quarta-feira, 18 de junho de 2008

DE ÉVORA A SANTA MARGARIDA

O calor tórrido daquele verão alentejano, tornava penoso cada dia daqueles longos três meses de instrução, derretendo esforços, calcinando tudo e imprimindo um efeito retardador no tempo, à medida que paulatinamente iam sendo cimentadas amizades, conhecimentos e afinidades, primeiro passo para uma convivência de proximidade que comandaria, nos próximos dois anos e tal, a vivência deste punhado de homens recém-reunido.
Arrastava-se o tempo preenchido com frequentes marchas, corridas e exercícios vários, cumpridos a contra gosto, sob um sol sufocante e impiedoso, normal neste recanto lusíada, mas parecendo mais severo do que seria de esperar, percebendo-se o seu efeito no dia-a-dia de quem quer que por ali viva ou esteja de passagem, impondo de forma enfática uma drástica desaceleração de todo e qualquer movimento, secando tudo num afã impiedoso, com excepção do copioso suor dos corpos em permanente processo de desidratação. Se efectivamente África era tão quente e soalheira como constava dos compêndios de geografia, este era o melhor local para uma adequada adaptação, se é que isso alguma vez fora previsto nos gizados planos de instrução militar.
Foi ali, debaixo da inclemência do sol alentejano que a arte da guerra foi sendo ensinada em ritmo acelerado com transmissão de conhecimentos em catadupa, sob a forma de técnicas, práticas, procedimentos e toda uma panóplia de esquemas, tácticas, métodos evasivos, de defesa e ataque, num esgotante plano de instrução, repetido vezes sem conta a grupos formados em “U” ocupando cada um dos cantinhos menos castigados pelos implacáveis raios solares, numa tentativa nem sempre conseguida de transmitir a uns conhecimentos há pouco adquiridos por outros.
A liberdade chegava a conta gotas em cada fim de dia (para quem não estava de serviço) e com ela a oportunidade de, na tasca mais à mão ou numa esplanada da Praça do Giraldo, re-hidratar o corpo com meia dúzia de imperiais e regalar os olhos nas roliças moçoilas passantes, autênticos colírios para a vista de tropas que, num pavloviano salivar, sofriam com o jejum ditado pela distância das respectivas amadas deixadas em sossego (ou talvez não) na santa terrinha.
Com o fim da instrução, companhia formada, seguiu-se a derradeira etapa que finalmente nos tornaria aptos para o que desse e viesse na luta, que se queria feroz e sem tréguas, contra um inimigo distante e desconhecido. Designada por IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional) era destinada apenas a militares em vias de embarque para terras do ultramar, decorrendo esta espécie de ensaio geral no campo militar de Santa Margarida (perto de Abrantes) para onde havíamos sido transferidos numa autêntica demonstração de eficiência da logística de transportes.
Aqui, o efectivo foi engrossado com os especialistas vindos dos quatro cantos do território, também estes formados com a mesma rapidez e eficiência, em enfermeiros, mecânicos, vagomestres, cozinheiros, padeiros, radiotelegrafistas e técnicos de transmissões, já que, carpinteiros, pedreiros, barbeiros, pintores, electricistas, escriturários e contabilistas, homens honestos e alguns aldrabões, sisudos e foliões, esses compunham, mais uns do que outros, os cerca de 160 homens, metidos nesta aventura à força. Enfim, um conjunto de artífices que tornariam a 3441 auto-suficiente, no que toca às habilidades humanas que formam uma sociedade, verdadeira micro comunidade pronta a povoar qualquer deserto onde fosse largada, mas que ainda não tomara consciência do que a esperava.
Neste incaracterístico local de passagem efémera a caminho da guerra, plantado de barracões a fazer lembrar acampamentos militares exibidos em múltiplos filmes de acção, receberam-se as últimas dicas e executaram-se novos exercícios, desde acções na mata, a assaltos encenados com emboscadas e emboscados, uns fazendo de NT (nossas tropas) e outros de IN (o inimigo) exercitando e praticando o salto de viatura em andamento que, pelo menos para mim, acabava sempre com um joelho, uma perna ou outra parte do corpo ensanguentada, esfacelada ou pelo menos sem parte da pele, já que o solo não era relvado e os seixos abundavam, em resultado do permanente rodar, resvalar e derrapar dos Unimogs utilizados.
A sessão terminava com o salto do helicóptero que, para o efeito, pairava a alguns metros do solo, obrigando-nos a uma autêntica simulação de lançamento de tropas heli-transportadas para o assalto ao “objectivo”.
Completadas estas derradeiras semanas de exercício intenso entremeadas por idas ao enfermeiro que, de cada vez, nos perfurava a pele, injectando antídotos que nos dariam (deram) a resistência possível à chusma de maleitas e doenças tropicais a que ficaríamos expostos, com particular referência para a que nos imunizaria contra as picadas da mosca tsé-tsé, primeira pista objectiva relativamente ao local do território angolano onde seríamos largados, mas ainda não divulgado (a mosca tsé-tsé só enxameia certas partes do território). Aliás, só após a chegada a Luanda, seríamos informados do local que nos esperava, um recanto remoto do sueste angolano, muito a propósito apelidado de Terras-do-Fim-do-Mundo. Diziam alguns que tal sigilo era para nos proteger. Não sabendo pormenores, o inimigo estaria impossibilitado de armar uma qualquer emboscada aos "maçaricos" que chegavam. Se calhar era mesmo por isso. Durante o tempo que por ali vagueou, a 3441 nunca sofreu um desses ataques, contra os quais ensaiara, vezes sem conta, as técnicas reactivas.
Preparados para o que desse e viesse, chegou finalmente a tão esperada e prometida benesse final, para muitos a primeira oportunidade de voltar à terra após a incorporação. O direito a gozar dez dias de férias junto da família, incluía o pagamento do transporte para o local de naturalidade, quer fosse de comboio, camioneta, barco ou avião, tudo a expensas do exército.
O dia da partida chegou e com ele um verdadeiro reboliço nas casernas e camaratas, ocupando cada um num afã de arrumar malas e sacos, encafuando da melhor forma os parcos pertences de homens pouco habituados a tratar de roupas e demais preparos de viagem, tarefa que começava a tornar-se um hábito, acontecendo sempre que se mudava de local.
- Já me cheira a palha!
Gritava o Braga no meio da confusão, numa alusão aos apalpanços com que presentearia a namorada mal a tivesse a jeito.
Na camarata dos sargentos, a confusão não era menor. Apenas ligeiramente diferente, porque sempre havia mais peças de vestuário. Os praças não podiam nunca trajar à civil. Os sargentos e oficiais sim, quando não estavam em serviço.
- Vou apanhar o comboio das duas e com um bocado de sorte estarei amanhã em casa antes do almoço.
Anunciou o Silva.
- Se não houver problema nas ligações no Entroncamento e em Campanhã.
Emendou, sem querer lamentar-se por não viver mais perto.
- Cá por mim … penso estar em casa dentro de três horitas.
Retorquiu o Ramirez, confiante na capacidade e potência do seu Fiat 6oo, carinhosamente arrumado no parque destinado aos mais abastados e com o qual previa vencer os quilómetros que nos separavam de Lisboa.
Alguém alvitrou que umas cervejolas, ajudariam a encurtar o tempo e a distância.
- Cerveja, não sei … mas tenho ali uma garrafita de Brandy que pode dar uma ajuda.
Disse o Silva, numa clara atitude de concordância com a solução alcoólica para minimizar o efeito temporal do obstáculo.
- O ideal, é beberes a garrafa toda de uma vez.
Desafiou o Duarte em tom provocatório, no intervalo de duas chupadelas, naquele seu trejeito beijoqueiro com que sofregamente atacava a boquilha do cigarro que cuidava de manter sempre aceso.
- Se pensas que não sou capaz, estás muito enganado.
Respondeu em tom de desafio.
E, num crescendo estúpido de … não és capaz … sou pois … queres apostar, a teima foi arrematada. O Silva beberia a garrafa de Brandy, de uma assentada, sem nada em troca, apenas pelo desafio, naquela recorrente tendência da juventude de não medir as consequências de palavras e actos impensados.
Desenroscou a tampa, levou a garrafa à boca e sem a mínima hesitação engoliu todo o líquido, num glu glu ritmado, até não restar gota.
- Vês, como fui capaz! Vangloriou-se da façanha.
A aparente lucidez exibida, cessou de repente. O corpo atarracado do Silva foi repentinamente acometido de um frenesim louco. Atirava-se contra tudo o que o rodeava, cabeceava violentamente paredes e armários, ao mesmo tempo que soltava gritos roucos de autêntica demência. A loucura acabou em pouco mais de dois minutos, com um par de cabeçadas no velho e frágil roupeiro que compunha a escassa mobília da camarata, destruindo-o parcialmente. Caiu desamparado no chão e não mais se mexeu, em evidente coma alcoólico.
Fez-se um breve silêncio de imediato quebrado por alguém que exclamou:
- Não há problema! … respira!
Numa altura em que todos aguardavam ansiosamente o transporte que nos levaria ao comboio, gerou-se uma certa apreensão.
- E agora?
Diz o ditado que "ao menino e ao borracho, põe sempre Deus a mão por baixo”. No caso do Silva, valeu-lhe o facto de existir um pequeno grupo de praças que, residindo para os mesmos lados, já tinham mais ou menos combinado fazer a viagem em conjunto. Um segurou-o pelos sovacos, outro pelas pernas, os restantes carregaram os pertences e assim o levaram inanimado. Contaram-nos depois, já em pleno alto mar, que o Silva dormiu o caminho todo e nem acordou quando o comboio parou na derradeira estação. Quanto ao efeito … foi drástico. Penso que nunca mais ninguém o viu beber uma só gota de álcool. Deve ter sido o único da companhia que nunca se embebedou durante os dois longos anos em que nos mantivemos juntos por terras de além-mar.

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