domingo, 29 de novembro de 2009

Medicina natural

Os conhecimentos empíricos medicinais dos camaches e dos guenguelas, no Kuando-Kubango, longe do contacto com a chamada civilização ocidental, eram espantosos. Viver durante 18 meses, no meio de uma população a quem a natureza e a sabedoria popular ensinara a tratar das suas mazelas com os produtos que a mãe natureza lhe punha no caminho, foi uma experiência inesquecível.
Um dia, estupidamente, ao pretender retirar a tampa, para compensar a água a que tinha sido expelida do radiador de uma BERLIET - com o motor sobreaquecido pela carga de dezenas de populares e de um hipopótamo morto nas lavras da N'riquinha Velha - esta saltou e levei um banho de água a ferver.
De imediato, um negro, elemento do Grupo de GE´s adstritos á Companhia e que acompanhava o seu Comandante, Fulai Monjuto, sem nada lhe ter pedido e sem procurar obter a minha autorização, sequer, veio junto de mim com o copo de alumínio que acompanhava o cantil, cheio de água e sal, muito sal, e aspergiu-a, várias vezes, na zona queimada. As dores não atenuaram, mas, segundo o Dr. Lacerda, o que ele fez foi desinfectar as queimadelas com uma espécie de soro de nitrato de sódio, o que evitou uma possível infecção e muitas complicações na demorada cura.
Um dia, estando com uma brutal dor de dentes, o Vicente (um miúdo que ajudava na oficina de mecânica) disse-me que uma velha no kimbo tinha cura para isso. Lá me foi indicar quem era e, depois de amassar umas pequenas sementes - parecidas com as de massango, um cereal tipo milho paínço- com os dentes, fez uma bola e, com um pauzito apanhado do chão, empurrou aquela massa escura pelo buraco do dente. Dois minutos depois as dores passaram e o dente acabou por desfazer-se ao longo dos anos sem que tivesse mais qualquer dor.
De outra vez, um ajudante, que o padeiro arranjara (de forma a tornar o seu trabalho menos duro e pago com alguns pães, diariamente) partiu um braço numa sortida à mata para recolher a lenha para o forno.
O Dr. Lacerda, lá lhe colocou umas talas e um pouco de gesso, o que o encheu de vaidade pela atenção que angariou no kimbo. No entanto, pouco tempo depois, encontrei-o junto à oficina a cortar lenha com um machado, como se nada lhe tivesse acontecido: ao fim de alguns dias com o gesso no braço, chegara à conclusão que era tempo a mais e, o feiticeiro/sábio/boticário/médico da aldeia, colocara-lhe no braço umas folhas que derramavam uma substância pastosa depois de aquecidas e que, rapidamente, lhe "colaram" os ossos.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Operação Dango...

Dango, Abril de 72 - N'riquinha

A operação tinha um outro nome de código. Mas vamos chamar-lhe por agora “Operação Dango” para melhor a localizar.

Alguns trechos do livro “Capitães do Vento” relativos a essa operação.

Ficamos à espera que o Gabriel Costa nos conte a versão do outro lado da recolha do pessoal envolvido na mesma.


…/… Às duas da madrugada partimos distribuídos por sete viaturas Berliet, mais de metade fornecidas por Mavinga. As da Companhia, uma andava sem problemas, a outra tossia cada vez que o pneu se enterrava mais na areia da picada. A terceira estava de baixa. O percurso até ao objectivo era longo e desconhecido. Demasiado longo como viríamos a verificar depois. A parte que seria feita a pé presumia-se que duraria um dia inteiro de marcha rápida até às proximidades do objectivo. As viaturas tinham que ser deixadas suficientemente longe, a fim de não denunciarem a nossa presença. Partimos cedo na intenção de caminhar logo ao alvorecer, fugindo durante umas boas duas a três horas à inclemência de um sol abrasador que se esperava.

…/… Desembarcamos das viaturas cerca das seis horas. Orientei a minha carta com o auxílio da bússola e tracei o rumo a partir de um azimute previamente calculado.

…/… Depois da minha experiência no norte de Angola, eu ali andava quase de olhos vendados. Em todo o tempo de N’riquinha jamais falhámos um rumo. Na prática, durante os percursos consultava a bússola a espaços apenas para confirmar o que intuitivamente me parecia correcto. Os GE’s confirmam, por conhecimento de séculos de vivência naquela região, que aquela é a direcção certa. Se não o confirmassem eu não teria dúvidas em rever os meus cálculos.

…/… Às 14 horas começa a faltar água, após uma breve pausa para almoçar. O calor era abrasador. Não soprava qualquer brisa. A fraca arborização da savana não permitia trajectos mais frescos. A urgência em aproximarmo-nos do objectivo não sugeria grandes contornos. A velocidade a que nos deslocávamos deixava-nos exaustos e alguns começavam a ficar para trás, obrigando a paragens para recuperação dos menos preparados.

…/… Ás dez horas da noite caminhávamos devagar, apalpando o terreno plano da chana. A noite estava escura. A lua ainda não tinha aparecido. Distinguíamos os nossos vultos mas não os contornos definidos dos nossos corpos. Aquela espécie de monstro alongava-se por mais de trezentos metros de comprido.

De repente, um grito abafado de uma das mulheres que seguia na frente. Largou a trouxa que trazia à cabeça e fugiu em direcção à mata que bordejava a chana do rio. Os três GE’s que iam à minha frente saltaram cada um para seu lado. Ao mesmo tempo senti algo volumoso bater-me nas pernas e, sem compreender o que se passava, saí instintivamente do trilho em que vínhamos.

- Pisámos uma jibóia, meu captão. Schii; era grande mesmo! - Esclareceu um dos GE’s.

…/… Por fim, por volta das nove horas, ordem para parar. Estávamos no local. Tratava-se de uma confluência de um afluente de rio que entroncava naquele ao longo do qual vínhamos desde o dia anterior. As chanas eram muito largas. Os rios corriam estreitos no meio do descampado de capim seco que as formavam.

Segundo as mulheres eram dois acampamentos. Um na margem direita e outro na esquerda daquele afluente. Distavam um do outro cerca de um quilómetro. Conforme vinha planeado, o grupo de Mavinga atacaria o da margem esquerda e nós o da direita. Fora estipulado o local de encontro após o ataque. Os de Mavinga atravessariam o rio mais acima e viriam ter connosco.

…/… O Fulai ia falando com as mulheres que manteve sempre junto de si. Perguntei o que é que elas diziam.

- Elas dizer que guerrilhêro e popração já fugiu tudo! Muitos tropa! Muitos barulho!

…/… E assim foi. Para lá de uma ou outra escaramuça com uma rajada a sobrevoar-nos, dilagramas e umas trocas de tiros de morteiro, a grande operação acabou num fiasco, mesmo com aviões a mergulhar por cima de nós e a lançar foguetes sobre alvos vazios.

Eram ainda as tácticas da 2ª Guerra Mundial em uso no ano de 1972.

Aparentemente, pouco tínhamos aprendido desde 1961. Quer os generais queiram, quer não...

A recolha.

…/… As viaturas tinham já partido de madrugada de N´riquinha para nos recolher. Mas a odisseia daquela operação não estava ainda terminada. Pelas nossas contas o encontro devia dar-se por volta do meio-dia. Às treze nem viaturas nem qualquer ruído longínquo que pudesse significar a sua presença. A impaciência começou a instalar-se. Os GE’s de Mavinga ameaçavam ir a pé até a casa. Uns 120 quilómetros que se dispunham a fazer apenas porque estavam a ficar aborrecidos com aquela estória das viaturas não aparecerem.

…/… Funcionávamos ali como uma espécie de náufragos perdidos em mar revolto à espera de uma ponta de sorte que nos levasse aos salva-vidas que nos procuravam. A DO voltou a levantar de N’riquinha a fim de fazer uma avaliação do desencontro. Do ar era fácil localizar a nossa posição e a das viaturas. Só que a DO não tinha contacto rádio com estas: só connosco.

O Major de operações a bordo do avião viveu uma situação de impotência que o fez desesperar. Como fazer compreender aos das viaturas que estavam a andar mal em relação à nossa localização sem contacto rádio? O avião fazia cabriolas, depois passava muito baixo sobre as viaturas agitando as asas e apontando com o sentido do próprio voo a direcção correcta que as levaria até nós. Mas no chão quem podia compreender isto? Para eles o avião estava a saudá-los e a congratular-se com qualquer coisa que não compreendiam.

Num rasgo de improviso e imaginação lusitana, o nosso Major regressou à N’riquinha e, munindo-se de embalagens de granadas de morteiro 60 meio cheias de areia, voltou lá. Do ar enviou então as embalagens com um pequeno bilhete que dizia: “Sigam a direcção do avião!” Como ainda estavam bem longe de nós, na marcha que serpenteava por entre as árvores alteravam com frequência o rumo certo. A DO voltava a insistir nos voos rasantes redefinindo o rumo certo. O Solnado não teria imaginado melhor uma guerra como aquela. Era um pouco assim a guerra em África, em Janeiro de 1972.

Por volta das quinze horas o encontro deu-se por fim. O pessoal das viaturas vinha com oito horas de marcha e esperava-os outras tantas no regresso, que poderia ser menos moroso uma vez que bastava agora seguir os sulcos dos rodados deixados na vinda, sem preocupações de orientação. Mas a carga era de mais de vinte militares por viatura, mais o armamento e bagagem.

…/… Acomodei-me o melhor que pude procurando o espaço necessário para estender as pernas. Perto de mim encontrava-se um Furriel que tinha vindo na coluna. Procurei indagar como tinha corrido a viagem e as dificuldades que tinham encontrado. Era sempre bom ficar com uma ideia dos problemas para que, se possível, mais tarde não voltassem a repetir-se. Essa era, pelo menos, a minha perspectiva.

Não tinha sido muito difícil fazer a maior parte do percurso porque era tudo plano. Além disso tinha sido recrutado um nativo no aldeamento que dizia ter vivido naquela região anos atrás. Colocado no rebenta minas (parte da viatura sobre o rodado dianteiro) tinha vindo todo o caminho indicando com o braço o rumo a seguir até às nascentes do rio. Cerca de seis horas nesta função, porque a primeira parte do percurso era uma picada já conhecida. Concluíram que, na realidade, não ocorreram desvios no rumo que o nativo veio indicando. A memória daquela vasta região, quase sem pontos de referência, estava-lhe intacta na memória. Apenas ocorrera um curto episódio. O nativo solicitou ao chefe da coluna, se seria possível passar numa determinada árvore e parar por momentos para ele ir buscar uns haveres, que enterrara anos atrás. O Furriel nem queria acreditar. No meio de milhares de árvores, aparentemente todas semelhantes e dispersas numa paisagem monótona como era aquela que se estendia por dezenas de quilómetros, como é que seria possível localizar e identificar uma delas? Pois não se enganou uma só vez. À primeira identificou a árvore e só não recuperou todos os pertences (uns recipientes para água, segundo dizia) porque entretanto a maior parte deles já tinham sido roubados, o que não deixou de ser muito estranho numa zona árida e isolada como aquela. Uma questão a ser dirimida mais tarde com a guerrilha, supõe-se.

…/… Trazíamos apenas cerca de meia hora de viagem. O dia ia ficando cada vez mais escuro à medida que se aproximava o anoitecer. Perto de mim sentava-se o Furriel Leitão do 4º Grupo de Combate. Repentinamente, este colocou-se de joelhos e apontou para fora.

- Está ali qualquer coisa a mexer, diz.

Mandei parar a viatura. Sobressaltei-me. Uma emboscada? De facto, era só o que faltava para rematar aquela sequência de maus acontecimentos. Mandei apear alguns soldados como medida de segurança.

- Não é uma emboscada! Está ali uma coisa a mexer, mas não está escondida.

Mandei o Leitão ao local que distava uns quarenta metros. Voltou trazendo uma criança que aparentava uns seis, sete, anos de idade. Estava nua e tremia tanto que a minha primeira avaliação foi de que se tratava dum epiléptico em plena crise. A criança foi colocada entre as pernas de uma das mulheres capturadas, que a agasalhou com os panos com que se cobria. Continuava com movimentos desconexos e tremores intensos. A mulher aconchegava-o mais. Os seus olhos mortiços muito brancos fitavam-me como berlindes reluzentes desconformes num rosto magro de fome e pouca infância. Fitar-me-ia o caminho inteiro. Com tantas ordens que eu ia debitando apercebeu-se de imediato quem era ali o inimigo mor. Embora óbvio, mandei ao Fulai que perguntasse às mulheres se o conheciam. A criança tinha fugido aquando do assalto e vagueara sozinha perdida durante dois dias e uma noite, até que caíra exausta de fome e frio. A noite tinha sido toda ela de tempestade. Não teria por certo resistido a mais aquela noite, caso o Furriel a não tivesse vislumbrado naquele espaço de mata aberto onde caíra. Éramos a última viatura e ele foi o único que a viu.

Deste episódio houve uma dúvida que sempre me ficou. Quando se agitou era para que o víssemos ou procurava esconder-se? Só o terrível inimigo se fazia transportar em viaturas ruidosas. Só este varria os céus com “modernos” engenhos prateados sobreviventes da 2ª Guerra, roncando e vomitando foguetes de fogo que queimavam cubatas vazias.

Escondia-se, por certo.

Passaram seis viaturas com 120 pares de olhos. Muitos deles especialistas naquele tipo de vegetação e exímios em descortinar o inimigo acoitado. Ninguém o viu. Porquê só o Leitão? Provavelmente uma mão de Deus. Deus a quem na hora questionei com ironia de ateu insolente: mas porquê as crianças, senhor?


P. Cabrita

Dango, Agosto de 73 - Mabubas

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

O Hipopótamo.

Um dia, pela manhã, o Fulai Monjuto, chefe do Grupo de GE's, as tropas de recrutamento local, aparecu junto à messe e pede para falar com o Capitão Cabrita. O respeito e admiração entre eles era mútuo e depois dos cumprimentos habituais, fez um pedido: vinha pedir que enviasse alguém com ele, ao Rio Kuando, junto à N'Riquinha Velha, para apanhar um hipopótamo que andava a fazer estragos nas lavras que a população ali cultivava e, depois, trazê-lo para o Kimbo para alimentar de carne a aldeia.
Estando eu por ali perto e tendo tomado conhecimento da conversa, quando dei por mim já estava prontíssimo com uma Berliet pronta a arrancar. Rapidamente fizemos o caminho, levando o Fulai, o Comandos como motorista, um ou dois soldados mais e alguns elementos familiares do Fulai, creio. O Furriel vago-mestre Morais, foi requisitado como fotógrafo e aí vamos nós.
Quando chegámos, o espectáculo era quase de circo. Dezenas de pessoas, em alegre algazarra, cantavam, dançavam e discutiam ao mesmo tempo, sendo, para mim, apenas certo que, tudo aquilo, se devia à expectativa de um bom fornecimento de carne e à eliminação do destruidor dos produtos, milho e massango, que ali cultivavam.
Ao longe, numa ilhota, um hipopótamo, incapaz de entrar na água por causa de um ferimento na barriga do tamanho de uma janela e feito, possivelmente, na luta com um parceiro mais ciumento e mais poderoso, andava de um lado para o outro, inquieto, dolorido e desfazendo tudo à sua passagem.
Tinhamos que lhe acabar com o sofrimento e arrastá-lo para a margem. Nas calmas, eu e o Fulai, o único que autorizei a atirar, lá abatemos o bicho que levou mais de 30 ou 40 tiros na cabeça, até cair. Arrastá-lo para a margem foi mais complicado. O cabo do guincho da Berliet dava á justa e foi necessária a ajuda de todos os presentes para facilitar a tarefa, pois o animal pesava uma barbaridade. Colocá-lo na caixa de carga, foi mais fácil: esquartejaram-no com javits (machado artesanal, afiadíssimo) e foi carregado às peças.
No regresso, com o peso do animal e de quanta gente por ali havia, o motor da Berliet não aguentou o excesso de carga e vai de aquecer no meio da picada de areia, debaixo de um sol abrasador. Parámos. Para fugir à barulheira dos cânticos de alegria de meia população da província, tantos eram, optara por vir sentado nos sacos de areia no guarda lamas. Preferia ouvir o barulho do motor do que aquela gritaria de contentamento. Assim, estando mais perto do radiador, cometi uma asneirola de principiante e
desapertei a tampa do radiador com a sola da bota, à falta de um bocado de desperdício ou de mais inteligência. Pôrra!
A porcaria da tampa desliza para o lado e apanhei um banho de água quente e vapor que me lambeu a pele das pernas e da barriga, obrigando-me a andar enfaixado mais de uma semana, até nascer a pele nova. Ainda hoje cá andam as marcas.
O hipo foi comido no Kimbo. A pele do mesmo foi cortada em tiras finas, secas ao sol e ficaram duras como madeira. Usaram-nas para fazer chibatas que serviam para imitar os pingalins. Os dentes, salvo erro, foram parar à mala do Furriel Fielas.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O célebre cilindro...


Afinal tinha cá o célebre cilindro. Espero que o nosso amigo Rosinha passe por aqui para identificar o artefacto.
Revisitei os meus slides.
Esta é uma primeira experiência para ver como fica de nitidez. Se resultar... tenho umas dezenas para ir salpicando o blogue de imagens com história. A nossa história. Espero que não se torne cansativo.

P. Cabrita

Berlliet's atoladas - Relembrar

Berlliet atolada a oeste do Rivungo. Uma especialidade de um dos nossos alferes, que não nomeio para não melindrar mais a auto-estima...
Levámos cerca de 3 horas para tirar a viatura que estava assente nos semi-eixos, mesmo utilizando mais duas berlliet's e respectivos guinchos.
Só uma ideia meio louca e desesperada resolveu o problema. Trata-se de uma ideia bem guardada porque está por patentear... É apenas uma questão de oportunidade...

P. Cabrita

2ª Liga - Jornada única

A qualidade das fotos é péssima, mas não resisti a publicá-las.
Não sei se alguém se recorda disto. Mas se avaliarem alguns dos atletas talvez se recordem.
Primeiro reparar que se tratava de um jogo de alto nível. A presença do Soba assim o indica. Foi o convidado especial e teve a honra de dar o pontapé de saída.
O jogo foi arbitrado por juiz devidamente equipado (o nosso furriel Fielas devidamente fardado no seu garboso camuflado...) e não me lembro do resultado; acho que nem golos terão ocorrido, embora o campo tenha ficado bastante maltratado.
Para os que não se recordam, este jogo foi realizado numa comemoração qualquer. Talvez um ano de comissão, ou algo parecido.
A ideia foi juntar duas equipas de jogadores que nunca tivesse dado um pontapé de jeito numa bola de futebol. E então, estes foram os eleitos. Ainda me lembro de alguns lances que me ficaram na retina para todo o sempre...
Um jogo fantástico... e não é preciso acrescentar mais nada...

Notas:
1- A salientar o penteado primoroso (já com gel na altura) do nosso alferes Aranha; jogou a médio ala pela direita... mas percorreu o campo inteiro. Perguntado no final do encontro, referiu que teve necessidade de percorrer todo o campo porque em determinada altura suspeitou que ninguém lhe passava a bola ... Vai daí, decidiu ir em busca dela... sem resultados...

2- De registar também o chapéu do Araújo. Compreende-se. Eram 5 horas da tarde, fazia algum calor e o nosso Araújo (meu guarda-costas nas operações) tinha que ter alguns cuidados tendo em conta a alvura da sua pele nórdica...

3- O Braguinha que não encontrou outro lugar para se posicionar na foto senão ao lado de outro baixinho, o Araújo... Se não é o dobro da altura, anda lá perto. Bem; que lhe fazia uma boa sombra, fazia...!

PS
Já agora o porquê do Araújo me servir de guarda-costas nas operações. É que, com aquele tamanho, havia sempre a possibilidade de um qualquer tiro encalhar primeiro nele...

P. Cabrita

GE's


Alguns dos nossos GE's. Julgo que quase todos comandantes de secção.
Agora; três deles usam óculos. Alguém me explica onde era o oftalmologista no kimbo que nunca dei por ele...?
Ou será que se tratou de mais uma negociata do Lupale com uma importação fora do controlo das entidades administrativas...?
Alguém que explique isto. Julgo que quando chegámos à N'riquinha eles já usavam óculos. Logo, foram adquiridos antes de nós.
Mais um mistério...

Ainda o DANGO

Nesta altura o Dango tinha dias de permanência na Companhia. Ainda faltavam os sapatos, um utensílio a que ele nunca achou muita piada. Talvez razão pela qual os primeiros que calçou não tenham durado mais de 3 semanas... Os seguintes também não duraram muito mais.
Em determinada altura achei que ele os emprestava aos outros miúdos do kimbo que também os queriam experimentar. Ao fim e ao cabo, sapato na N'riquinha era uma novidade e ... um luxo.
Na outra foto, já mais crescidinho, com par de calças com pouco mais de 2 semanas de "trabalho" e camisa na mão para mostrar os efeitos da jornada...
Tenho alguma fé que ainda vamos encontrar o Dango um dia



terça-feira, 17 de novembro de 2009

A Cerimónia

As fotografias que se seguem, são uma pequena parte de uma série que diz respeito a uma cerimónia levada a cabo na N'Riquinha, para afugentar a doença do corpo de uma paciente.
Ao aproximar-me, para fotografar o que eu pensava ser uma festa indígena, já que o batuque, ao invés do normal, começara pela manhã, fui avisado pelo João Cassumbi e pelo Vicente - dois miúdos negros curiosos da mecânica automóvel e condutores para os pequenos serviços dentro da Companhia - que não me era permitido assistir à cerimónia. Portanto, armei-me com uma Vivitar de 200 mm e, com a minha velhinha Cannon F1, lá fui, de longe e circulando de palhota em palhota, fotografando a cena.
Basicamente, o embalo ritmado e hipnótico do batuque e os movimentos simples da dança repetidos milhares de vezes, colocaram a paciente em êxtase e, depois de morta uma galinha, foi aspergida com o sangue da ave e esfregada com sal grosso. As duas curandeiras de serviço, ora se sentavam no meio de um vasto grupo feminino que entoava uma canção de sons baixos e roucos, ora se levantavam e rodeando a doente, repetiam uma lengalenga monocórdica, abanando uns guizos, feitos com uma lata de salsichas cheia de pedrinhas, ao mesmo tempo que lhes percorriam com as mãos, o corpo de cima a baixo. Os mais novos assistiam calados, observadores e com um ar respeitoso.
A cerimónia durou horas e, no final, quase todos os intervenientes estavam possuídos pelo ritmo dos tambores.
Terminou quando, exausta, caiu sem sentidos no chão.











O Dango

O Dango era um miúdo com cerca dois anitos quando, na operação que a nossa Companhia fez ao "Esquadrão", acampamento de guerrilheiros na área onde hoje se identifica a Jamba, foi deixado para trás pelo pai. Na sua fuga, pela chana, á tropa portuguesa, abandonou-o junto à mata.
O Furriel Leitão desceu da Berliet, que eu conduzia em substituição do condutor Gouveia, que adoecera à última hora. O pobre garotito chorava sem parar e, como não se vislumbrasse ninguém nas cercanias, para ali não ficar só, foi, então, entregue a um elemento feminino da população que connosco fazia a viagem de regresso (não me lembro como apareceu junto de nós nem donde viera).
Mamando no peito da sua conterrânea, calou-se e lá seguimos, sendo criado com carinho entre brancos e negros e passando a ser o ai-Jesus da Companhia.
Na hora do regresso à Metrópole, se a memória não me falha, foi entregue em Salazar numa organização religiosa que o acolheu, tendo o Capitão Pedro Cabrita tomado a seu cargo toda a trabalheira necessária para ali ser recebido o Dango. O nosso Dango!

domingo, 15 de novembro de 2009

O Kimbo da Neriquinha

Um aglomerado de cubatas de capim encardido pelo tempo, plantadas logo ali, no lado de lá do arame farpado, aparentando um alinhamento ordeiro, sinal de que alguém havia coordenado a sua implantação no terreno.

Normalmente os Ganguelas não se preocupavam com a geometria, quando construíam os seus abrigos. Era onde calhava ou onde desse mais jeito. Apenas servia para se abrigarem à noite, já que toda a lide doméstica era feita no espaço circundante.

O Capitão entendeu que a situação precária de muitas das cubatas e a anarquia das ruas do Kimbo justificavam uma intervenção urbanística. Incumbiu-me de fazer o levantamento e identificar as que necessitavam de renovação, as que deveriam ser totalmente reconstruídas e alinhadas e ainda equacionar o eventual alargamento da aldeia.

Fiz qualquer coisa, mas a adesão da população não foi muito entusiástica. Para quê tanta trabalheira se o que existia era suficiente?
O calor era intenso e as poucas sombras convidavam ao descanso. Mas, uma coisa ou outra foi renovada. Por exemplo, um celeiro novo foi construído. Contudo, não me pareceu que isso tivesse resultado da iniciativa do Capitão.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Golpe de Estado na Zâmbia.

Sem aviso, o comandante aterrou um dia na N´riquinha dirigindo-se de imediato ao Alferes Fausto, que comandava a Companhia naquela altura. Eu estava de férias.
Sem mais delongas e prescindindo das honrarias militares da praxe – o que não deixava de ser surpreendente no nosso comandante, a par de não avisar que iria chegar – pegou no alferes pelo braço e levou-o de imediato para o meu quarto vazio, o local mais recatado e isolado de hipotéticos ouvidos furtivos que se podia descortinar por ali e para aquelas circunstâncias que se adivinhavam de enorme transcendência.
O Fausto viria a contar-me mais tarde que nem se lembra de ter pensado em nada de concreto que se configurasse com tamanho aparato e secretismo. Tão embasbacado ficou que se limitou a ser autenticamente levado pelo comandante e a encostar-se à parede, depois deste o ter mandado fechar a porta de entrada e a do meu quarto, e ter verificado que não havia mais ninguém por perto.
De dedo em riste apontado ao atónito Fausto disse por fim com ar solene:
- A partir deste momento esta Companhia está envolvida num golpe de estado na Zâmbia!
O pobre Fausto ainda terá franzido um sobrolho... ou mesmo os dois, embora sem conseguir balbuciar palavra. O comandante também nem permitia que falasse. Em três tempos tecia o cenário político que se conhecia, que era o do apoio que o regime vigente na Zâmbia dava à guerrilha que combatia em Angola. A PIDE conseguira, no entanto, penetrar na sociedade política da Zâmbia e, em resumo, disponibilizara-se para apoiar a oposição num golpe de estado que invertesse o sentido político do regime. Ou seja, apoiar a criação de um novo governo que deixasse de apoiar a guerrilha.
Todo o apoio seria dado aos conspiradores e a nós era cometida uma missão específica. Caso as coisas dessem para o torto e os intervenientes no golpe tivessem que fugir, era pela nossa zona que entrariam em território angolano, sendo recebidos e protegidos por nós. O golpe estava iminente e o que era necessário era preparar desde já uma operação que patrulhasse a fronteira (mais de duzentos quilómetros...). Havia até uma senha que os conspiradores teriam que nos exibir, caso os viéssemos a encontrar:
- “ I come to see the moon!”.
Tratava-se duma frase que os identificava como tal e obteria da nossa parte toda a protecção por terra, mar e ar. O mar ali era representado pelo rio.
Tão rápido quanto chegou, o comandante partiu deixando o Fausto sem saber o que fazer naquela enorme confusão e trapalhada. Eu chegaria poucos dias depois, no meio de um enorme alvoroço e nervosismo, onde ninguém conseguia prever as consequências daquela aventura desesperada de interferir na alteração da ordem política de um país estrangeiro. Lembrar que estávamos a cerca de 20 Km da fronteira, isolados e distantes de quaisquer apoios aéreos ou terrestres.
O PAO (Plano de Actividade Operacional) foi alterado por completo e durante quinze dias outra coisa não fizemos que patrulhar a zona fronteiriça abaixo e acima, incidindo os patrulhamentos nas zonas que entendíamos como as mais prováveis para a entrada dos golpistas. O esforço operacional já era enorme e só nos faltava mais aquela aventura de efeitos pouco previsíveis para nos enfeitar os dias de sofrimento e sacrifício que levávamos. Naqueles dias de tensão eu imaginava todos os quadros possíveis. Se de facto entrassem viriam certamente perseguidos e era connosco que os perseguidores se teriam de confrontar. Um confronto com a guerrilha tinha as consequências previsíveis mais ou menos conhecidas. Um embate com tropa regular de outro país, por certo enquadrada de forma mais organizada e apoiada por meios aéreos, era um cenário que nos inquietava e dificultava mais ainda o sono nas noites mal dormidas à beira do rio Cuando, onde se acoitavam milhões de mosquitos que nos atacavam todas as noites, bem antes dos militares zambianos.
Naquele panorama esperava-se que o golpe, a ter lugar, soasse e Luanda soubesse como correriam as coisas. Nesse sentido, esperava-se que, no caso de falha, e a perspectiva de acolhimento ganhasse forma, tivéssemos também nós um reforço de segurança para o previsível embate que pudesse ocorrer. Esta esperança não colhia, no entanto, grandes confortos de alma. O isolamento da região e a distância dos meios de apoio aéreo faziam pensar que, no caso de necessidade, era muito provável que ficássemos a perder no confronto e entregues a nós próprios. Qualquer apoio terrestre nunca chegaria menos de vinte horas depois de ser solicitado. Tempo mais que suficiente para termos pouco que contar quando este chegasse. O apoio aéreo, sem bases de reabastecimento próximas, mal chegassem do Luso ou Gago Coutinho, ficariam alguns minutos e regressariam apenas com o combustível necessário para voltar à base.
E foi no meio deste turbilhão de pensamentos que vogámos durante aqueles quinze dias abaixo e acima perscrutando o rio, no desejo obstinado de o ver correr límpido e imperturbável, sem golpistas aflitos em busca de salvaguarda e de melhores dias para "to see the moon..."
Aos vinte dias o panorama desanuviou um pouco. Fomos mandados recolher, embora ficando em alerta, o que nos deu algum tempo de repouso. Como tínhamos que ficar vigilantes o PAO foi interrompido, permitindo algum tempo para respirar fundo. O golpe não chegou a ser desencadeado porque os revoltosos não encontraram os apoios necessários e suficientes à sua consumação, para grande desespero do regime e da PIDE, que tinham investido grandes esperanças naquela arremetida. Para nós um alívio e o retorno à rotina das nossas guerras internas que já nos bastavam para preencher os ideais e ambições de sobrevivência, que alimentávamos desde o primeiro dia.
Tudo não passou de um susto e de mais uma aventura política desesperada do regime, que procurava apoiar todas as acções e medidas que lhe permitissem acalentar algumas crenças de sobrevivência naquela guerra absurda e sem perspectivas de vitória à vista.

(Excerto do livro "Capitães do Vento" Editora Roma-Editores)

P.C.

domingo, 1 de novembro de 2009

Raid ao Chiúme

Por: Egídio Cardoso

Um a um, os helicópteros levantaram voo, arrancando da pista um remoinho de pó vermelho. A meia dúzia de Alouette III que constituía a esquadrilha que a Força Aérea Sul-africana disponibilizara para a operação, seguiu em formação rumando a norte num voo suave sobre a savana a uma altura que permitia ver com nitidez o terreno que estava acostumado a pisar.
Sobrevoar a savana era, para mim, uma novidade, um deslumbramento que contribuiu para rapidamente anular o azedume pelo desaguisado com o comandante, não obstante continuar a parecer-me ridículo o episódio do camuflado.
Quilómetros de terrenos arenosos e chanas semi-pantanosas, pejadas de mosquitos, que lá em baixo levavam dias a vencer, eram galgadas num ápice dando uma ideia diferente da imensidão plana das Terras do Fim do Mundo.
A planura daquelas terras ganhava maior dimensão vista do alto. Até onde a vista alcançava apenas se divisava um horizonte longínquo, qual mar de cor verde seco entremeado de clareiras amareladas matizadas aqui e ali de um verde mais intenso assinalando o serpentear de rios e afluentes alimentados pelas águas das últimas chuvas. O barulho das pás dos Alouette atormentava manadas de palancas ou gazelas que, assustadas, encetavam uma correria desenfreada, fugindo daquelas coisas estranhas e barulhentas que ousavam perturbar a calma e o silêncio do seu inexplorado habitat.
Após uma viagem aparentemente curta, os helicópteros baixaram, no seu característico planar, aproximando-se da orla da mata, no outro lado de uma extensa chana, pousando sobre o terreno coberto de capim rasteiro. No ar, volteando sobre a área, apenas permaneceu o helicanhão zelando pela segurança dos aparelhos no solo. Cada esquadrilha integrava um, equipado com uma metralhadora de vinte milímetros montada transversalmente e que, em caso de ataque, despejava sobre o solo saraivadas de metralha capaz de dizimar quem se atrevesse a atacar.
Saltei sem dificuldade, não obstante o peso do equipamento que transportava, lembrando-me das vezes que, ainda em Santa Margarida, exercitei a manobra. Contudo, aí, o helicóptero pairava a alguns metros do solo, levando a entorses perante o salto para um solo irregular. Agora, em pleno cenário real, não havia razão para tal. Pousar, largar as tropas e levantar de novo, era coisa de instantes e evitava hesitações de um ou outro menos afoito que se atemorizasse perante a altura ou incerteza do solo onde aterraria.
Afastámo-nos rapidamente do local procurando protecção na orla da mata, aguardando pela segunda leva que completaria o efectivo destacado para tão importante operação.
A forma meticulosa como fora preparada, o empenho directo do comandante de batalhão, o armamento que se transportava, o envolvimento de uma esquadrilha de helicópteros vinda de propósito da vizinha Africa do Sul e o facto der ser comandada pelo próprio comandante da companhia, eram sinais mais do que suficientes para nos convencermos da sua importância.
Devia ser coisa em grande. Pelos vistos, tinha sido detectada uma grande base do inimigo, lá para os lados do Chiúme, mas ainda dentro da nossa área de actuação e falava-se à boca pequena que os altos comandos em Luanda, haviam pensado executar a acção com recurso a tropas de elite integrando forças dos comandos e unidades de pára-quedistas.
Ao que parece o Ruizinho encheu o peito de ar e atreveu-se a contrariar tão experientes estrategos.
- Quais tropas de elite qual quê! De elite eram os homens sob o seu comando, que muito melhor dariam conta do recado. Com um pouco de sorte até poderia haver feridos, ou mortos … sabe-se lá, o que a acontecer aumentaria a heroicidade da acção e o reconhecimento das altas patentes.
O grupo espalhou-se, procurando a sombra das árvores que bordejavam a chana, enquanto o capitão Cabrita conferenciava com os alferes à volta da carta militar do terreno.
Cogitando com os meus botões, à medida que, regressando, os helicópteros desapareciam ao longe, assaltou-me uma dúvida. Para mim, visto do alto, o terreno era todo igual. Pelo menos as chanas não se diferenciavam. Quem me garantia que era aquela e não outra? Como sabiam os sul-africanos que aquele era o local exacto? Podia ser a chana seguinte, outro ponto mais a norte, ou outro mais a sul.
Mas parece que o sítio era mesmo aquele, já que as ordens para o início da caminhada foram dadas sem hesitação e o carreiro por onde metemos parecia corresponder ao indicado no mapa.
Não havia tempo a perder. Era necessário chegar ao objectivo dentro dos tempos planeados, impondo-se uma progressão em ritmo vivo e esgotante, por um percurso arenoso, por vezes acidentado e irregular. As ordens vinham da frente por monossílabos. As paragens eram escassas. Parecia que o capitão Cabrita tinha fôlego de gato. Só demonstrava cansaço quando o resto do pessoal, já em dificuldade, se arrastava como que rebocado pelos da frente.
Excepto o carregador. Mais uma vez a resistência daquela gente me surpreendia. Contratado apenas para carregar as tralhas do enfermeiro e do homem das transmissões, acabou por ir aceitando carregar, a troco de algum dinheiro, os sacos de uns tantos. Como a procura era muita, improvisou uma vara, prendeu nas pontas todos os sacos que negociara, equilibrou o peso de um lado e outro e carregou-a aos ombros. O pau vergou sob o peso, mas o homem, não.
O sol aproximava-se lentamente da linha do horizonte, aliviando os corpos cansados das suas ferroadas. A ordem para parar caiu como uma bênção. Mas foi sol de pouca dura. Logo que a noite tomou conta da mata, novas ordens, dadas em surdina, puseram de novo o grupo em marcha. Só após um curto percurso em silêncio e às cegas pela mata e que pareceu durar uma eternidade, se decidiu o local de pernoita. Um sítio qualquer de contornos diluídos na densa noite. Tratava-se de uma medida de segurança visando evitar que o inimigo desse conta do sítio exacto onde dormíamos, anulando a possibilidade de ataque durante o sono.
Metido dentro de uma farda molhada de suor, acomodei-me no chão irregular o melhor que pude. Tacteei dentro do saco, escolhi uma lata de ração, abri-a em silêncio com a ajuda da faca de mato e engoli o seu conteúdo de sabor atípico. Recostei-me e adormeci vencido pelo cansaço.
O dia seguinte revelou-se demolidor. Os pés não resistiram à dura textura das botas. As costuras das calças do camuflado cederam ponto a ponto, transformando-se num pano que esvoaçava ao vento. O percurso ora irregular, ora de areia solta, fazia do caminhar martírio, tudo condimentado com um calor sufocante.
Maldizia o comandante. Não se gostando do homem, tudo o que não corria bem era culpa dele. É que, parece ter partido dele a informação de que haveria minas na zona, atoarda que determinou a opção pelas botas de cabedal, mais resistentes, em vez das de lona, mais confortáveis e adequadas ao terreno arenoso da savana.
Andar, tornou-se doloroso. As bolhas eram tantas que já não as conseguia contar. Andar descalço, com as meias a fazer de sapatos foi a melhor opção. As botas, presas uma à outra pelos atacadores, eram transportadas ao pescoço, pendentes sobre o peito, uma para cada lado.
Era imperioso continuar e encontrar o objectivo ou o que quer que nos trouxera ali. A missão teria de ser cumprida dentro dos timings e o Major de operações, sobrevoando a área na pequena Dornier, controlava os nossos passos.
O capitão, agarrado ao pequeno AVP1, comunicava lá para o alto informando da situação e recebendo no retorno, ordens, directivas e informações. Consultava os mapas e conferenciava com os alferes. Até então, nada havia sido encontrado que permitisse adivinhar a proximidade de instalações inimigas e menos ainda se estariam ou não à nossa espera, se iriam dar luta, aquietar-se ou fugir. Parece que, lá de cima, da pequena avioneta, também nada era visto. Àquela altura nem nos devia enxergar.
A proximidade do Cuando revelou sinais do que teria sido uma horta ou coisa parecida. Contudo, era óbvio que há muitos anos ali não era plantado ou colhido o que quer que fosse. Um raquítico limoeiro, enfermo pela falta de cuidados, com dois ou três limões ainda do tamanho de bolotas, fazendo companhia a uma bananeira enfezada que timidamente deixava ver por entre as tenras folhas um minúsculo cacho a desabrochar, era tudo o que restava da horta.
Contornámos o perímetro, penetrámos na mata, voltámos ao rio sem que se tivesse encontrado qualquer trilho ou sinal de vida. Interrogávamo-nos se estaríamos ou não no local certo ou se as informações que estiveram na origem de tão importante operação militar eram ou não correctas. Com o pessoal à beira do esgotamento, quase sem ração de combate e já sem saber onde procurar mais, o Capitão deu ordem de regresso. Ainda havia um longo caminho a percorrer até ao local combinado para a recolha e o tempo urgia.
A decisão, para além de bem-vinda, animou a malta, pelo menos a princípio. Mas o cansaço foi tolhendo os movimentos e atrasando a marcha. As paragens passaram a ser mais frequentes progredindo-se muito pouco.
Era um facto que não seria possível chegar ao ponto definido dentro do tempo programado. Um último esforço levou-nos a um descampado, no meio da mata a menos de meio caminho. Era uma área de vegetação rasteira e sem árvores. Apenas uns paus secos ao alto, espécie de carcaças de árvores mortas, emergiam aqui e ali por entre os arbustos. Era a solução que acabaria com o sofrimento. Bastaria limpar a área de um pau ou outro, cortar os arbustos mais viçosos e teríamos um improvisado heliporto. Era só comunicar o novo local de recolha via rádio e em dois tempos estaríamos em casa.
O homem das transmissões agarrou-se ao rádio, estabeleceu o contacto e em poucos minutos a anuência foi obtida. Numa espécie de energia renascida, cada um se precipitou sobre o que quer fosse considerado obstáculo ao pouso dos helicópteros. Facas de mato substituíram foices e machados. Os troncos secos não resistiram tombando vencidos pela força braçal que os empurrava.
Foi com alvoroço que vimos os Alouette pousar, um a um, por entre um esvoaçar de folhas e retirar-se com a primeira leva em direcção ao aconchego da Neriquinha, tão inóspita e simultaneamente tão acolhedora.
Afinal, de pouco valera o esforço. As bolhas dos pés tinham sido um sacrifício em vão. Com a garganta ressequida pelo pó, desci do helicóptero para a consistência avermelhada da pista e coxeei até à camarata. De momento, o que mais desejava era sentir a fresquidão do duche e esticar-me ao comprido. Quanto às bolhas, sararam depressa, mas durante uma semana andei de chinelos.