segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Artesãos da Neriquinha

Numa abordagem superficial, a produção de artesanato poderia parecer tratar-se de mera ocupação do tempo. Mas se se tiver em atenção o que produziam, facilmente se conclui que a arte de esculpir a madeira e moldar o ferro visava em primeira mão a produção de ferramentas e utensílios necessários ao dia a dia daquelas gentes. Aquela forja artesanal e curiosa, manipulada pelo Século Sarikissi, com a qual forçava sem esforço o ar até o braseiro que tornava o ferro incandescente, não fora invenção recente. Mais, não tinha por finalidade a simples produção de artesanato.
È claro que a lixeira da tropa se transformou num local onde encontravam matéria prima pronta a ser transformada: bocados de molas partidas das viaturas eram facilmente transformados em facas, machados (javites) e lanças; aduelas de barris que ali chegavam acondicionando azeitonas e outras conservas viravam cadeiras e artefactos e a abundância de madeira existente nas matas era facilmente transformada em objectos procurados pelos tropas dando lugar a um mercado em que cachimbos, cinzeiros artísticos, pequenas estatuetas, tambores e caretos constituíam uma fonte de rendimento até então inexistente.A arte de moldar o ferro e esculpir a madeira tornara-se um negócio, passando as ferramentas a serem aos poucos adquiridas no Chiado.
















quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O CHIADO

A população da Neriquinha e arredores não ligava muito ao dinheiro. Na verdade, o seu modo de vida e a satisfação das suas necessidades básicas dispensava tal modernismo; tiravam da terra quase tudo o que consumiam, fabricavam a maior parte dos utensílios que precisavam e colhiam na mata os materiais com que construíam as suas casas.
Era uma economia agrária, rudimentar e por ali não havia mercearias, supermercados, drogarias ou outras lojas que convidassem ao consumo.
A chegada da tropa a tão remotas paragens veio contaminar este despojado modo de vida. Com a tropa, vieram também coisas que rapidamente os conquistaram. O tabaco e o álcool contam-se entre as novidades a que rapidamente aderiram, especialmente as mulheres; com um simples maço de tabaco obtinha-se de uma mulher muitos favores.
Mas o álcool era talvez aquilo que mais apreciavam. Com muita frequência encontrava-se pelo kimbo mulheres totalmente embriagadas, à força de emborcarem quantidades significativas de uma mistela alcoólica de produção caseira obtida a partir da fermentação das sementes de massango. De cor castanho forte e com muito mau aspecto constituía até então a única bebida que conheciam para afogar as mágoas se é que era esse o intento.
À vista da beberragem, uma garrafa de brandy, de cor nacarada e límpida, assemelhava-se a coisa especial, inatingível; um néctar próprio dos deuses, mas de preço muito elevado para bolsas tão magras.
O produto era de facto muito apreciado e todos sabiam disso. Exactamente por isso, certa vez, no Rivungo, o cabo enfermeiro apostou que, prometendo uma garrafa de brandy a uma mulher que trazia fisgada, conseguiria uma noite de prazer sem gastar um centavo. Pegou numa garrafa vazia, encheu-a com metade de água e metade de álcool puro subtraído da enfermaria, adicionou meio frasco de complexo B para conferir uma cor amarelada à mistela, rolhou muito bem e deu-a de presente anunciando o melhor brandy do mundo. Foi dia de festa para a mulher; bebeu a garrafa numa noite e no dia seguinte queria mais:
- Brandy muito bom, nosso cabo, machiririca.
De uma assentada, elogiava a qualidade da mistela e com o machririca mimoseava o enfermeiro.
Mas não foram apenas novos produtos que a guerra levou àquelas bandas. Novos hábitos de consumo, algumas utilidades, umas quantas futilidades e algum dinheiro também ali chegaram, contribuindo para uma aculturação paulatina, que levou aquela gente a ir aderindo, uma após outra às novidades, até já não dispensarem certas modernices. Por exemplo muitas mulheres já não passavam sem o seu cigarro; compravam-nos, cravavam os militares ou então recebiam-nos em troca de um agrado. Na sua maioria, especialmente as mais velhas, fumavam introduzindo na boca o cigarro ao contrário. Depois de o acenderem, enfiavam na boca a ponta incandescente deixando de fora a boquilha e assim ficavam até o cigarro se consumir. Nunca percebi como faziam aquilo; não molhavam o cigarro, a chama não se apagava e consumiam-no até ao fim sem se queimarem.
A grande novidade que veio com a tropa foi o dinheiro o qual, como não podia deixar de ser, foi chegando às mãos daquele povo, quer como paga dos serviços que prestavam, quer como provento da venda do que pudesse interessar aos forasteiros; o sexo era uma boa fonte de rendimento perante a quantidade de homens sedentos de mulher e o variado artesanato que produziam tinha boa aceitação entre os tropas.
Depois havia o ordenado pago aos GE’s, substancialmente maior que as demais fontes de rendimento. Recebiam muito menos que qualquer soldado mas para eles era dinheiro que não tinham onde usar. E isso levava-os a gastá-lo na cantina, comprando álcool.
Por outro lado, lojas, naquele fim de mundo, abertas ao público, eram coisas escassas. Apenas no Rivungo havia uma rudimentar loja explorada pelo velho Miguel, vendendo pouca coisa e em Mavinga, tanto quanto me lembro, não haveria mais do que duas. Mas, como era preciso pelo menos dois dias de caminho para vencer a distância, tinham pouca utilidade para a população da Neriquinha e qualquer delas não vendia nem tabaco nem álcool; apenas uns panos coloridos, umas missangas, uma coisa ou outra e nada mais. Os clientes escasseavam, o dinheiro era pouco e os hábitos de consumo inexistentes. Ou seja comerciante por ali não se safava, o que confirmava a minha teoria de que o marinheiro Godinho, quando voltou para o Rivungo e ali se estabeleceu tomando de trespasse a lojeca ali existente, fê-lo certamente atraído pelas armadilhas do amor que o prenderam à negra por quem se embeiçou. Nunca mais regressou à civilização, acabando ali os seus dias volvidos alguns anos e não consta que tenha ficado rico.
Ora, a Neriquinha não era uma localidade. Como já se disse, era apenas um acampamento militar delimitado por uma cerca de arame farpado no meio da terra de ninguém. A população que ali habitava apenas se arrumou do outro lado da cerca, procurando a segurança e o conforto que a tropa propiciava. O facto é que, como se sabe, logo que findou a guerra, a tropa abandonou o local, a população zarpou, procurou outros lugares, ficando a Neriquinha a apodrecer, abandonada, até se converter em ruínas tomadas pela mata.
Mas, voltando ao tema do comércio, é claro que a lacuna tinha de ser suprida. A Neriquinha precisava de uma loja; a população que ali se juntou tinha necessidades que precisavam de ser satisfeitas e a tropa encarregou-se disso. A 3441 herdou da companhia anterior e suponho que também esta herdou da que a antecedeu, uma cubata grande, um barracão todo feito de capim já enegrecido pelo tempo, estrategicamente plantado perto da passagem que ligava o aquartelamento ao Kimbo, nas traseiras da ferrugem.
Eufemisticamente puseram-lhe o nome de “O CHIADO”. Ali se vendiam umas quantas tralhas: panos de diversos padrões e cores, ferramentas onde se incluíam as enxadas, panelas de ferro tipicamente portuguesas (daquelas com tripé) ideais para cozinhar sobre lenha, uns alguidares de plástico, uns canecos, uns pratos de lata esmaltada, facas, colheres, garfos, missangas e outros adornos e mais uns quantos artigos que se consideravam poderem interessar à população.
Para a gerência do estabelecimento foi designado o furriel P. Costa, acumulando com a coordenação da horta. Já que o capitão o dispensou da actividade operacional por alegadamente sofrer de uma qualquer doença incapacitante, ao menos tinha com que se entreter. Mas, vistas bem as coisas, a nomeação foi acertada. O P. Costa tinha jeito para o negócio, sabia lidar com aquelas gentes e pelos vistos era de confiança, já que, tanto quanto sei, o estabelecimento dava lucro.
Assim, quando os GE’s recebiam o seu ordenado, havia como gastar o dinheiro em coisas úteis, e não apenas na cantina, embora isso não impedisse que o stock de brandy sofresse baixas consideráveis nos dias que se seguiam. De facto, amor ao dinheiro era coisa que não tinham e menos ainda hábitos de poupança e também não aspiravam a nada que pudesse ser alcançado com as poucas notas que recebiam mensalmente.
Nesta ordem de ideias, e não tendo o dinheiro serventia, o normal era gastarem-no todo nos primeiros dias em bebida que ingeriam sem comedimento e isso poderia constituir um problema de ordem social e pior que isso de ordem disciplinar. GE’S bêbados por dias consecutivos não era muito auspiciante.
E foi por todas estas razões que o capitão, investido em representante da autoridade do Estado, determinou que uma parte do ordenado lhes fosse pago em espécie; exactamente em artigos à sua escolha que seriam fornecidos pelo Chiado, ficando assim garantido que, pelo menos essa parte, não se evaporaria em álcool.
O facto é que o Chiado foi cumprindo a sua missão: as mulheres começaram a andar mais vestidas, passaram a exibir adornos de missangas coloridas e as latas velhas e negras de fumo, recolhidas na lixeira da tropa e até então utilizadas na confecção das refeições, foram sendo substituídas por panelas de ferro.

O Chiado não abria todos os dias e quando abria era por pouco tempo, já que o fluxo escasso e intermitente de clientes, não obrigava ao cumprimento de horários comerciais. Quem quisesse comprar alguma coisa sabia onde estava o lojista e o P. Costa não se esquecia de manter o estabelecimento aberto nos dias que se seguiam ao recebimento das mesadas, quer se tratasse de GE’s, dos rapazes que lavavam a roupa, dos serviçais que ajudavam na enfermaria, na horta, na cozinha e na messe ou onde pudessem garantir uma fonte de rendimento.
O lucro do negócio propiciado pelo Chiado não engordou ninguém em particular. Foi usado até ao fim da comissão para compensar a escassez da verba para alimentação. Graças ao Chiado, comemos um pouco melhor durante o resto do tempo que durou a nossa missão por terras angolanas. E a população agradecia a possibilidade de adquirir algo de que precisasse em troca do dinheiro inútil. Não fora isso e provavelmente gastaria as suas parcas receitas monetárias em coisas supérfluas; talvez em álcool.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Neriquinha - Subsistência

A dieta alimentar da população da Neriquinha, era limitada.
A agricultura, meramente de subsistência, resumia-se à plantação de dois cereais: o milho e uma espécie de sorgo por ali chamada de massango. Transformados artesanalmente em farinha, cozinhavam uma papa de aspecto duvidoso que constituía uma dieta alimentar muito pobre.
Tirando isso, a mata fornecia tudo o mais.

A caça constituia a única fonte de proteínas. Mas, não obstante ser abundante na região, os métodos rudimentares de caça não garantiam muita frequência no abastecimento. Por isso, não eram esquisitos Qualquer animal que conseguissem apanhar virava refeição, como foi o caso do hipopótamo que resolveu invadir as lavras da Neriquinha Velha.Frutos silvestres não abundavam, mas as árvores do MABOCO cresciam por ali, disseminadas pela mata. Sabiam onde estava cada uma e o primeiro a chegar colhia tudo o que podia transportar

terça-feira, 1 de novembro de 2011

O resgate da avioneta

O Cuando Cubango, pelo menos no espaço que vai do Kuito Cuanavale até ao Luiana, é dominado pela savana. São extensões a perder de vista de uma paisagem plana e monótona, caracterizada por uma vegetação pouco densa, onde as chanas constituem clareiras extensas, maioritariamente atravessadas pelos inúmeros cursos de água que se passeiam indolentes sem rumo definido num terreno isento de pontos de referência.
Vista de cima, cada chana parece igual a todas as demais e as poucas particularidades que as diferenciam raramente servem de orientação a quem quer que por ali se aventure. Por esse facto, sobrevoar aquele território obriga à utilização dos instrumentos necessários à orientação do voo.
Naquele tempo, o Barros, piloto da TASA, seria o único que se atrevia a dispensar essas sofisticadas modernices. Trazendo-nos o correio duas vezes por semana, conhecia a savana como a palma das suas mãos, sabia de cor e salteado as chanas que se sucediam desde o início do percurso até à ultima e mais remota localidade e era capaz de identificar exactamente quais as clareiras onde poderia aterrar o seu pequeno Cessna em segurança, se fosse caso disso.
Mas isso era o Barros. Qualquer outro que cruzasse os ares da savana tinha de saber utilizar os instrumentos de navegação, caso contrário, o risco de se perder era real. E foi isso exactamente o que aconteceu. Certo dia, não sei como nem porquê, um pequeno monomotor pertencente a uma pequena companhia de táxis aéreos de Serpa Pinto, pilotado por um novato naquelas andanças, levantou do Rivungo com destino à Neriquinha. Consigo trazia dois passageiros, um deles, o Camassango, técnico para as questões da agricultura que, finda a sua comissão no Rivungo, regressava a Serpa Pinto.
O piloto orientou o pequeno avião na direcção nor-noroeste, seguindo à vista as chanas que se sucediam, as quais, de acordo com o mapa que tinha à sua frente, indicariam a direcção da Neriquinha. Mas, por razões que desconheço, foi-se desviando pouco a pouco do rumo certo. Crê-se que por alturas do Cúbia, inclinou ligeiramente o avião em direcção a oeste e sem se dar conta do engano passou a sobrevoar uma sucessão de chanas que o foram afastando do rumo que pretendia seguir até que se viu perdido. Andando em círculos, sobrevoou o rio Uefo, passou ao Dima e acredita-se que planou desorientado sobre os rios Capembe e Matungo até que, esgotado o combustível, acabou por se despenhar nas chanas alagadas do Utembo, quase no limite da nossa área de intervenção, alguns quilómetros a sul do local que denomináramos de esquadrão, por ali ter estado instalada uma base inimiga por nós destruída alguns meses antes, numa operação de grande envergadura.
Foi pedida ajuda à Força Aérea que disponibilizou um velho PV2, a empresa proprietária do aparelho destacou duas pequenas aeronaves, assentaram as bases na Neriquinha e lançaram-se na busca dos destroços do avião sinistrado, varrendo toda a área possível e vasculhando lá dos céus cada recanto da savana.
Só ao fim do terceiro dia de buscas, o PV2 avistou os três ocupantes do pequeno avião, deambulando perdidos numa clareira e que entretanto, quase mortos de fome e cansaço, se haviam afastado bastante do sítio onde tinham caído. Foram lançadas rações de combate que os três devoraram com sofreguidão acabando por serem recolhidos pouco tempo depois por um helicóptero da Força Aérea que os trouxe para a segurança da Neriquinha.
Fui esperá-los à pista. Conhecia bem o Camassango, pelo menos o suficiente para estar preocupado. Ao menos queria saber se estava bem. Coxeava ligeiramente, tinha umas quantas nódoas negras, uns arranhões, mas não tinha nenhum osso partido nem ferimentos graves. Em boa verdade, os três, para além do grande susto, apenas foram atormentados pela fome já que, água, havia em abundância, especialmente naquela época do ano. Estavam todos sujos, a roupa mal tratada, apresentavam um ar cansado e nitidamente empalidecido. Três dias sem comer tinham deixado as suas marcas. Ao longo dos dias em que deambularam pela mata, ainda tentaram apanhar a única coisa que lhes apareceu pela frente; uma espécie de ratazana que costumava escavar pequenos túneis nas bermas das chanas e a que nunca demos importância. Pelos vistos não chegaram a apanhar nenhuma e água foi a única coisa que conseguiram ingerir ao longo de todo o tempo que andaram perdidos.
Agora, passado o pior, importava recuperar a carcaça da pequena avioneta. Não era conveniente deixá-la ali e os seus donos faziam questão de a reaver. Não ficara muito danificada e a sua reparação mais do que se justificava.
O problema residia apenas na forma de arrancar o avião do sítio onde estava e trazê-lo até à Neriquinha, tarefa que nos foi confiada. Com efeito, o local era distante e de difícil acesso mas a nossa companhia era a única que teria condições de lá chegar, não obstante o único equipamento disponível se resumir às berliet’s, sem dúvida o único meio de transporte capaz de levar a cabo a missão, embora nos parecesse serem um pouco curtas para o efeito. Transportar um avião acidentado às costas daquelas viaturas, pelos percursos sinuosos da savana, não seria pêra doce.
Para a operação foi designado o furriel Leitão à frente de um grupo de homens do seu pelotão o que o deixou furioso. Pouco tempo antes, todo o seu grupo de combate, chefiado pelo alferes Aranha, estivera envolvido numa das operações mais difíceis da companhia, levada a cabo lá para os lados do Tossi e que tivera como objectivo perseguir o grupo do Kuenho que, um dia antes, emboscara e matara doze GE’s dos grupos de Mavinga e da N’Riquinha, no qual se incluía o nosso Fulay. E, exactamente por isso, ter de alinhar de novo, não agradou ao Leitão.
Ficou furioso, perdeu a sua costumeira postura pacífica e resolveu questionar o capitão. Procurámos acalmá-lo, dissuadi-lo, apresentando argumentos, justificações, pontos de vista. Até se tentou encontrar as razões que teriam levado o capitão a escolhê-lo. Mas nada parecia acalmá-lo, ripostando irado com uma espécie de jargão muito seu, que usava quando discordava de qualquer coisa.
- Não há nem meio !
Nitidamente exaltado caminhou em direcção ao gabinete do capitão decidido a levar avante a contestação, esquecendo-se que, na tropa, ordens não se discutem. Mas de nada lhe valeu refilar. Parece que efectivamente não havia outra escolha. Conformou-se, acatou a ordem, preparou a equipa à qual foram afectos dois mecânicos, um enfermeiro e um rádio-transmissões. Carregaram duas berliets com ferramenta, cordas, dois bidões de gasóleo, lanças de reboque e tudo o mais que se pensou poder vir a ser necessário e lá partiram, determinados a trazer a carcaça acidentada, custasse o que custasse.
Saíram, bem cedo, muito antes do sol nascer, seguindo em direcção às pontes do Cúbia, tomando depois a picada por nós aberta nas idas ao esquadrão e continuando para montante ao longo do percurso irregular e sinuoso do Cúbia.
Rodaram durante todo o dia, chegaram às chanas do Dima e continuaram para sul ultrapassando os limites já nossos conhecidos e que havíamos palmilhado aquando das incursões para os lados do esquadrão, mas agora prosseguindo a corta mato, abrindo nova picada sobre as orientações do guia, até à zona mais a sul do rio Dima.
De acordo com a informação passada pela Força Aérea, sabia-se que o avião estava semi-submerso e admitia-se que esse factor viesse a dificultar a sua recuperação. Não se conhecia a zona nem os eventuais obstáculos à progressão das viaturas, sua extensão e forma de os contornar. É que, visto de cima, tudo parecia fácil e acessível. Cá em baixo, a vegetação esconde os acidentes do terreno, as armadilhas das chanas pantanosas, os lamaçais disfarçados, os acidentes de terreno que as viaturas não conseguem vencer e os pequenos cursos de água difíceis de rodear. Ali não havia pedras ou terreno consistente; apenas areia, charcos e lodaçais.
Estávamos no tempo das chuvas e as chanas estavam alagadas, perigosas, aconselhando a rodar com as devidas cautelas e distâncias. Qualquer percurso mais baixo e fora do arvoredo podia ser uma armadilha lamacenta para as viaturas. Mas, ao fim de algum tempo e, creio, alguma persistência e com os preciosos conhecimentos do guia, lá encontraram o pequeno monomotor, meio submerso numa extensa chana alagada, algures já nos domínios do rio Utembo.
Tirá-lo dali e carregá-lo sobre uma das berliets, era agora o problema a solucionar. Não sei exactamente como o fizeram, mas lembro-me do Leitão ter contado que o pessoal livrou-se de camisas e peças de roupa inúteis, entrou naquela imensidão de água acumulada pelas recentes chuvas e que o desabrochar do capim verde fazia lembrar um extenso arrozal, desmontaram as asas, puxaram o resto da carlinga à força de braços e alguma imaginação, encaixaram sobre a carroçaria os restos do avião e encetaram a viagem de regresso, seguindo em sentido inverso o mesmo percurso sinuoso de volta à Neriquinha.
Foi com algum alívio que os vimos surgir, ao longe, envoltos numa nuvem de pó por entre a erva verde que bordejava a chana. Na verdade, não os esperávamos tão cedo, já que se admitia que o desconhecimento da zona e a esperada dificuldade em chegar ao local os retardasse mais algum tempo. Pelo menos e não apenas por mera precaução, tinham carregado mantimentos para mais uns dias.
Mas pelos vistos, tudo terá corrido pelo melhor. Estavam de regresso mais cedo do que o esperado, o que significava que afinal as dificuldades encontradas não foram tantas quantas as esperadas. Ouvi o Leitão referir que encontraram rapidamente o avião, bem visível a escassas dezenas de metros da orla da mata, semi-submerso numa zona alagada mas de pouca profundidade.
A curiosidade levou-me até junto dos recém chegados que, com ar visivelmente cansado se apeavam das viaturas. Sobre uma delas, com parte da cauda suspensa a sobrar da carroçaria nitidamente mais curta, lá vinha a carlinga amarelada do pequeno avião, desmembrado e inerte, mas pouco amachucado face ao que seria de esperar. Com efeito, parece que a água amorteceu a queda e as asas, arrumadas lateralmente apenas tinham sido separadas para possibilitar o transporte. Compreendia-se agora a razão pela qual os três ocupantes não apresentavam ferimentos de monta. Na verdade foi mais o susto que outra coisa.
O pequeno avião, sem asas, ali ficou por uns tempos, arrumado a um canto, umas duas semanas ou mais, até chegar um Nord Atlas da Força Aérea que o levou. Deu algum trabalho enfiá-lo na carlinga barriguda do Nord. Disso lembro-me perfeitamente. Um avião metido dentro de outro é a curiosa imagem que retenho.
Fiquei a ver o Nord correndo pela pista até levantar voo naquele movimento pesado a que semanalmente assistíamos desde que ali chegámos. Mas desta vez, passou-me pela cabeça uma imagem a fazer lembrar uma cena de canibalismo. O barriga de ginguba levava no seu ventre outro da sua raça. Só que mais pequeno.

domingo, 16 de outubro de 2011

Paisagens mutantes

A paisagem em redor da Neriquinha era muito pouco variada, aliás, como todo o território do Cuando Cubango mais a sul. Um clima semidesértico de savana pura tem muito pouco para oferecer para além das mudanças de cor e textura que se sucediam à passagem das estações.
Quando o Nord Atlas ali nos deixou no longínquo mês de Novembro de 1971, as chuvas já se tinham instalado provocando o desabrochar do capim que pintara de verde toda a paisagem.
Com o passar dos meses, o capim foi amarelecendo,ganhando aquela cor-palha característica, até ficar totalmente ressequido.
Chegara o tempo das grandes queimadas,
Tudo ficava despedido, matizado de negro e desolado
Até que chegavam de novo as chuvas, intensas, diluvianas
No Rivungo, parte do Kimbo ficava alagado, intransitável, enquanto a paisagem voltava a ganhar o seu tom verde intenso voltando tudo ao princípio num ciclo renovador

sábado, 1 de outubro de 2011

Economia no mato

A Neriquinha não era uma localidade, o que significa que não tinha estruturas administrativas nem um poder civil instituído. O aldeamento ali existente não era mais do que um kimbo formado por população nativa que, empurrada pela guerra ali se instalou construindo as suas cubatas à sombra da segurança e conforto que a proximidade da tropa propiciava. Maioritariamente constituído pelas etnias ganguela e kamache, compunham uma sociedade que pautava a sua conduta segundo seculares regras tribais, sendo a autoridade subjacente exercida por Sobas e Sékulos, normalmente eleitos de entre os anciãos, seguindo a máxima de que a idade confere sabedoria. Na verdade, não obstante serem duas das etnias mais atrasadas de África, representavam uma sociedade que se regia pela obediência a normas de conduta que norteavam a vida em sociedade, a família, os direitos e as obrigações. As infracções eram discutidas em conselho de anciãos que aplicava penas e coimas adequadas a cada situação. Era um normativo não plasmado em livros mas cujas regras, passando de geração em geração, eram do conhecimento de todos.
Contudo, a autoridade formal era exercida pela tropa. Começando no Capitão - autoridade máxima - seguia a respectiva hierarquia percorrendo a estrutura desde os oficiais até ao soldado mais básico, cuja autoridade se sobrepunha à ancestral liderança do Soba.
E disso se deu conta o capitão Cabrita. Se alguma vez teve dúvidas de que ali era ele quem mandava, depressa se apercebeu de que a sua autoridade não se cingia apenas aos seus subordinados, mas também a tudo aquilo que respeitava aos actos, costumes, comportamentos, atitudes e ao que quer que comandasse o modo de vida daquela gente. A querela de natureza familiar que se viu compelido a dirimir, terá sido certamente uma realidade desconcertante, especialmente para si que desconhecia em absoluto os costumes daquele povo.
Subjacente àquela pequena comunidade formada pela tropa, movimentava-se uma economia sui generis. Não apenas aquela que decorria do cumprimento das rígidas regras da contabilidade militar, mas também tudo o que daí resultava. Era uma economia fechada e rudimentar, mas que envolvia alguma complexidade. Ali havia um orçamento para gerir, um comércio à volta da cantina e do chiado e a consequente circulação de moeda. Havia ainda que garantir o fornecimento de géneros à PSP e à Marinha do Rivungo, implicando a emissão de facturas e consequentes pagamentos e recebimentos.
Tudo isto era gerido pelo nosso primeiro Pinto que, qual ministro da economia e finanças daquela espécie de estado improvisado, tudo controlava com competência e saber, zelando pela execução do apertado orçamento, supervisionando o consumo de géneros, dos combustíveis, das munições, do material de guerra, das compras e vendas na cantina, para além de ser o garante do cumprimento das milhentas normas profusamente plasmadas nas NEP’s que obrigavam à elaboração de um intrincado acervo de documentos, formulários e procedimentos que só ele conhecia. Emitia ainda as facturas à PSP e à Marinha, recebia destes o valor dos géneros fornecidos e reencaminhava a receita correspondente para os serviços da manutenção militar a quem prestava contas de tudo o que esta fornecia.
A quantidade de moeda que circulava na Neriquinha era limitada. De facto, no princípio, o número de notas e moedas em circulação resumia-se às que levávamos no bolso quando ali chegámos, acrescentando-se o muito pouco que pudesse existir em poder da população local. Não havendo fluxos do exterior, a moeda que circulava era apenas essa. Se num dia, na cantina, se pagava uma cerveja com uma moeda de cinco escudos, era grande a probabilidade de a voltar a receber no dia seguinte como troco da nota de vinte para pagar o maço de tabaco. E isto começou a ser um problema; dependendo a cantina da velocidade de rotação do que cada um tinha para gastar, a determinada altura não havia trocos.
Na Neriquinha o problema não foi grande; os mais de cem homens que se serviam da cantina, garantiam um fluxo de moedas em quantidade suficiente para as necessidades diárias.
Mas no Rivungo a coisa complicava-se. Esse problema nem me passou pela cabeça quando ali cheguei e fui encarregado da gerência da pequena cantina que servia os cerca de trinta homens ali colocados. Pelo menos até o cabo Almeida vir queixar-se de que não tinha trocos para garantir as demasias. Alguém lhe entregara uma nota de vinte para pagar a cerveja e exigia o troco que não havia. A minha primeira reacção saiu quase sem pensar:
- Oh homem! Vá arranjar troco em qualquer lado!
Mas, de facto, não havia onde ir buscar moedas. O número de utentes da cantina era limitado e não havia bancos ou comércio onde pudéssemos trocar as notas.
No momento, resolvi o assunto emitindo uma pequena nota de dívida que o soldado em causa poderia apresentar a pagamento na próxima compra que fizesse.
É claro que isso só resolveu o problema daquela transacção. Durante o resto do dia e nos que se seguiram, a dificuldade subsistiu e o problema da falta de moedas agravou-se. Resolvi o assunto utilizando uns quantos papelinhos, onde inscrevi o valor das moedas de curso corrente, rabisquei uma rubrica, coloquei uma sinalefa que impedisse a sua multiplicação por contrafacção e assim pus fim à falta de trocos. Na verdade, acabara de criar moeda, uma operação que só o Estado através do Banco de Portugal podia fazer. Mas nunca fui questionado ou admoestado por ter exorbitado competências que não possuía.
Pelos vistos, os serviços administrativos e financeiros em Luanda desconheciam estes problemas. O facto é que o dinheiro mensalmente enviado para pagamento do mísero pré aos praças e dos ordenados aos oficiais e sargentos vinha sempre em cheque. Não havendo por ali bancos onde se pudesse rebater o cheque, o assunto só poderia ser resolvido utilizando a boleia semanal do Nord. Alguém ia ao Luso, trocava o cheque por dinheiro e regressava na semana seguinte com o dinheiro necessário. Mas, com o tempo, o nosso primeiro foi verificando que os magros tostões que compunham o rendimento mensal de cada soldado, mal chegavam para a cerveja, tabaco e alguma outra coisa de que precisasse. De facto, o ordenado recebido era todo gasto na cantina, voltando assim às mãos do sargento.
Não sendo novato naquelas andanças, o primeiro-sargento concluiu que o dinheiro que recebia em cheque para pagar ordenados era, mais coisa menos coisa, equivalente ao valor que tinha de remeter à manutenção militar para liquidação dos produtos vendidos na cantina e esse, mais coisa menos coisa, provinha dos ordenados que pagava.
Assim, quando recebia o cheque, endossava-o reencaminhando-o para a Manutenção Militar e pagava os ordenados com o produto do que se vendia na cantina, gerando assim um ciclo vicioso: as notas que o pessoal gastava voltavam às mãos do Primeiro, que as voltava a usar no pagamento de salários acabando de novo nas mãos do Primeiro, formando uma espécie de corrente que só acabou quando a nossa comissão na Neriquinha chegou ao fim. As notas, essas, foram ficando velhinhas, amachucadas encardidas, flácidas e muito frágeis, quase sem cor.
Por força das feridas e cicatrizes que apresentavam, algumas já eram conhecidas, identificáveis como carta marcada do baralho.
Ainda me recordo de certa nota, com uma mancha avermelhada a um canto, que veio parar à minha mão umas duas ou três vezes.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

PROVAÇÕES

Pode parecer recorrente falar do isolamento da Neriquinha. Mas era um facto de tal forma marcante que ainda hoje recordo com razoável pormenor as vicissitudes das provações que ali passámos. Neriquinha ficava para lá de tudo o que pudesse ser considerado um limite remoto, a autêntica corporização da última fronteira, o fim de tudo. Um sítio que ninguém imaginaria que pudesse ser habitado.
Para ali não confluíam estradas e de facto ninguém estaria interessado em viajar para tão indescritível lugar. Não era destino que justificasse o investimento em meios de comunicação. Ainda hoje, passados quarenta anos, continua tudo como estava; sem estradas, sem acessos e sem interesse.
Naqueles tempos, apenas necessidades de estratégia operacional determinaram a instalação de efectivos militares no meio de um ermo, longe de tudo e de todos, local a que nem o comandante de batalhão parecia interessado em visitar, ele que não perdia uma oportunidade para encenar operacionalidades guerreiras e chatear quem estivesse sob as suas ordens. Não era uma localidade mas apenas umas improvisadas instalações militares ali plantadas por estratégia de ocupação de território onde até os locais só habitavam porque a guerra os empurrara para a parca segurança e conforto que a proximidade da tropa propiciava. Era, enfim, um escasso quadrado delimitado por uma frágil cerca de arame farpado no meio de uma savana imensa, representando uma humilde mostra da soberania portuguesa.
O sítio não fora escolhido por acaso; era uma grande área plana e seca, cujo solo suficientemente consistente e livre de vegetação, permitia a aterragem de meios aéreos de pequeno porte, o que determinou a instalação de um acampamento militar cujas tendas de lona amarela foram, ao longo dos tempos, sendo substituídas por toscos e improvisados barracões, expostos em permanência à torreira do sol africano e ao pó levantado em nuvens vermelhas pelo vento soprando sem barreiras, até que as grandes chuvadas alagassem as redondezas, transformando as planícies em searas de capim e qualquer zona mais baixa em pântanos em resultado da estagnação silenciosa da água que, caindo do céu em torrentes, se via impedida de correr por falta de declives suficientes.
Acabada a guerra e abandonada a área pelos últimos militares portugueses ali destacados, o local ficou ao abandono, a população voltou às suas lavras e tudo o que outrora corporizava instalações militares transformou-se em ruínas integralmente tomadas pela mata, sinal que, de facto, aquele local não era adequado à fixação de seres humanos, já que, até a população local, habituada a viver em qualquer lado, se negou a ficar e nem sequer quis aproveitar o que a tropa deixou que, quer se queira quer não, sempre era mais confortável do que as improvisadas palhotas do kimbo.
Assim, razões de estratégia militar determinaram que ao longo dos anos em que durou a guerra em África, aquele longínquo pedaço das terras-do-fim-do-mundo fosse morada provisória de diversas gerações de militares até chegar a nossa vez. Quase dezanove meses, foi o tempo que por ali andámos, procurando uma difícil adaptação ao nosso novo mundo, numa incessante demanda por qualquer coisa que se assemelhasse ao que deixáramos para trás, meras recordações que ficando cada vez mais difusas, diluídas pela passagem do tempo se esfumavam até quase passarem ao esquecimento, relegadas para os recantos menos utilizados da memória até que algo de muito forte as trouxesse de novo à tona. A simples e corriqueira bica foi uma delas. Ao fim de algum tempo já nem me lembrava que existia.
Cinema, tivemo-lo uma ou duas vezes durante todo aquele tempo. Eram fitas antigas, amputadas pela censura, projectadas na parede exterior da cantina por uma pequena máquina transportada desde o Cuito Cuanavale pelo furriel foto-cine que, aproveitando o avião do correio, tinha por missão, de quando em vez, dar a volta pelas três companhias do batalhão. A sessão começava logo a seguir ao jantar e as bobines tinham de ser passadas antes de chegada a hora de desligar o gerador, cuja capacidade de trabalho não ia além das onze horas da noite.
Cafés, pastelarias, restaurantes e afins eram coisas inexistentes, nem perto nem longe, e por isso não havia para onde ir. Sair para além dos limites do arame farpado significava uma missão qualquer, implicando carregar armamento adequado nem que fosse para o simples acto de recolher lenha na mata para alimentar a cozinha ou aquecer o forno de padeiro.
A cantina era o único local que fazia remotamente lembrar uma tasca na aldeia. Era um barracão escuro, amplo, construído na parte lateral inferior da parada, contendo apenas duas divisões; numa funcionava a cantina propriamente dita onde o cabo Couto ia servindo cervejas, enquanto o pessoal, encostado ao balcão ou disperso por duas ou três mesas quadradas, se entretinha e ocupava as horas de ócio, bebericando ou jogando às cartas. A cantina era o local privilegiado para a jogatina, especialmente porque a cerveja estava ali à mão. Cerveja e tabaco eram os dois artigos mais vendidos. Aliás, em boa verdade, eram os únicos que faziam realmente falta e cujo stock deveria estar sempre bem composto. Penso aliás que havia regras ditadas pelas hierarquias que determinavam que assim fosse. Num sítio daqueles, a falta da cerveja ou tabaco poderia provocar desestabilização e isso teria ser evitado a todo o custo.
Certa vez, por razões que não retenho, o stock de tabaco baixou a níveis críticos; o pouco que havia quando muito daria para dois ou três dias e o MVL com o reabastecimento só estava prevista para daí a duas semanas, mais coisa menos coisa. A solução foi drástica e no dia seguinte um Nord Atlas da Força Aérea deslocou-se de propósito vindo do Luso apenas para nos trazer uma grande caixa cheiinha de tabaco. Não faço a mínima ideia de quanto custou a operação de reposição do stock, mas a verdade é que foi considerada justificada por quem tinha poder para a tomada da decisão.
O estabelecimento tinha ainda à venda umas garrafas de brandy, aguardentes brancas, conservas de atum e de sardinha para os petiscos e ainda fruta enlatada, cuja variedade não ia além do pêssego em metades e ananás às rodelas ou aos bocados. Para além disso, ainda se vendiam uns sabonetes, sabão azul em barra, pasta de dentes, um ou outro artigo que pudesse ser útil e pouco mais.
A outra metade do barracão, um espaço amplo e guardado a sete chaves, era o armazém onde praticamente só havia grades de cerveja; as cheias de um lado e as vazias do outro. Ali estavam empilhadas algumas centenas de grades arrumadas umas sobre as outras quase até rasar o tecto, já que era preciso garantir stock suficiente para um mês de consumo, incluindo o abastecimento a toda a estrutura da PSP e da Marinha sedeadas no Rivungo e kimbos das redondezas.
Incluindo os GE’s, eram perto de 200 pessoas a que ainda se juntava um ou outro elemento da população a quem não se negava uma cerveja. Mesmo descontando os que não bebiam e aqueles que apenas se contentavam com uma ou duas, era muita cerveja. Eu, num dia normal, consumia, no mínimo, meia dúzia, sem contar com os dias especiais em que poderia ir às vinte ou trinta, como aconteceu um par de vezes. E eu não era dos que mais bebia. O Neto, por exemplo, enquanto por ali andou, bateu o recorde do consumo: sempre para cima de vinte, dia após dia.
Enfim, eram muitas garrafas que, juntamente com tudo o mais, eram transportadas mensalmente por MVL desde Serpa Pinto, formando uma extensa coluna de viaturas escoltadas por duas berliets a partir do Cuito Cuanavale, chegando a demorar mais de uma semana por picadas arenosas e irregulares.
A chegada do MVL era sempre uma festa; cerveja fresca, tabaco, a garantia de alimento para mais um mês e o frenesim que se instalava por uns dias eram factores que alteravam as rotinas e trazia animação ao dia-a-dia estupidificante. O pior era descarregar tanto camião e arrumar tudo nos respectivos armazéns. Só para a cerveja eram umas quatro ou cinco MAN’s entaipadas, sem contar com as batatas, a farinha, a massa, o arroz, os enlatados, o combustível e tanta coisa pesada que tinha de ser descarregada e arrumada: E tudo à força de trabalho braçal.
A escala elaborada pelo sargento-de-dia, indicando os homens que teriam de efectuar o trabalho, era sempre motivo para discussões, arrelias e reclamações, já que o tarefa não era propriamente agradável e eram poucos os que se predispunham voluntariamente para o efeito.
Quando me tocava a mim a elaboração dessa escala, preferia arriscar o recurso ao voluntariado. Entrava na caserna onde a maior parte preguiçava e pedia voluntários. Com a promessa de uns chouriços, umas latas de salsichas, umas carcacitas extorquidas ao padeiro e meia dúzia de cervejas, arranjava sempre um grupo em número suficiente.
Enfim, para além da falta de quase tudo, das múltiplas provações e dos espinhos da missão, ainda se exigia trabalho de estivador para se poder usufruir de um pouco de quase nada.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Serviços e serviçais

Tropas, longe da família, precisam de alguém que lhes trate da roupa. Pelo menos naquele tempo era assim e penso que as coisas ainda não mudaram; haverá sempre que encontrar alguém para lavar a roupa, passar a ferro, coser botões, remendar rasgões e cuidar um pouco de tudo aquilo que, até então, era tarefa das mães de mancebos que, de repente, se viam privados desses luxos. E não era preciso procurar por elas. No início de cada recruta, apareciam nas imediações do quartel oferecendo o serviço aos recém-chegados.
Durante a minha recruta, nas Caldas da Rainha, uma velhota que vivia no centro da cidade, tratava-me da roupa e por uns cobres a mais disponibilizava um quarto lá para as águas-furtadas onde, num ou noutro fim-de-semana, pernoitava apenas pelo prazer de fugir daquela sensação de prisão que o quartel transmitia.
Em Tavira, para onde me mudaram acabada a recruta, foi-me recomendada uma senhora que, por um valor que lhe permitia compor o orçamento familiar, de tudo se encarregava, também disponibilizando um quarto onde, aos fins de semana, pernoitava fugindo ao rigor da disciplina do quartel e sem acréscimo de preço. Nunca houve problema com roupa lavada e passada. Bastava deixá-la no quarto que um ou dois dias depois aparecia lavada, engomada, cheirosa e arrumadinha em cima da cama. Só era preciso marcá-la com uma sinalefa qualquer para que não aparecesse misturada com a do camarada do lado. Ainda hoje guardo um lenço de mão, velhinho, muito usado e quase transparente pelo uso, exibindo as duas cruzes vermelhas bordadas num canto a recordar-me esses tempos.
O facto é que a tropa mudou-me para o Algarve, mas não notei grande diferença quer na forma quer no serviço prestado. Apenas uns quantos pormenores os distinguiam, sinal evidente de que onde existissem estruturas militares se instalara uma rede organizada que oferecia serviços a clientes que mudavam de três em três meses.
Quando cheguei aos confins do território angolano, largado como simples desterrado no meio de nada, nem me ocorreu pensar em procurar quem me tratasse das roupas. No Rivungo, onde passei os primeiros três meses da minha longa estada na imensa savana africana, foi sem surpresa que uma mulher, digna representante da etnia Ganguela e com filho ensacado às costas e tudo, me foi indicada pelo moço da messe para, a troco de uma bagatela, me tratar da lavagem da roupa. Sim que quanto a coser botões e tratar dos remendos se encarregaria o Máquina, de forma prestimosa, competente e gratuita. Afinal o homem trabalhava para nós e não se sentia confortável a cobrar extras por tão pouco. Quanto à mulher, apenas sei que esfregava a roupa sobre um bidão tombado numa curva do rio, já que por ali nunca ninguém se lembrou de arranjar um tanque apropriado e pedras não havia.
Quando me mudei para a Neriquinha, passados três meses no Rivungo, rapidamente me apercebi que ali as mulheres não lavavam roupa. Estavam demasiado ocupadas nas suas tarefas de cuidar da lavra, das lides domésticas, de bater o pilão na demorada tarefa de transformar grão em farinha, de colher lenha na mata e transportá-la à cabeça pelos sinuosos carreiros num vai e vem diário, na preparação da parca ração que constituía a alimentação de gente habituada a pouco, no cuidar dos filhos - dos mais pequenos que os crescidotes já cuidavam de si. A verdade é que as mulheres não tinham por hábito ultrapassar a linha do arame farpado que separava o kimbo da área ocupada pela tropa.
Mas não os putos, especialmente os crescidotes, entre os doze e os quinze anos. Na sua maior parte, ocupavam-se em tarefas as mais variadas. Onde houvesse algo em que pudessem ajudar, lá estavam eles, incansáveis, sorridentes, prestáveis, uns mais atrevidos que outros. Faziam tudo o que lhes pediam a troco de uma refeição a horas certas, mais rica do que o pirão com nada, amassado em tachos mal lavados, negros de fumo pelo tempo que passavam sobre um lume avivado à força dos pulmões de quem tinha por missão manter o chama viva, mesmo os mais pequenitos.
Comecei a contá-los: Um ou dois na messe ajudando a servir e transportar os pratos sujos para a cozinha; outros dois ou três na enfermaria ocupados nas limpezas, uns tantos na mecânica, um dos quais, o Vicente, que já quase percebia tanto da função como alguns dos mecânicos encartados; depois mais dois na padaria, uma meia dúzia na cozinha, três ou quatro na horta, mais um aqui outro acolá, enfim, um corrupio de serviçais para tudo o que fosse preciso.
Finalmente, uma chusma deles encarregava-se de tratar da roupa - havia soldados que tinham um puto em exclusivo para lhes tratar de tudo. Estavam dispersos, não se dava por eles, mas todos juntos eram muitos, alegres, vivaços, contentes por terem comida garantida e receberem alguns tostões em troca da prestação de serviços a soldados que a tal nunca tinham sido habituados.
Na camarata dos furriéis havia dois. Faziam as camas, varriam o chão e lavavam a roupa. Sim! Quem nos tratava da roupa eram dois putos imberbes que dividiam entre si os furriéis da companhia: O João a quem de quando em vez o outro chamava de Muhala Cassumbi e o Manjolo que, dada a semelhança fonética, passou simplesmente a ser chamado por Major.
Tratavam com desvelo das nossas roupas, lavando-as nuns tanques lá para os lados do Kimbo e devolvendo-as ao fim da tarde, limpas, impregnadas do perfume fresco do sabão azul e toscamente dobradas. Não vinham passadas a ferro que isso era coisa que ali não havia e, verdade seja dita, tal luxo era totalmente dispensável. Aliás quando volvidos muitos meses saímos daquele exótico lugar para um mais aprazível, até estranhei quando me entregaram a farda lavada, passada a ferro e cuidadosamente dobrada.
Na verdade, naquelas paragens isso era coisa inútil. A roupa sujava-se a ritmo alucinante, apenas importando que fosse lavada amiúde. Tão frequentemente que ao fim de dezoito meses de Cuando Cubango, um dos meus camuflados estava parcialmente transformado em franjas e eram mais os remendos e os pespontos que tecido. E de tudo isso tratava o João, dos dois, o que se encarregava das minhas coisas. Lavava a roupa, punha-a a secar dependurada na cerca de arame farpado que limitava o aquartelamento e quando algo se rasgava ou descosia, munia-se de agulha e linha, sentava-se na borda da cama, e com trejeitos de aprendiz, língua de fora a denotar a concentração e o esforço, remendava tudo, reparava as costuras desfeitas voltando a entregar-me um camuflado de novo pronto para chafurdar na lama das chanas em mais uma andança pela mata, de onde regressava ensebado com a mistura de suor e pó, untado com o molho gorduroso das latas de ração de combate, a exigir uma esfrega prolongada pelas mãos do João.
Um dia, durante uma demorada e extenuante operação lá para os lados do Chiúme, as calças do camuflado cederam totalmente pelas costuras, transformando-as numa espécie de máxi-saia. Regressado ao aquartelamento, comecei a pensar na melhor forma de resolver aquilo. Teria de pegar numa agulha e com paciência e tempo tentar refazer as costuras destruídas. O João levou as calças para lavar e nem me apercebi que, como era hábito, não as entregou ao fim da tarde. Dei com ele, no dia seguinte, de agulha na mão, às voltas com as costuras.
Ainda o interpelei duvidando que fosse capaz de dar conta da tarefa. Descansou-me, com um convincente: - Eu faço.
Nunca mais me preocupei com o assunto, embora aquele fosse, dos dois camuflados que possuía, o que estava em melhores condições. Vinha-o preservando, poupando-o às missões mais desgastantes de forma a chegar ao fim da comissão sem ter de comprar outro.
Quando olhei o camuflado cuidadosamente dobrado em cima da cama, conclui que, afinal o puto tinha dado conta do recado. Desdobrei-o, olhei as costuras e com dificuldade, contive o riso. As costuras estavam de novo unidas e voltavam a ter o aspecto de calças, mas tinham sido remendadas com uns pontos largos, grosseiros, bem visíveis. O João coseu-as como se cose uma saca de serapilheira, com uma total falta de jeito mas denotando uma persistência admirável. Creio que ficou vaidoso por ter sido capaz de tal tarefa.
Com putos assim, quem precisava de mulheres para nos tratar da roupa?