sábado, 7 de janeiro de 2017

O REGRESSO

Durante todo o tempo que durou a nossa estada por terras angolanas, um dos desejos que mais frequentemente alimentava os sonhos da rapaziada era, sem qualquer margem para dúvidas, o momento em que, cumprida a missão, se regressaria a casa. Enquanto durou a nossa via-sacra pelas terras inóspitas e areentas da Neriquinha, isso era algo que parecia muito distante, quase inacessível. Mas aos poucos, naquela exasperante lentidão que as agruras de uma missão espinhosa teimam em empatar e porque o tempo não pára, os dias foram-se sucedendo às noites, os meses preenchendo-se e o tempo passando até àquele dia memorável em que nos tiraram dali, despejando-nos no aprazível sossego das Mabubas.
É verdade que nos sentimos verdadeiramente compensados dos tratos de polé sofridos no meio da savana das Terras-do-fim-do-mundo. Contudo, não obstante este segundo episódio da história da 3441 se assemelhasse, por vezes, a umas quase férias num local aprazível, acolhedor e pacífico, aquele sonho de ver chegado o dia em que voltaríamos às nossas origens nunca foi deixado de parte.
Alguns se lembrarão de que, por alturas do mês de Novembro de 1973, correu célere a notícia de que a nossa saída das Mabubas estaria prevista para o dia três de Dezembro. O embarque, diziam, teria sido aprazado para as antevésperas do Natal, o que animou muita gente perante a expectativa de passar as Festas em casa. Quando o dia três passou por ali sem que tivessem chegado os que nos iriam render, a desilusão patente no semblante de alguns foi a prova de que, afinal, o fim da comissão nunca deixara de ser o desejo maior.
Ainda assim, quando passadas mais de duas semanas, nos vimos finalmente em Luanda, simplesmente aguardando o dia do embarque e livres dos quartos de sentinela, das operações aos laranjais da Fazenda Alice e demais exigências militares, a coisa esmoreceu um pouco. Não é que tenha a certeza e não pretendo armar-me em adivinhador dos pensamentos dos outros, mas apostaria que muitos terão deixado para segundo plano, ainda que só às vezes, aquilo que, até então, era considerado o sonho diário de cada um. O Natal seria dali a dias e por isso, passá-lo em casa estava fora de questão, mas certamente que se não fosse dali a uma semana seria possivelmente na seguinte e essa certeza dispensava a necessidade de pensar no assunto.
Assim sendo, aproveitou-se tanto quanto possível o afrouxar da disciplina, usufruindo de tudo o que a cidade tinha para oferecer. Alguns mudaram-se para a Pensão dos Coqueiros, para facilitar as pernoitas tardias e comer bem por menos dinheiro, o Gabriel alugou um carro, calcorrearam-se esplanadas, praias, bares e cabarés e compensaram-se as privações passadas, até que, com cada vez maior acerto, foram chegando informações; o dia cinco de Janeiro foi apontado como certo, depois substituído pelo dia seis, voltando de novo ao dia cinco.
Na última noite passada em Luanda, aquilo que começou por ser um simples jantar num qualquer restaurante, virou noite de farra. Um grupo de furriéis entendeu que a última noite seria de desbunda. Calcorrearam-se bares, esvaziaram-se garrafas, misturou-se cerveja com aguardente, esgotaram-se as últimas notas de angolares e creio que até as moedas se foram.
Quando a madrugada chegou, largaram no aeroporto o carro alugado e tomaram um táxi até ao Grafanil. As regras militares exigiam farda a rigor, formaturas e transporte até ao avião que nos havia de trazer para casa. A memória não está muito nítida mas creio que, após a exasperante espera da praxe, embarcámos num Boeing ao serviço da Força Aérea e fez-se a viagem contornando toda a costa de África. Na altura, não era possível aos aviões nacionais sobrevoarem o território dos países africanos hostis ao regime.
Retenho de memória o desembarque em Lisboa, no aeroporto militar de Figo Maduro, no dia seis de Janeiro de 1974, um dia cinzento, enevoado, frio e húmido que contrastava com a luminosidade faiscante do sol quente de Luanda. Uma réstia de saudade de África ainda se insinuou por entre a euforia de voltar ao puto. Mas foi sol de pouca dura; a vida interrompida dois anos antes recomeçou no momento em que, nas instalações do quartel do RAL 1, despimos definitivamente a farda e saímos dali quase sem nos despedirmos uns dos outros.
Completaram-se hoje quarenta e três anos.