sexta-feira, 20 de novembro de 2009

O Hipopótamo.

Um dia, pela manhã, o Fulai Monjuto, chefe do Grupo de GE's, as tropas de recrutamento local, aparecu junto à messe e pede para falar com o Capitão Cabrita. O respeito e admiração entre eles era mútuo e depois dos cumprimentos habituais, fez um pedido: vinha pedir que enviasse alguém com ele, ao Rio Kuando, junto à N'Riquinha Velha, para apanhar um hipopótamo que andava a fazer estragos nas lavras que a população ali cultivava e, depois, trazê-lo para o Kimbo para alimentar de carne a aldeia.
Estando eu por ali perto e tendo tomado conhecimento da conversa, quando dei por mim já estava prontíssimo com uma Berliet pronta a arrancar. Rapidamente fizemos o caminho, levando o Fulai, o Comandos como motorista, um ou dois soldados mais e alguns elementos familiares do Fulai, creio. O Furriel vago-mestre Morais, foi requisitado como fotógrafo e aí vamos nós.
Quando chegámos, o espectáculo era quase de circo. Dezenas de pessoas, em alegre algazarra, cantavam, dançavam e discutiam ao mesmo tempo, sendo, para mim, apenas certo que, tudo aquilo, se devia à expectativa de um bom fornecimento de carne e à eliminação do destruidor dos produtos, milho e massango, que ali cultivavam.
Ao longe, numa ilhota, um hipopótamo, incapaz de entrar na água por causa de um ferimento na barriga do tamanho de uma janela e feito, possivelmente, na luta com um parceiro mais ciumento e mais poderoso, andava de um lado para o outro, inquieto, dolorido e desfazendo tudo à sua passagem.
Tinhamos que lhe acabar com o sofrimento e arrastá-lo para a margem. Nas calmas, eu e o Fulai, o único que autorizei a atirar, lá abatemos o bicho que levou mais de 30 ou 40 tiros na cabeça, até cair. Arrastá-lo para a margem foi mais complicado. O cabo do guincho da Berliet dava á justa e foi necessária a ajuda de todos os presentes para facilitar a tarefa, pois o animal pesava uma barbaridade. Colocá-lo na caixa de carga, foi mais fácil: esquartejaram-no com javits (machado artesanal, afiadíssimo) e foi carregado às peças.
No regresso, com o peso do animal e de quanta gente por ali havia, o motor da Berliet não aguentou o excesso de carga e vai de aquecer no meio da picada de areia, debaixo de um sol abrasador. Parámos. Para fugir à barulheira dos cânticos de alegria de meia população da província, tantos eram, optara por vir sentado nos sacos de areia no guarda lamas. Preferia ouvir o barulho do motor do que aquela gritaria de contentamento. Assim, estando mais perto do radiador, cometi uma asneirola de principiante e
desapertei a tampa do radiador com a sola da bota, à falta de um bocado de desperdício ou de mais inteligência. Pôrra!
A porcaria da tampa desliza para o lado e apanhei um banho de água quente e vapor que me lambeu a pele das pernas e da barriga, obrigando-me a andar enfaixado mais de uma semana, até nascer a pele nova. Ainda hoje cá andam as marcas.
O hipo foi comido no Kimbo. A pele do mesmo foi cortada em tiras finas, secas ao sol e ficaram duras como madeira. Usaram-nas para fazer chibatas que serviam para imitar os pingalins. Os dentes, salvo erro, foram parar à mala do Furriel Fielas.

3 comentários:

Pedro Cabrita disse...

Boa reportagem.
Lembro-me bem do episódio.

Uma só nota:
- um dos dentes tenho eu... Ofereceu-mo o Fulai e diz bem quanto à consideração mútua.

Fulai Monjuto era um guerreiro sem igual. Já em tempos lancei a ideia de alguém propor o nome dele para uma qualquer rua em Portugal.
Seria uma breve homenagem para quem deu a vida acreditando em nós, os portugueses...

Não sei que passos são necessários. Mas ainda vou indagar.

Abraço

P. Cabrita

Pedro Cabrita disse...

Deixei-me levar pela empolgante descrição do Gabriel na caça ao hipopótamo e nesta última foto ficámos presos no belo tom torrado, (algo enfaixado, é certo) mas torrado, do caçador e escaparam-me as outras duas figuras que se vêem em fundo.

Sentado numa cadeira junto à messe está o Dango, certamente à espera da hora do almoço, ou a ganhar energias para mais um dia de luta contra os sapatos que lhe espartilhavam os pés.
À direita é possível descortinar o nosso saudoso companheiro Gonçalves, cuja memória se mantém firme e indelével no nosso espírito.

Ainda que sempre o tenha visto como militar aprumado, vejo-o aqui fardado de nº2, o que não era fardamento habitual no aquartelamento.
Estaria preparado para partir, ou estaria de chegada, de licença ou algo parecido?

Nunca será demais reavivar a sua memória e a nossa homenagem.

A troca de correspondência que tive com a mãe do Gonçalves foi das circunstâncias mais dolorosas por que passei na guerra.

Ao Gonçalves ainda e sempre o meu abraço.


P Cabrita

Pedro Cabrita disse...

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