terça-feira, 3 de novembro de 2009

Golpe de Estado na Zâmbia.

Sem aviso, o comandante aterrou um dia na N´riquinha dirigindo-se de imediato ao Alferes Fausto, que comandava a Companhia naquela altura. Eu estava de férias.
Sem mais delongas e prescindindo das honrarias militares da praxe – o que não deixava de ser surpreendente no nosso comandante, a par de não avisar que iria chegar – pegou no alferes pelo braço e levou-o de imediato para o meu quarto vazio, o local mais recatado e isolado de hipotéticos ouvidos furtivos que se podia descortinar por ali e para aquelas circunstâncias que se adivinhavam de enorme transcendência.
O Fausto viria a contar-me mais tarde que nem se lembra de ter pensado em nada de concreto que se configurasse com tamanho aparato e secretismo. Tão embasbacado ficou que se limitou a ser autenticamente levado pelo comandante e a encostar-se à parede, depois deste o ter mandado fechar a porta de entrada e a do meu quarto, e ter verificado que não havia mais ninguém por perto.
De dedo em riste apontado ao atónito Fausto disse por fim com ar solene:
- A partir deste momento esta Companhia está envolvida num golpe de estado na Zâmbia!
O pobre Fausto ainda terá franzido um sobrolho... ou mesmo os dois, embora sem conseguir balbuciar palavra. O comandante também nem permitia que falasse. Em três tempos tecia o cenário político que se conhecia, que era o do apoio que o regime vigente na Zâmbia dava à guerrilha que combatia em Angola. A PIDE conseguira, no entanto, penetrar na sociedade política da Zâmbia e, em resumo, disponibilizara-se para apoiar a oposição num golpe de estado que invertesse o sentido político do regime. Ou seja, apoiar a criação de um novo governo que deixasse de apoiar a guerrilha.
Todo o apoio seria dado aos conspiradores e a nós era cometida uma missão específica. Caso as coisas dessem para o torto e os intervenientes no golpe tivessem que fugir, era pela nossa zona que entrariam em território angolano, sendo recebidos e protegidos por nós. O golpe estava iminente e o que era necessário era preparar desde já uma operação que patrulhasse a fronteira (mais de duzentos quilómetros...). Havia até uma senha que os conspiradores teriam que nos exibir, caso os viéssemos a encontrar:
- “ I come to see the moon!”.
Tratava-se duma frase que os identificava como tal e obteria da nossa parte toda a protecção por terra, mar e ar. O mar ali era representado pelo rio.
Tão rápido quanto chegou, o comandante partiu deixando o Fausto sem saber o que fazer naquela enorme confusão e trapalhada. Eu chegaria poucos dias depois, no meio de um enorme alvoroço e nervosismo, onde ninguém conseguia prever as consequências daquela aventura desesperada de interferir na alteração da ordem política de um país estrangeiro. Lembrar que estávamos a cerca de 20 Km da fronteira, isolados e distantes de quaisquer apoios aéreos ou terrestres.
O PAO (Plano de Actividade Operacional) foi alterado por completo e durante quinze dias outra coisa não fizemos que patrulhar a zona fronteiriça abaixo e acima, incidindo os patrulhamentos nas zonas que entendíamos como as mais prováveis para a entrada dos golpistas. O esforço operacional já era enorme e só nos faltava mais aquela aventura de efeitos pouco previsíveis para nos enfeitar os dias de sofrimento e sacrifício que levávamos. Naqueles dias de tensão eu imaginava todos os quadros possíveis. Se de facto entrassem viriam certamente perseguidos e era connosco que os perseguidores se teriam de confrontar. Um confronto com a guerrilha tinha as consequências previsíveis mais ou menos conhecidas. Um embate com tropa regular de outro país, por certo enquadrada de forma mais organizada e apoiada por meios aéreos, era um cenário que nos inquietava e dificultava mais ainda o sono nas noites mal dormidas à beira do rio Cuando, onde se acoitavam milhões de mosquitos que nos atacavam todas as noites, bem antes dos militares zambianos.
Naquele panorama esperava-se que o golpe, a ter lugar, soasse e Luanda soubesse como correriam as coisas. Nesse sentido, esperava-se que, no caso de falha, e a perspectiva de acolhimento ganhasse forma, tivéssemos também nós um reforço de segurança para o previsível embate que pudesse ocorrer. Esta esperança não colhia, no entanto, grandes confortos de alma. O isolamento da região e a distância dos meios de apoio aéreo faziam pensar que, no caso de necessidade, era muito provável que ficássemos a perder no confronto e entregues a nós próprios. Qualquer apoio terrestre nunca chegaria menos de vinte horas depois de ser solicitado. Tempo mais que suficiente para termos pouco que contar quando este chegasse. O apoio aéreo, sem bases de reabastecimento próximas, mal chegassem do Luso ou Gago Coutinho, ficariam alguns minutos e regressariam apenas com o combustível necessário para voltar à base.
E foi no meio deste turbilhão de pensamentos que vogámos durante aqueles quinze dias abaixo e acima perscrutando o rio, no desejo obstinado de o ver correr límpido e imperturbável, sem golpistas aflitos em busca de salvaguarda e de melhores dias para "to see the moon..."
Aos vinte dias o panorama desanuviou um pouco. Fomos mandados recolher, embora ficando em alerta, o que nos deu algum tempo de repouso. Como tínhamos que ficar vigilantes o PAO foi interrompido, permitindo algum tempo para respirar fundo. O golpe não chegou a ser desencadeado porque os revoltosos não encontraram os apoios necessários e suficientes à sua consumação, para grande desespero do regime e da PIDE, que tinham investido grandes esperanças naquela arremetida. Para nós um alívio e o retorno à rotina das nossas guerras internas que já nos bastavam para preencher os ideais e ambições de sobrevivência, que alimentávamos desde o primeiro dia.
Tudo não passou de um susto e de mais uma aventura política desesperada do regime, que procurava apoiar todas as acções e medidas que lhe permitissem acalentar algumas crenças de sobrevivência naquela guerra absurda e sem perspectivas de vitória à vista.

(Excerto do livro "Capitães do Vento" Editora Roma-Editores)

P.C.

3 comentários:

Egidio Cardoso disse...

Lá está um dos segredos operacionais que desconhecia.
Lembro-me de ter andado em patrulhamentos nas imediações do Rio Cuando e tenho ainda uma vaga ideia de, em certa altura, serem mais frequentes do que o costume.
Não sabia era que se enquadravam numa operação de boas vindas.
Por mim, na minha inocente ignorância, garanto que se visse alguém vindo do lado da fronteira com uma arma na mão, fugido ou não, levava chumbo de certeza.
Na verdade nunca tinha ouvido dizer que alguém viria "to see the moon" do ladao de cá, especialmente porque a dita também era visível do lado de lá.
As coisas que o nosso comandante engendrava!...

EC

Pedro Cabrita disse...

Como deve imaginar este assunto era demasiado melindroso.
Havia mesmo ordens expressas para manter todo o secretismo possível sobre o assunto. Tratava-se "apenas" de colaborar num golpe de estado num pais soberano.

O alferes Fausto teve conhecimento da situação apenas porque eu estava de férias. E ficou-se obrigado a não o comunicar a ninguém até eu chegar.
Posteriormente só os alferes que participavam nas operações tinham conhecimento da situação, embora tivesse consciência que entre eles a coisa fosse segredada.

Quanto ao encontro, a ter acontecido, não haveria problema porque, não só viriam desarmados e muito provavelmente trajando civilmente (embora isso não fosse garantido),como se apresentariam de peito aberto, porque sabiam que nós estávamos lá para os proteger.

A acção durou cerca de 15 dias, com os grupos a renderem-se uns aos outros. Só parámos quando a PIDE comunicou que o golpe tinha sido abortado.
Mesmo assim mantivemos alguma expectativa porque continuou a admitir-se que os golpistas pudessem ser identificados e sentissem necessidade de fugir.

Enfim.
Peripécias ainda escondidas no baú dos "segredos de estado"...
Pode ser que me vá lembrando de outras.

PC

Pedro Cabrita disse...

Em tempo...
Esqueci-me de agradecer as fotos que o Cardoso colocou no meu post.
Fica mais ilustrado assim.

Obrigado.

PC