quarta-feira, 19 de maio de 2010

SENTINELAS

Naquelas paragens havia uma importante preocupação diária - a segurança.
A hipótese de um ataque ao aquartelamento não era ficção e não podia nunca ser encarada com leviandade. Aliás, o ideal seria pautar o nosso comportamento considerando como altamente provável a ocorrência de um ataque. Erro seria admitir o contrário, mesmo sabendo que isso não acontecera com as companhias que nos antecederam. E todos levavam isso a sério como ficou demonstrado certa vez, por alturas da visita do segundo comandante do Batalhão, episódio já anteriormente descrito pelo Cabrita.
Assim, era imperioso que uns se encarregassem da segurança dos outros, especialmente enquanto dormiam. Sim, alguém tinha de ficar permanentemente acordado, tarefa que competia, em primeira linha, aos praças de acordo com a escala de serviço. Em segunda linha, ao sargento-de-dia, cuja missão era velar por quase tudo o que se passava no aquartelamento no espaço de 24 horas, incluindo as rondas nocturnas por todos os postos de sentinela procurando garantir que ninguém dormia no posto.
Relativamente ao serviço de sargento-de-dia e considerando que éramos cerca de uma dúzia, a tarefa era mais suave. Doze dias de intervalo entre cada serviço garantiam pelo menos onze noites de sono sem interrupções. Mas no que toca aos praças, a coisa era bem mais penosa.
Ao longo dos quatro lados que definiam o perímetro da cerca de arame farpado que delimitava o local, haviam sido construídos frágeis postos de sentinela empoleirados sobre quatro paus e protegidos por chapa ondulada. Não me recordo de quantos eram. Só sei que garantiam a vigilância em todas as direcções.
Durante o dia, apenas eram escaladas duas sentinelas, uma cobrindo o lado da pista e outra garantindo segurança à parte de trás que confinava com a mata que, por razões de segurança se procurava manter desbastada de forma a garantir uma faixa desmatada de cerca de 100 metros, mais coisa menos coisa, entre limite do arame farpado e a orla da mata.
Durante o dia, o calor intenso transformava em martírio as duas horas de cada quarto de sentinela, fazendo com que alguns procurassem um pouco de sombra no chão por debaixo do posto.
Contudo, à noite era muito mais penoso. O frio no tempo do cacimbo, o desconforto de um homem só no meio da escuridão enquanto outros dormiam e o desejo do conforto de uma enxerga, tornava quase em castigo o trabalho de garantir a segurança dos demais. Ainda para mais, durante a noite, era preciso reforçar a vigilância colocando um homem em cada um dos postos existentes. E como a rendição ocorria a cada duas horas, por cada posto eram necessários homens suficientes para garantir o reforço desde as oito horas da noite até às oito da manhã do dia seguinte. Ou seja, seria necessário a quase totalidade do efectivo de um grupo de combate para assegurar a vigília.
Ora uma companhia apenas tem quatro grupos de combate e como um estava em permanência no destacamento do Rivungo, isso significava que em média cada homem teria de estar de sentinela, à noite, pelo menos de três em três dias.
O pior era quando um dos grupos era destacado para uma das frequentes operações que constituíam a nossa principal missão naquelas bandas, passando dois, três e por vezes quatro dias a deambular pela mata.
Os que ficavam teriam de garantir a segurança, agora mais premente, dada a redução dos efectivos. Feitas as contas, era quase certo que os que ficavam tinham garantido um quarto de sentinela, noite sim, noite sim, pelo menos enquanto durasse a operação.
Numa dessas alturas, competindo a segurança ao meu grupo de combate e tendo eu acabado de afixar a escala de sentinelas que elaborara com muito cuidado, sou interpelado por um dos soldados que, tendo estado de reforço na noite anterior se revoltava ao ver o seu nome de novo na escala para a noite seguinte.
Procurei explicar que, estando quase dois pelotões na mata, isso iria acontecer também no dia seguinte e que o mesmo se passava com os outros. Não havia alternativa, conforme parecia claro de acordo com as listas constantes da folha de papel que exibia.
Mas nada o convencia. Que não podia ser! Alguém estaria de certeza a ser beneficiado e isso só poderia significar que eu tinha qualquer mala-pata contra ele.
Tentei acalmar o homem, expliquei que não, mostrei as escalas anteriores e procurei que percebesse que não havia solução.
Não convencido e com ar nitidamente agastado, virou costas e com um gesto de resignação, desabafou.
- O meu furriel é que sabe ... você é que leu os livros!
E, retirou-se remoendo impropérios, não sei se a mim, se à sua sorte.

sábado, 1 de maio de 2010

O NOSSO PRIMEIRO

Creio que não será difícil imaginar a quantidade de problemas administrativos que uma companhia, ou qualquer outra unidade militar, enfrenta no dia-a-dia. Imagine-se agora essa companhia num teatro de guerra e acrescentem-se as dificuldades inerentes. Condimente-se o bolo com a ausência de vias e meios de comunicação e ao facto de me estar a reportar a um tempo em que o computador era peça de ficção.
Aposto que a grande maioria do pessoal da 3441, incluindo oficiais, sargentos e praças, nunca chegou a aperceber-se plenamente da complexidade e dimensão das minudências de natureza administrativa e financeira que em cada dia tinham de ser resolvidas.
Para tudo havia uma dotação, um limite financeiro, uma verba com a correspondente burocracia plasmada à saciedade nas NEP’s, nos códigos, regulamentos, circulares, ordens e instruções produzidas na retaguarda pelos guerreiros do ar condicionado.
Para tudo havia um impresso, um modelo, um formulário um relatório. E tudo tinha de bater certo, ao centavo, o débito igual ao crédito. Até as munições eram contadas, sendo exigidos relatórios rigorosos a justificar cada bala disparada. Um mundo de burocracia capaz de dar cabo dos nervos e fazer a cabeça em água a qualquer um.
Para dar conta de tudo isso, só os profissionais da tropa, que sabiam decorado de trás para a frente e salteado, todas as regras, todos os prazos e datas-limite. Conheciam os impressos, o número de vias e respectivas cores. Sabiam quando e para onde deviam ser remetidos: era uma exemplar disto para o comando no Cuito Cuanavale, um exemplar daquilo para o comando da Zona Militar Leste, outro para a manutenção militar no Luso, um original de qualquer coisa para o quartel General, a requisição de qualquer peça para o serviço de material. Enfim o paraíso da burocracia.
Eram tarefas com que o Capitão teria de lidar. Ele era o responsável máximo pela ordem e cumprimento daquele mundo de confusão. Só que o nosso pertencia à primeira leva de capitães milicianos, comandantes que o exército recrutou à pressa esgotado que estava o quadro dos formados na academia. O nosso capitão era, assim, um perfeito ignorante (sem ofensa) dessas andanças sobre as quais, quanto muito, teria aprendido umas luzes durante o pouco tempo que levava de tropa. E isso punha-o à mercê do primeiro-sargento que lhe calhasse. Numa companhia, o primeiro-sargento era uma espécie de chefe de secretaria, contabilista, tesoureiro e escriturário-mor, autêntico mangas-de-alpaca que dominava esse mundo de papéis e burocracia. E isso não era muito bom. Os sargentos, profissionais da tropa, não tinham lá muito boa fama. Eram conhecidos na gíria por, chicos. Aliás, chico era todo aquele que, uma vez acabado o serviço militar obrigatório resolvia ficar, continuando agarrado à farda e às exigências da disciplina militar. Dizia-se então que:
- Meteu o chico.
Um chico, naquele tempo, era sempre alguém que trazia colado à pele um acervo de epítetos mais ou menos soezes, ou pelo menos, maledicentes. O chico era um lateiro, um retrógrado boçal, agarrado ao dinheiro, capaz da maior das vilanias por meia dúzia de tostões. Se o rancho não agradava, a culpa era do sargento que, para poder gamar algum, cortava na carne (mais cara) e aumentava a quantidade de massa e feijões (mais baratos).
O chico, naturalmente mal-humorado, fazia exigências só para chatear, para compensar o seu complexo de inferioridade. Por oposição, era um autêntico lambe-botas, excessivamente subserviente perante qualquer um que tivesse patente superior à sua.
O sargento chico era, em suma, alguém que, se não tinha o proveito, da fama não se livrava. Se ficou na tropa era porque se queria encher, enriquecer à custa dos outros. Era como se exibisse um estigma, um rótulo colado à pele que catalogava a classe, embora durante o tempo em que fui militar (três anos e uns mesitos) tenha encontrado muitos que não encaixavam nesta definição.
Imagino assim os temores que o capitão Cabrita terá sentido no princípio da sua espinhosa missão, ao concluir que estaria nas mãos do primeiro-sargento, ainda sem saber se lhe saíra em sorte um dos bons ou dos outros.
Mas o Cabrita devia ter uma estrelinha cintilante que o amparou durante a sua efémera missão de garante do cumprimento das mil e uma normas do injuntivo regulamento militar. Coube-lhe em sorte um dos bons, direi mais, dos melhores.
Não foi preciso muito tempo para todos perceberem que nos saiu na rifa um dos melhores sargentos do exército português. Ao nosso Primeiro, de seu nome Manuel António Pinto, não se aplicava nenhuma das características condenáveis que se costumavam apontar aos chicos:
Desde logo ficara demonstrado que não era lateiro. É certo que não costumava achar que o rancho era sempre bom. Mas comia e não barafustava, talvez porque, lá no íntimo, tivesse consciência que os escassos vinte e dois escudos e meio por dia que o vagomestre dispunha para alimentar cada homem, compunham um magro orçamento que não permitia lautas refeições, Acredito, contudo que, se assim não fosse, o seu profissionalismo não lhe permitiria a veleidade de refilar da qualidade do que lhe punham no prato.
Comia naturalmente do rancho como todos os outros, ocupando um qualquer lugar na mesa corrida da messe de sargentos, em amena cavaqueira com os jovens que na altura integravam o grupo de furriéis da companhia.
Por outro lado e em evidente contradição com a maledicência, era uma pessoa pacífica culta e educada, para além de bem-humorado. Todos o respeitavam, não por temor, ou porque o exigisse. Respeito, merecia-o naturalmente e todos lho reconheciam.
Era um homem maduro, na casa dos quarenta anos, mais ou menos o dobro da idade da maioria dos furriéis que compunham o corpo de sargentos da companhia. Sendo apenas o camarada mais velho e sem querer exagerar, era como se fosse nosso pai, ou se se quiser, um irmão mais velho, bem mais velho.
Sábio, sabedor, ponderado e dotado de bom senso em quantidade generosa, a sua opinião avisada foi, aos poucos, sendo considerada importante, necessária, quase obrigatória.
- Oh meu primeiro! O que me aconselha…?
Perante a pergunta, respondia sempre com voz pausada, carregando nos esses a denunciar a sua origem nas frias terras altas da Guarda.
Se entendia que não deveria aconselhar, recomendava:
- Você é que tem de decidir.
E rematava com o seu sotaque beirão:
- Pense bem que há-de encontrar a resposta.
Passava o dia na secretaria, tratando da papelada, controlando os orçamentos e dali apenas saía para o almoço e no fim do expediente, percorrendo, no seu passo lento e seguro, o caminho de tabuinhas que separava a secretaria da messe. Ao fim do dia, sentava-se junto a nós entrando na conversa e contando estórias antigas. Ria-se com gosto das brejeirices que apimentavam factos passados da sua juventude e partilhava connosco as suas alegrias, pelo menos algumas. Lembro-me do seu indisfarçável contentamento ao divulgar, entusiasmado, após o regresso de férias, que tinha comprado um carro novo. Para ele o modesto Citroën Ami 8 que comprara era um carrinho muito bom, uma maravilha. Ficava assim demonstrada a sua natural e não cultivada modéstia.
Não obstante o Cuando Cubango ser abundante em caça, nunca vi o primeiro-sargento sair para a mata com esse objectivo, muito embora, por uma questão de necessidade se fizessem frequentes incursões de caça. Contudo, fazia questão de integrar um pequeno grupo que, incluindo o capitão, o médico e mais um ou outro, se entretinha, após o jantar e a coberto da noite, a apanhar uns quantos coelhos que habitavam no terreno tangencial à pista no lado norte.
Utilizando um velho Jeep Willis de três velocidades e que consumia cinquenta litros aos cem, percorriam a pista até ao fim, trazendo no regresso quatro ou cinco coelhos que, encadeados pelos faróis, se deixavam apanhar. O petisco que com eles se fazia e a que o primeiro não resistia, era um autêntico regalo para papilas gustativas adormecidas pela comida sensaborona do rancho.
E assim, durante algum tempo, quatro ou cinco coelhos eram diariamente sacrificados, até que, não sei se porque deixou de ter piada, se porque a ninhada se mudou para outras paragens ou se foi simplesmente dizimada, foi dado por findo o entretém.
Quanto ao mais e como é bom de ver, o Primeiro era um homem rigoroso no cumprimento dos seus deveres. Mas não era apenas exigente consigo. Sem que alguém alguma vez o tenha ouvido reclamar ou exigir rigor no comportamento, sabíamos que gostava que todos se comportassem com zelo e lealdade, de acordo com as regras. Disso se apercebeu o furriel das transmissões, que fora designado para gerir a cantina.
Foi demitido dessas funções, simplesmente porque as contas apresentadas, ou não o convenciam ou não estavam de acordo com os procedimentos que ele considerava os correctos. Nunca soube exactamente o que terá feito o furriel para assim ser demitido, já que a lisura profissional do primeiro-sargento Pinto nunca lhe permitiu divulgar. Simplesmente me comunicou que tinha proposto ao capitão que, a partir daquele momento, seria eu a lidar com as coisas da cantina.
Das razões de facto, provavelmente só o capitão teria sido informado. Homem leal, discreto, solidário e íntegro, o capitão podia ter a certeza que se houvesse algo que só a ele devia ser dado conhecimento, mais ninguém o saberia.
Era também um bom coração, um amigo que se preocupava com os sentimentos dos outros. Ainda hoje recordo a forma cuidada que usou para me comunicar o desfecho trágico do acidente que matou o Gonçalves. Demonstrando que a sua perspicácia não se confinava às coisas da secretaria, apercebera-se que a relação de amizade que me unia ao Gonçalves era forte. É claro que sabia sermos conterrâneos mas, ainda assim, saberia que essa não seria a principal razão que nos tornara amigos. Sendo um dos primeiros a ter tido acesso à mensagem que, transmitida via rádio a partir do Rivungo, anunciara a desgraça, aprestou-se, pessoalmente, a comunicar-me, com cuidado mas sem grandes rodeios, que não mais veria o meu amigo e companheiro.
Na altura não medi bem o alcance do gesto. Tomei-o como sendo apenas o mensageiro da desgraça. Só mais tarde me dei conta que isso revelara muito da sua personalidade de ser humano. Preocupado com os sentimentos dos outros, fez questão de me pôr ao corrente do facto antes que a notícia corresse os quatro cantos do aquartelamento como sussurro funesto ameaçando a tranquilidade e os sentimentos de cada um.
É notório. Eu gostava do nosso primeiro. Ainda hoje gosto. É sempre com indisfarçável alegria que o revejo ano após ano por ocasião dos nossos encontros anuais. Comparece sempre que pode, especialmente se o local do encontro não for muito longe. A idade já não lhe permite grandes caminhadas. Mas gostamos de o encontrar de boa saúde. Tenho a certeza que esse é o sentimento de todos.