terça-feira, 17 de novembro de 2009

O Dango

O Dango era um miúdo com cerca dois anitos quando, na operação que a nossa Companhia fez ao "Esquadrão", acampamento de guerrilheiros na área onde hoje se identifica a Jamba, foi deixado para trás pelo pai. Na sua fuga, pela chana, á tropa portuguesa, abandonou-o junto à mata.
O Furriel Leitão desceu da Berliet, que eu conduzia em substituição do condutor Gouveia, que adoecera à última hora. O pobre garotito chorava sem parar e, como não se vislumbrasse ninguém nas cercanias, para ali não ficar só, foi, então, entregue a um elemento feminino da população que connosco fazia a viagem de regresso (não me lembro como apareceu junto de nós nem donde viera).
Mamando no peito da sua conterrânea, calou-se e lá seguimos, sendo criado com carinho entre brancos e negros e passando a ser o ai-Jesus da Companhia.
Na hora do regresso à Metrópole, se a memória não me falha, foi entregue em Salazar numa organização religiosa que o acolheu, tendo o Capitão Pedro Cabrita tomado a seu cargo toda a trabalheira necessária para ali ser recebido o Dango. O nosso Dango!

6 comentários:

Egidio Cardoso disse...

Tens a certeza que este era o Dango?
Não será um segundo puto, mais pequenito e de barriga proeminente que adotámos mais tarde e bem mais alegre que o Dango.
Não me lembro do nome, mas devo ter qualquer anotação ou foto sobre ele.
Creio que o Dango era mais crescidito e se bem me lembro, mais triste.

Gabriel Costa disse...

És capaz de ter razão, mas vou verificar. Esta velhice!
Um abraço
Gabriel

Pedro Cabrita disse...

Sim. É provável que este não seja o Dango.
Contudo a história está certa.
O Dango, se ainda for vivo (terá nesta altura 45 anos) deve a vida ao Leitão, o único que o conseguiu vislumbrar entre 150 pares de olhos que viajavam nas viaturas. Excelente visão... e hoje usa óculos, se não estou em erro...
O Dango separou-se da família quando cada um terá fugido para seu lado no momento do ataque. Foram 3 dias à chuva, algum frio nocturno e fome.
Quando foi recolhido tremia que nem vara verde. Pensei mesmo que seria uma daquelas doenças de descontrolo muscular. Lembro-me de, nessa altura, ter pensado: "Mais uma desgraça para enfeitar as guerras da Companhia...".
A viagem durou cerca de sete horas. Ele ficou sentado entre as pernas de uma mulher que ia à minha frente, a qual nos tinha servido de guia, depois de capturada pelos GE's, dando origem à operação (que meteu "modernos T-6" e tudo...).
Durante toda a viagem comeu bolacha de ração de combate que os soldados lhe foram dando. Quando chegámos à N´riquinha nem um tremor para amostra. O problema era mesmo o frio e a fome. Foi um alívio. Por outro lado, nem por mais de dois minutos ele tirou os olhos de mim. Claro; era o artista que berrava as ordens, pelo que era inimigo nº1 e aquele a não perder de vista...
Lembro aqui com alguma emoção que foi a minha mãe que se encarregou de o vestir durante quase todo o tempo em que esteve connosco, confeccionando roupa e comprando-lhe sapatos (que duravam em média 3 semanas...). Durante meses, regularmente em cada mês, lá chegava uma encomenda com as mais variadas peças de roupa que ele esfarrapava em pouco tempo. Há uma foto dele com um calção desses que a minha mãe confeccionou, onde, visto detrás, só há metade do calção... à frente... Vou ver se encontro.

O Dango foi entregue a uma instituição em Salazar, de facto, com uma mala bem fornecida de roupa de crescer, algum dinheiro e algo simbólico que lhe quisemos proporcionar: um B.I. onde o titular recebeu o nome de Dango Cabrita.
Tendo em conta a idade dele e o facto da minha mulher o ter conhecido nas Mabubas... não tive problemas com esta circunstância...

Abraço

P. Cabrita

Gabriel Costa disse...

Caro Cabrita:

Se a foto do Dango não for esta, por favor, substitua-a ou envie-ma para eu o fazer.
Um dia destes, contarei a história dessa viagem para o "Esquadrão", pois fui eu que conduzi, toda a noite, a Berliet que o condutor Gouveia deveria ter conduzido. Fui á frente a abrir caminho, tendo como guia um velho, que seguia sentado nos sacos de areia para protecção no caso do rebentamento de minas, agarrado á grade, no guarda lamas do lado direito. Não falhou o caminho, mesmo debaixo de uma chuva torrencial que não deixava que os faróis alcançassem mais de 10/15 metros. No regresso, de dia, foi impressionante verificar que passara junto de pequenos lagos e me desviara de locais onde, por certo, ficaríamos atascados. Em determinada altura, já no vinda, este velho, mandou parar toda a coluna militar e, desaparecendo momentãneamente, voltou pouco depois com uma panela que deixara pendurada numa árvore anos antes, quando procurava mel.

Egidio Cardoso disse...

Aqui está aprova do que já referi em anteriores histórias. O sentido de orientação daquelas gentes ainda hoje me deixa a pensar.
No meio de uma noite de breu, sem que tivessemoss sequer noção do que estava ao nosso lado nem para onde íamos, o homem conseguiu identificar o sítio exacto, no meio de nada, onde muito tempo antes tinha deixado um tacho.

Pedro Cabrita disse...

Divagando um pouco acerca das nossas memórias.
Relativamente à capacidade de orientação dos naturais daquela região era de facto surpreendente. Mas é preciso não esquecer que aquele era o seu ambiente, onde sempre viveram e conheciam como as palmas das mãos.
Para nós eram árvores e só árvores; mas para eles era uma autêntico mapa onde cada pormenor tinha um significado que ficava registado como fotografia.

Se a minha memória não me falha, a recolha da tal panela pelo guia que conduziu o Gabriel nas berliett's às nascentes do rio onde nos encontrávamos foi efectuada na ida, ou seja, de dia, uma vez que nos recolheram já perto do entardecer. O Gabriel recordar-se-á melhor desse pormenor. Mas, mesmo que tenha sido na vinda, dado que percorremos o mesmo trilho deixado na ida (um trilho novo, porque não existia nenhum até àquela altura) ele terá referenciado a árvore na ida, para na volta fazer a recolha, e assim não andar com a panela para lá e para cá. Já não estou bem ciente desse pormenor.

Mas sem dúvida que, independentemente de se movimentarem no seu habitat, tinham uma capacidade de orientação extraordinária.
Mas, embora o exemplo possa não ser muito apropriado, imagine o Egídio que eu lhe vendava os olhos, metia-o no carro, dava 5 voltas a Lisboa e por fim deixava-o num qualquer ponto da cidade, onde tirava a venda. Sendo um local já conhecido anteriormente, ser-lhe-ia relativamente fácil situar-se quase de imediato.
É que aquela gente habitava aquela zona antes da guerra e tinha pontos de referência que para nós passam despercebidos mas para eles são fundamentais.

Depois os cheiros.
Da água, por exemplo.
Nessa operação, a partir de determinada altura, quando me apercebi que a escala do mapa estava errada (eram mapas toscos copiados de fotografia aérea; no caso havia um "pequeno" erro de 10Km), andámos mais de duas horas orientados pelo autêntico faro do Fulai, relativamente à água do rio que era suposto encontrarmos para nos reabastecermos e segui-lo.
"Água estar perto mê captão. Eu cheira água!"
E estava... A mais de uma hora de marcha... mas estava...

A recolha dessa operação foi, na verdade, uma epopeia.
Já nem me lembro quantas horas levaram só para nos encontrarem.
O Gabriel prometeu falar dela.
Eu vou vasculhar o meu livro e retirar trechos da mesma.
Depois o Gabriel contará a perspectiva vista do outro lado; ou seja, do lado dos que nos vinham recolher, enquanto nós, desesperadamente, os esperávamos meio mortos de cansaço e algum desespero.

Vamos nessa.
Pode ser interessante entretecer essas duas perspectivas, observadas de ângulos diferentes.

Já agora, não me recordo. O Egídio participou nessa operação?

P. Cabrita