-se estabelecendo e espalhando por todo o lado (importantíssimo o comércio informal e ambulante), iniciam-se projectos industriais com a participação de empresários estrangeiros, enfim, nota-se um país a nascer e a querer crescer com estabilidade.
Mas, as dificuldades criadas pela burocracia, a pobreza, a falta de qualificação dos jovens, os elevados preços dos bens essenciais, a tremenda dependência aos grupos económicos estrangeiros, o estado de destruição em que ficou Angola depois da guerra e o peso na economia de algumas famílias privilegiadas, faz com que o estádio de desenvolvimento seja menor do que o desejado.
Porque pretendia visitar as sepulturas de 2 militares de Penalva do Castelo mortos em combate, cuja localização eu conhecia (info da Liga dos Combatentes) e como a minha filha mora perto de Miramar, fui visitar o Talhão dos Militares Mortos em Combate no cemitério principal de Luanda. Este cantinho de Memória, Coragem, Heroísmo e Portugalidade, foi objecto de um tratamento especial nos acordos da Independência de Angola e cabe ao Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, através da Embaixada em Luanda, fiscalizar e "tomar conta" de tal espaço.
Melhor fora não ter lá posto os pés!
À entrada, perguntei ao porteiro (funcionário da Câmara Municipal de Luanda) onde estava situado o Talhão Militar:
-Ah! ... do colono? Lá atrás! - e indicou-me, com o braço, o fundo do cemitério, à esquerda.
Pelo caminho fui passado por jazigos artisticamente trabalhados, verdadeiras obras de arte, datados desde o século XIX, e que, milagrosamente, se conservam em bom estado. Ao fundo, à esquerda, lá estava o que eu procurava. À entrada, num pequeno mausoléu, estavam as ossadas de militares mortos em terras de Angola durante a I Grande Guerra e cuja conservação é miserável, e, mais miserável ainda, porque se trata de Património que compete ao governo português preservar.
O Talhão Militar, ali ao lado, já não existe! E, do que resta, a destruição é quase total! O abandono de todos os responsáveis pela defesa daquele lugar sagrado, não tem explicação. Desapareceu toda a identificação e numeração que permita encontrar o que quer que seja, alteraram o alinhamento das campas, foram ocupadas a maioria das campas dos militares portugueses para enterramentos recentes, algumas campas têm os nomes originais apagados e foram gravados no mármore os nomes dos novos inquilinos. A vergonha que senti foi tanta, que chorei e ainda hoje me incomodam as imagens que gravei na memória.
Ainda hoje não sou capaz de falar com clareza de espírito sobre aquele atentado, tal a revolta que sinto.
Má nação aquela que abandona e esquece os ossos dos filhos que derramaram o sangue e deram a vida em sua defesa.
Ficam as fotografias para comprovar







segunda-feira, 2 de maio de 2011

O Furriel Silva

O tempo exerce sobre a nossa memória um efeito curioso. Apaga umas coisas e coloca um véu diáfano sobre outras. Mas há aquelas que passam incólumes pela voragem dos anos permanecendo vivas e actuais, estejamos a falar de simples recordações ou de pessoas. É o caso dos furriéis da 3441. Confinados a um pequeno quadrado perdido no meio da imensa savana, vivíamos lado a lado, vinte e quatro horas por dia. Tenho a certeza que ainda hoje, passados tantos anos, sou capaz de reconhecer à distância a voz, o andar e parte significativa dos tiques, dos gestos e das poses de todos eles, mesmo dos que nunca mais vi. E já lá vão quase quarenta anos. Não é possível esquecer o corpo franzino do Gameiro, do seu típico andar com os pés às “dez para as duas” da sua voz gutural e riso sarcástico; da voz rouca do P. Costa, do seu andar bamboleante e da forma como simulava ataques de asma de fazer cortar a respiração; do dente de ouro do Peixoto a emergir do riso estampado na sua cara de menino; da voz cava e profunda de locutor de rádio do Duarte; dos tiques delicados do Viola e das suas poses de menino da mamã; dos mistérios do Fielas; do corpo volumoso e balofo do Ramires; das tiradas intelectuais e andar indolente do Mota na sua pose descuidada quase a infringir as regras do atavio militar; do discurso pausado do Morais e do seu gesto mecânico de empurrar com o dedo indicador os óculos que teimavam em descair sobre o nariz e um sem fim de particularidades que apenas a vivência diária e de proximidade permitiram manter vivas, gravadas de forma indelével na nossa memória pela intensa incandescência da juventude Recordo-me particularmente do Silva. Era meu companheiro de grupo de combate o que significa uma maior convivência que permitiu ir descobrindo a sua personalidade, os seus gostos, a alegria de viver, o seu riso gutural, o linguajar típico do norte, o afinco com que se dedicava ao que quer que fosse, a começar no simples jogo de cartas e a acabar na mais espinhosa das missões. O Silva era uma figura castiça. Fisicamente, era um homem pequeno, atarracado, de corpo compacto, maciço e ginasticado sobre umas pernas curtas, o que talvez explique a forma apressada como andava, mesmo que não tivesse pressa, numa passada decidida de homem de acção. Ainda hoje estou para saber se tal postura era o resultado do treino militar ou se já nasceu assim. Fez toda a instrução nos comandos como soldado raso e chegou a estar mobilizado para a Guiné, ou quase, e isso terá marcado a sua personalidade. Uma cicatriz grossa riscada em diagonal sobre o peito atestava a sua passagem pela tropa especial, resultado de um salto de peixe mal calculado sobre um obstáculo de arame farpado. Quanto ao mais, comportava-se sempre como um homem destemido. Não sei precisar porque passou de soldado a sargento. Contudo não terá sido por aproveitamento excelente na recruta tirada em Lamego. Inclino-me mais para qualquer desentendimento de secretaria relativamente às suas habilitações literárias. A verdade é que fez o curso de sargentos milicianos o que o trouxe até à 3441, carregando nos ombros este seu irregular passado militar levando a que fosse apelidado de “furriel básico”. E básico, na tropa, significava um ponto abaixo do grau inferior da hierarquia. Básico era um soldado que nem escrever sabia. Mas que fique claro que o Silva não era burro, nem tão pouco iletrado. Apenas a sua escolaridade era inferior à dos demais furriéis e isso foi quanto bastou para ganhar o epíteto. Era voluntário para tudo o que implicasse acção, tinha a resistência dos tropas especiais, era exímio no manejo da arma e não parecia atemorizar-se com a eventualidade da escaramuça ao contrário de uns tantos que rezavam a todos os santinhos na véspera de saírem para uma qualquer operação, mesmo que se destinasse a um simples patrulhamento de risco mínimo em zonas conhecidas. Era, enfim, o operacional da companhia, o verdadeiro guerreiro, roubando a função ao Peixoto, esse sim o operações especiais encartado, formado nos rigores militares de Lamego. Por mim, ter o Silva como companheiro de grupo de combate só trazia vantagens. Para além do amigo que sempre foi, era como se eu tivesse sempre as costas quentes, protegidas por alguém que interiorizávamos como sendo capaz de nos livrar de uma enrascada. Imaginava-o sempre a ser capaz de reagir a uma emboscada com um qualquer contra-ataque eficaz, daqueles que se viam em filmes de acção. O seu jeito para o manuseio das armas era um facto. Aprendeu a conhecer a sua G3, descobriu o desvio no alinhamento entre a alça e a mira, identificou os pequenos defeitos que interferiam com a precisão do tiro e usava-a com tal eficiência, que quase nos convencia ser diferente das demais. Na verdade, aquela G3 apenas era certeira na mão do Silva. Acertava onde queria com uma eficácia reconfortante. Até no alvo mais pequeno. Por exemplo, caçar rolas com G3 era uma das suas especialidades. Apontava à cabeça pulverizando-a enquanto a ave, intacta, caía aos seus pés. Bastava que estivesse empoleirada numa árvore que não falhava um tiro e por ali havia muitas. Um dia apostou comigo em como acertava numa moeda, das mais pequenas. Não apostei porque já o conhecia. Ainda assim, pegou numa moeda de vinte e cinco tostões, encaixou-a no ramo de um arbusto, recuou uns vinte metros, apontou e disparou. Correu para o local e todo vaidoso exibiu a pequena argola em que a moeda se transformou. O tiro acertara em cheio no centro da moeda. Riu-se todo ufano, como se ele próprio não acreditasse na façanha, exclamando: - Vês? É limpinho! Na mata, durante as operações, era um dos poucos que conseguiam ombrear com a resistência do alferes Fausto. Mantinha uma marcha cadenciada como se tivesse pressa em chegar, fazendo frente à areia seca que cedia debaixo dos pés, resistindo ao cansaço que nos levava à exaustão. Das duas vezes que penetrámos lá bem no interior da savana, com a finalidade de destruir uma base inimiga montada num local a que chamámos de Esquadrão, fez sempre parte do grupo de assalto. Ainda me lembro que, após um dia de caminhada infernal e de uma noite mal dormida, à frente de um punhado de homens por si escolhidos, desatou a correr encosta acima como se levasse a reboque os homens que o seguiam, entrando de rompante por entre as trincheiras do inimigo, pronto para o que desse e viesse. Por sorte, o acampamento estava vazio. Os guerrilheiros, desalojados na primeira incursão que ali fizéramos uns quantos meses antes, nunca mais haviam voltado a ocupar o local, talvez por que soubessem que mais cedo ou mais tarde voltaríamos, evitando assim o embate indesejado tanto de um lado como do outro. Da primeira vez, o Silva, com a G3 aperrada e granada descavilhada numa das mãos, correra pelo mesmo caminho aos gritos de: - Ao ataque! Também daquela vez o acampamento estava deserto, abandonado momentos antes após bombardeamento prévio dos T6 da Força Aérea. Mas também era uma espécie de doido, um doido pacífico, não obstante a sua pose de guerreiro. A verdade é que também gostava de brincar, embora por vezes levasse longe demais as brincadeiras. Um dos episódios de que alguns se recordam, envolveu o delicadinho do Viola. Um dos furriéis fazia anos o que justificava uma patuscada. O problema era a falta de ingredientes necessários ao petisco, já que o pouco que se dispunha só existia no depósito de géneros e o furriel vagomestre não estava pelos ajustes. É que nem um simples chouriço dali saía. Foi então que o Silva se prontificou em caçar alguns coelhos que se sabia haver na mata circundante, ali bem perto, mesmo na periferia da pista. Agarrou na G3, obteve o consentimento para usar uma das viaturas e com mais dois ou três saiu apressado em busca do petisco. Não demorou muito tempo a regressar com coelhos suficientes. Mas atravessou-se no caminho um cãozito infeliz meio enfezado que por ali andava e que, dada a sua pequenez e magreza, apelidáramos de “o pilinhas”. À entrada da porta de armas e perante o rebuliço, o animal desorientou-se, quase tropeçou em si mesmo, tentou fugir mas faltou-lhe a arte. Foi apanhado pela viatura e morreu ali mesmo, atropelado. Por compaixão, alguém apanhou o bicho, colocou-o sobre a viatura que retomou a viagem em direcção à cozinha. O petisco foi preparado com esmero, juntaram-se dois ou três piri-piri’s colhidos do pequeno arbusto que crescia em frente à enfermaria, umas folhitas de louro, uma ou duas cabeças de alho, uma mão cheia de sal, mais uma pitada disto, outra daquilo, na horta colheram-se uns tomates para dar gosto e eis tudo pronto a cheirar e a fazer crescer água na boca. O padeiro desencantou uns quantos pães e quase em romaria, levou-se tudo para a messe em duas travessas bem compostas. Ensopava-se o pão na molhanga, lambiam-se os dedos, elogiava-se o cozinheiro e aos poucos as travessas foram ficando vazias ao mesmo tempo que os ossos se espalhavam pela mesa. A cerveja corria, garrafa após garrafa, menos para o Silva que nunca se esquecendo da bebedeira que o levou ao coma em Santa Margarida, apenas bebia seven up ou coca-cola. No meio da algazarra, ninguém deu pela falta do Silva. Já de papo cheio, esgueirou-se sorrateiro e saiu sem que a maioria desse por isso. Foi até à cozinha, agarrou no corpo sem vida do pilinhas, esfolou-o, atirou a carcaça para junto dos restos dos coelhos, pegou na pele e com um sorriso de malandro nos lábios dirigiu-se para a messe onde ainda se saboreavam os últimos nacos de carne. Assomou à porta e exibindo a pele do bicho para que se visse bem o que era, gritou: - Olhem, olhem! E ria-se desalmadamente esticando os braços para que não ficassem dúvidas, quanto à origem do troféu. O Viola, que ainda dava as últimas dentadas numa suculenta coxa, identificou de imediato a pele do cãozito. Parou de mastigar, arregalou os olhos, fez uma expressão de asco, mudou de cor, largou abruptamente o osso como se este o queimasse, tentou levar a mão à boca mas não foi capaz de conter o vómito deitando fora tudo o que a gulodice lhe fizera engolir. O Viola convencera-se de que entre as coxas de coelho estavam nacos do desgraçado do pilinhas. Sói dizer-se que a sorte protege os audazes. Mas no caso do Silva, houve uma vez em que isso não aconteceu. Ou talvez sim. Numa zona de fauna abundante e variada, a caça era ocupação frequente. Não pelo passatempo mas sim por necessidade. A carne de vaca vinha de quando em vez, trazida do Luso pelo Nord Atlas e era cara. Tão cara que se o vagomestre se atrevesse a incluir bifes na ementa, teria um prejuízo de que só recuperaria com sucessivas refeições de macarrão acompanhado de coisa nenhuma. A caça era de facto a oportunidade para uma melhoria de rancho sem necessidade de se olhar a rateios. Assim, independentemente de participar em incursões de caça, o Silva aproveitava todas as oportunidades para, como se diz na gíria, fazer o gosto ao dedo. E era por isso que, com alguma frequência, fazia questão de viajar sentado sobre os sacos de areia que, encaixados sobre os guarda-lamas dianteiros, faziam de rebenta minas. Ali sentado, podia atirar sobre qualquer animal que surgisse pela frente chegando a mergulhar sobre a presa como fez com um coelho que, encadeado pela luz dos faróis, se deixou apanhar à mão. Até que um dia, de regresso da Neriquinha Velha, já sobre a chana que se seguia às Pontes do Cúbia, divisou duas ou três cabras do mato por ali perdidas, o que não era comum dada a proximidade de movimento. Agarrou na arma e segurando-se com a mão esquerda, dependurou-se no estribo da porta do lado oposto ao do condutor que acelerou na tentativa de acompanhar a correria dos bichos. Não se aperceberam que uma pequena árvore, quase um arbusto, estendia um dos seus ramos sobre a picada. A berliet roçou a árvore que varreu todo o lado direito arrancando o Silva da sua boleia. Caiu ao chão desamparado, rolou no pequeno declive e por um triz não ficou debaixo do rodado traseiro que ainda lhe mordeu a fralda do camuflado. Sentou-se na berma e com uma careta de dor agarrou o ombro queixando-se da pancada que a areia não amortecera, - Caí mal! Balbuciou apercebendo-se de que quase tinha sido passado a ferro pela viatura. Ajudaram-no a subir de novo para a berliet que seguiu o mais depressa possível em direcção à Neriquinha esquecendo as duas cabras que entretanto haviam desaparecido no meio do capim. O diagnóstico não deixou dúvidas: o Silva partira o braço. Foi transferido para o hospital do Luso de onde regressou uma semana depois devidamente engessado e proibido de fazer movimentos bruscos. Por uns tempos, acalmou. Entediava-se por aqui e por ali, entretendo-se com jogos de sueca ou de king, batendo a cartas com violência como se quisesse descarregar a energia acumulada. Mas o sossego foi sol de pouca dura. Passado algum tempo, mesmo com o braço engessado, fazia questão de integrar incursões pelas redondezas ou participando em visitas às chanas próximas embora não enquadrado em operações. Ainda me lembro que, em consequência do uso, o gesso foi escurecendo até ganhar a cor da terra da savana circundante.