Após o fim da instrução e uma vez graduados no posto de Cabo Miliciano, espécie de limbo na hierarquia militar, inventado pelos estrategas de então para justificar o pagamento de um “pré” miserável a um sargento, vinha a colocação numa unidade o mais distante possível dos locais cuja preferência dávamos a conhecer, de forma criteriosa, por inscrição em impresso devidamente homologado.
Sendo natural da Madeira, inscrevi em primeiro e segundo lugares, unidades instaladas nas cidades do Funchal e Lisboa, colocando Caldas da Rainha em terceiro lugar, apenas porque, para além de já conhecer o local – fiz ali a recruta ‑ tinha a vantagem de, estando perto de Lisboa, poder usufruir da oportunidade para, aproveitando folgas, ir fazendo umas cadeiras do curso abruptamente interrompido.
Sem surpresa, fui colocado no RI-16 em Évora e destacado para Caçadores 6 na longínqua e então, para mim, desconhecida cidade de Castelo Branco, constituindo um sinal de que a mobilização para África era certa e iminente. É que, a colocação em locais tão díspares dos escolhidos, por regra o mais longe possível, assegurava o corte com os elos familiares e de amizade que compõem os afectos próprios do ser humano, constituindo como um primeiro tirocínio de habituação à longa ausência que se avizinhava.
Para já, no BC-6, foi o primeiro impacto com uma realidade diferente, o que significa a passagem da condição de cumpridor de ordens, muitas vezes ditadas por quem nem sequer sabia da arte de mandar, para uma outra, em que, mutatis mutandis, se fazia exactamente aquilo que antes, em surdina se condenava, num quase exercício de imitação, impondo a homens recém-chegados a esta etapa da vida dos jovens de então, um conjunto de ordens e contra ordens, regras, estratégias e afins, entremeadas com exercícios físicos diários, mandados executar sem consciência das capacidades do corpo humano ou do malefício que daí poderia resultar para a integridade física de cada um.
É que, pelo menos naquele tempo, era entendido que seis meses era tempo mais do que suficiente para transformar gente recém saída da adolescência em militares graduados, colocando-lhes sobre os ombros uma responsabilidade do tamanho do mundo, sem que disso, sequer, se apercebessem.
E foi assim, que os novos recrutas daquela unidade serviram na perfeição como cobaias para testar a minha capacidade de ensinar a recém-adquirida panóplia de conhecimentos, técnicas e minudências da arte de uma guerra onde nunca tinha estado, devidamente condimentadas com as qualidades de comando necessárias ao bom desempenho da missão de mandar.
A já esperada notícia chegou, comunicada de forma peculiar pelo Cabo Miliciano Leitão, então colocado no aconchego da secretaria da unidade, a quem os quase 18 meses que já levava de tropa o colocavam entre os “velhinhos” que tinham vindo a escapar de uma mobilização para África.
- Foste mobilizado!
Gritou de longe, esbracejando na minha direcção.
- Quem? Eu?
Retorqui com idiota e redundante pergunta.
Sim! E eu também. Vamos na mesma companhia … para Angola!
E continuou, no típico desabafo que caracterizava o linguajar da tropa.
- F…., lixaram-me! Estou quase a ser promovido a Furriel e já não esperava bater com os costados em África.
Com efeito, pelo menos até então, era quase certo livrar-se de um passeio pelo ultramar, se a mobilização não chegasse antes de completados 18 meses de vida militar, altura em que, finalmente, eram substituídas as divisas de Cabo Miliciano, pelas de Furriel. No caso do Leitão, apanharam-no no limite. Mais umas semanitas e com a promoção talvez conseguisse escapar.
Na semana seguinte, munidos da guia de marcha e necessária requisição de transporte, rumámos à nossa unidade de origem. O Leitão, aproveitando ao máximo a proximidade da terra, saiu no dia seguinte. Eu, aproveitei a borla do comboio e meti-me ao caminho na companhia de uns quantos soldados com o mesmo destino, uma boa parte dos quais, naturais de Cabo Verde, integrando um contingente de novos recursos, em cumprimento de uma nova ideia do regime – Incorporar nas fileiras, naturais de uma colónia que passou de receptora a fornecedora de contingentes militares. Esta nova ideia gerou entre os Cabo-verdianos um sentimento de revolta, com algumas consequências desagradáveis, que vieram dar algum sal e animação à estada no Regimento de Infantaria de Évora.
E ali nos juntámos todos, reunidos para “formar companhia”, prontos para conhecer aqueles que passariam a ser, nos dois anos em que andaríamos por terras longínquas, superiores e subalternos, amigos e companheiros, uns mandando, outros obedecendo e alguns refilando, confinados a alguns metros quadrados delimitados por uma frágil cerca de arame farpado, numa vivência diária cujos contornos, na verdade, ninguém conhecia ou fazia a mínima ideia do que seria. A mim, nem me ocorreu pensar nisso. Quanto ao Leitão, como prémio e recepção de boas vindas, foi informado que, no dia seguinte, estaria de sargento-de-dia.
Sem comentários:
Enviar um comentário