domingo, 15 de janeiro de 2012

A preparação da janta

A alimentação dos ganguelas da Neriquinha era muito pobre e talvez fosse essa a razão para não haver gordos entre aquele povo.
Proteínas, apenas as que retiravam do que conseguissem caçar, uma ocupação dos homens que para o feito, deambulavam durante semanas pelas matas até apanharem alguma coisa; por sorte, a caça abundava por ali.
Também nunca os vi comer verduras e os frutos resumiam-se a algumas variedades, desconhecidas para nós e que cresciam espontaneamente nas matas.
A base da alimentação era constituída por dois cereais: o milho e o massango, com os quais cozinhavam uma papa de aspecto duvidoso.
Mas para isso, era necessário transformá-los previamente em farinha, uma tarefa demorada feita à força de trabalho braçal; bater os grãos dentro de um grande pilão com uma vara grossa e pesada, era tarefa árdua que competia às mulheres. Passavam horas em pé, batendo o cereal a um ritmo cadenciado, até conseguirem a consistência desejada.



domingo, 1 de janeiro de 2012

Delírios nocturnos

Já aqui me referi, por diversas vezes, aos meus companheiros de aventuras por terras do Cuando Cubango, especialmente os furriéis da 3441. É verdade que cada ser humano tem características próprias que o distinguem dos demais e isso torna-o de alguma forma especial. Não quero chegar ao exagero de afirmar que ali todos eram especiais, mas a verdade é que alguns se demarcavam pelas suas características e comportamentos. As diferenças notavam-se na forma de ser, nos tiques e manias, nas extravagâncias, vaidades e medos, nas bazófias de feitos passados, não obstante os poucos anos que ainda levavam de idade adulta não garantirem a experiência necessária. Uns distinguiam-se pela timidez, outros pelo atrevimento, alguns pela piada e outros pela sisudez, mas é também verdade que uns eram indubitavelmente mais cultos que outros. Vistos por outro prisma, uns tantos eram mais experientes e ledos, em contraponto com dois ou três mais reservados e tacanhos. Mau feitio, camaradagem, sensatez e bom senso, estavam mais ou menos bem distribuídos por todos de forma que, quando faltava paciência a alguém, compensava-se com o bom senso do mais apaziguador.
Era assim o corpo de furriéis da companhia, se bem que alguns, por isto ou por aquilo, tivessem deixado marcas mais profundas nas nossas memórias, como sejam as doenças do Palúdico, as diatribes do Silva ou as bebedeiras do Neto. A verdade é que, pelo menos durante os longos dezoito meses que passámos na Neriquinha, dormíamos todos na mesma camarata e, quer queiramos quer não, isso fazia com que nos conhecêssemos com algum pormenor. E isso é o mesmo que saber como cada um dormia, se ressonava ou não ou se dormia de barriga para baixo ou de papo para o ar. Ainda me lembro que o Viola tinha o hábito de dormir de boca aberta, o Fielas esparramava-se de barriga para baixo, enquanto que o Ramirez dormia de barriga para cima e ressonava. O Neto, esse, normalmente toldado pelo álcool, discutia com as melgas. O Gameiro conhecia-se pouco; passava as noites no kimbo aconchegado à Regina Preta e não me lembro de o ver a dormir na nossa camarata.
Quanto ao que se passava enquanto todos dormiam é coisa mais difícil de recordar; todos tinham o sono pesado e a canseira do dia funcionava como barbitúrico eficaz; e por isso, todos dormiam o sono dos justos. Assim, o ressonar do Ramirez não incomodava ninguém e se alguém falava durante o sono, não se dava por isso. A não ser que o pesadelo fosse de tal ordem que nos fizesse acordar, o que aconteceu algumas vezes com o Peixoto.
O Peixoto era o furriel de operações especiais da companhia - cada companhia de caçadores tinha um alferes e um furriel formados na instrução especial de Lamego. E como eram mobilizados logo que acabavam o curso, isso transformava-os nos graduados mais novos da companhia. E isso marcou o Peixoto; sendo o de menos idade entre os furriéis, foi apelidado de “o menino”, nome que ainda hoje se utiliza quando se fala dele, não obstante já ter ultrapassado, há um par de anos, a fronteira dos 60.
Pois é, “o menino” falava durante o sono e o mais engraçado é que não dava por isso. Nunca o conseguíamos convencer das asneiradas que lhe saíam da boca durante o sono e melindrava-se quando confrontado com o facto.
- Vocês estão é a gozar comigo!
Despachava, sem dar hipótese a argumentos; mesmo com as explicações mais objectivas do mundo, não se convencia. Para ele não passava de provocação.
Certa noite, o pesadelo do Peixoto foi sério. De repente, no meio do silêncio, sentou-se bruscamente na cama e esbracejando freneticamente gritava:
- Lá vêm eles … lá vêm eles!! Façam segurança à pista grande!!
E dito isto, deixou-se cair para trás retomando o sono profundo de onde nunca tinha chegado a sair.
Penso que todos acordaram estremunhados e alguns até saltaram da cama, embora sem grande susto. Já conhecíamos o Peixoto e os seus delírios e ninguém estranhou, embora eu tivesse ficado com a sensação que ele estava a gozar connosco.
Por sorte, não havia nenhuma pista grande e até hoje nunca conseguimos descobrir onde diabo foi o Menino buscar tal ideia. A Neriquinha apenas tinha uma pista, por sinal pequena, de terra batida e muita erva e nunca se ouviu dizer que alguma vez ali tivesse existido uma maior. O estranho de tudo aquilo é que o Peixoto, não sendo muito assustadiço, também nunca dera sinais de medos ou temer ataques, o que, verdade seja dita, foi coisa que nunca aconteceu e naquele exacto momento, tirando o escarcéu do Peixoto, tudo o mais permaneceu mergulhado no mais completo silêncio: não se ouviram tiros, as sentinelas não deram o alarme; tudo estava em perfeito sossego, como sempre. E assim sendo, todos retomaram o sono profundo e revigorante.
Algum tempo depois, o Peixoto voltou aos seus monólogos nocturnos, desta feita com algumas inconfidências que mais uma vez não reconheceu como tendo sido proferidas por si. Talvez pelo melindre, não foram tão abertamente pronunciadas. Não sei se em resultado de um qualquer sonho erótico, mas a verdade é que as frases saíram mais em surdina, perfeitamente audíveis mas um tanto ou quanto entarameladas, sem sequência lógica, como se verberasse impropérios contra alguém, certamente do sexo feminino. Pelos vistos, as mulheres atormentavam o sono do menino e todos se lembram de, no meio de um arrazoado sem sentido, se ouvir nitidamente algo como … puta de merda ….
A história nunca ficou esclarecida e o Peixoto nem se mostrou comprometido quando confrontado mais uma vez com os seus monólogos nocturnos. Como sempre, arrumou o assunto com um:
- Vocês tiraram o dia para gozar comigo!
E afastou-se com um gesto de desprezo, como quem em definitivo quer deixar claro que não quer mais conversas. Ainda hoje, estou para saber se não esteve todo o tempo a gozar connosco.