Acordei estremunhado, com a desagradável sensação de que acabara de adormecer. O vozeirão do Silva serviu de despertador e o Alferes exigia o cumprimento dos horários militares. Saltei da cama. Era necessário içar a bandeira e o corneteiro Rogério já estava a postos. A bandeira lá subiu ao poste plantado no canteiro em frente, devagar, como mandam as regras, ao som roufenho da corneta, que o Rogério não era músico e como todos ali, também ele aprendera a sua especialidade em tempo recorde. Creio que foi a primeira e última vez que a solenidade do acto foi cumprida ao som da corneta. O alferes Fausto era homem exigente, disciplinador e cumpridor das regras, mas o seu bom senso sobrepunha-se a tudo. A partir daí, não obstante a bandeira tenha sido içada todos os dias, o acto foi sempre cumprido silenciosamente por quem estivesse à mão, respeitando o horário mas sem aquele rigor austero que caracterizava o formalismo.
A verdade é que a bandeira nacional subiu sempre ao poste, a horas adequadas e nunca lá ficou para além do pôr-do-sol. A corneta, essa, foi doravante deixada em descanso.
O pequeno-almoço estava na mesa. Um cântaro de café, pão e uma fatia de goiabada - compota de goiaba semelhante à marmelada - tudo servido silenciosamente pelo moço da messe, um negrinho local armado em serviçal que herdáramos da companhia anterior e que tinha também a seu cargo o arrumo dos quartos, a lavagem da roupa, a limpeza do espaço e ainda garantir que o bidão da casa de banho estivesse sempre cheio de água que recolhia de um remanso do rio Cuando localizado nas traseiras. Como paga, recebia de cada um de nós uma importância em dinheiro, cujo montante não recordo, usufruindo ainda de refeições gratuitas. Enfim, um luxo, como se costumava dizer. Para ele, a comida era um autêntico manjar quando comparada com o que tinha disponível na cubata que habitava. Quanto ao dinheiro, servia para muito pouco. A lojeca, à beira da picada, na entrada da localidade, propriedade de um velhote já em fim de estação, vendia uns panos e algumas tralhas apenas úteis à população local, mas sem interesse para os miúdos, o que significa que não havia onde gastar o dinheiro.
Não obstante a noite mal dormida e a devastadora jornada dos dias anteriores, os deveres militares e as tarefas do dia a dia obrigaram a um lançar urgente de mãos à obra. Não estávamos ali de férias e a missão de um exército em tempo de guerra tinha as suas exigências. Havia que fazer o reconhecimento do local, definir estratégias, distribuir tarefas e assegurar a preparação do almoço. Por outro lado, a cantina tinha de ser aberta, já que a cerveja e o cigarro eram quase tão importantes como a comida ou a água. Para quase tudo, o alferes Fausto demonstrou que ele era o comandante e não deixou os seus préstimos por mãos alheias. Nomeei o cabo Almeida responsável pela cantina, dei instruções sobre os preços a praticar com base na listagem passada pelos velhinhos, definiram-se as horas em que estaria aberta e assim se iniciou uma nova etapa das nossas vidas, recheada de novidades e sujeita a muitos improvisos, adaptações e ajustamentos frequentes.
A curiosidade em explorar o local sobrepôs-se ao cansaço e à necessidade de dormir, lançando-me decididamente ao reconhecimento das instalações e arredores. O edifício, construído sobre o comprido, incluía, para além da messe, com os seus quatro pequenos quartos (um autêntico luxo naquelas paragens) a cantina, no topo norte, constituída por um pequeno alpendre dotado de um improvisado balcão e a enfermaria, uma divisão estreita, equipada com três camas, uma das quais, a do próprio enfermeiro e outras duas, em beliche, para os doentes que exigissem vigilância mais apertada.
A caserna dos praças e o refeitório, constituindo uma estrutura mais baixa, rematava o edifício, denunciando uma construção posterior encostada ao corpo principal. Separada deste bloco, uma pequena construção, mais recente, albergava o posto de transmissões, onde o Vilela, cabo radiotelegrafista, transmitia e recebia mensagens, utilizando com mestria o velho sistema Morse. Este equipamento era a nossa única ligação com a Neriquinha e com o mundo exterior. Por ali se recebiam ordens e notícias e por ali se pediam instruções e ajuda, se fosse o caso. Na verdade era o único elo de ligação rápido com tudo aquilo que ultrapassasse o perímetro da povoação. Finalmente, um pequeno paiol guardava diversos tipos de granadas e vários cunhetes de munições.
A curiosidade espicaçada pelo aviso feito na noite anterior relativamente ao perigo de queda ao rio, levou-me às traseiras. Afinal, havia alguma razão para tal recomendação, se bem que, exagerada. A cozinha ficava a poucos metros do barranco que caía abruptamente sobre uma espécie de mini praia que se formava na borda de um pequeno lago de águas quietas, ali deixadas em sossego pelo caudal do Cuando, na sua passagem serpenteante por entre os caniçais da chana de alguns quilómetros de largura, terra de ninguém que definia a fronteira entre o território angolano e a Zâmbia, na outra margem. Apenas à noite, se divisava, muito ao longe, umas trémulas luzinhas da pequena povoação zambiana (Shangombo), que se pressupunha albergar o inimigo. A cozinha parecia ser o que restava de algo que, algures no passado, tinha sido improvisado para desenrascar umas refeições, como que a atestar que os arquitectos (militares?) que gizaram o edifício, se esqueceram de a incluir no projecto. Uns paus ao alto, arrumados contra a parede traseira das instalações, suportavam as folhas de zinco que cobriam o espaço, protegendo-o do sol e da chuva. Um murete de suporte aos tachos e panelas permitia enfiar a lenha por debaixo, único material de queima disponível e abundante na mata próxima. Ao lado, um pequeno forno artesanal, explicava o pão que comera ao pequeno-almoço, se bem que não tenha percebido quem o preparou, já que o Lourenço era cozinheiro de fracos recursos e da arte da panificação não percebia mesmo nada.
Não foi preciso sair dali para conhecer as forças vivas que constituíam aquela micro sociedade. Aos poucos, foram chegando para as apresentações: o Administrador, o chefe da PSP, os dois agentes da Pide DGS, o pessoal da marinha e o Camassango. Não levei muito tempo a perceber a importância do bom relacionamento entre estes representantes daquela comunidade e da prontidão com que se apresentaram. O local era pequeno e todos constituíam uma família sui generis, no seio da qual se criaram e desenvolveram amizades verdadeiramente importantes para mitigar o isolamento e compensar a ausência dos amigos e entes queridos. Por outro lado, a união faz a força e todos juntos valiam mais do que cada um de per si.
O primeiro a chegar foi o Administrador do Rivungo, uma figura que faria as delícias de qualquer caricaturista. Magro, talvez de mais, usando uma farda cor de caqui, calça apertada, realçando os genitais, justa pelos artelhos, alongando o sapato e salientando ainda mais a magreza. Pele tisnada pela exposição ao sol, mais escuro que um mulato, embora os traços fisionómicos não confirmassem a miscigenação de raças. Idade indefinida, talvez rondando a casa dos 60. Tinha um olho de vidro, rapidamente identificável e exibia uma careca luzidia que lhe deu o nome pelo qual era conhecido - Litenda - vocábulo que, no dialecto local, significava careca. Acho que nunca soube o seu verdadeiro nome. Na sua presença, tratávamo-lo sempre por Sr. Administrador. Quando ausente, era o Litenda. Na sua apresentação, sem formalismos ou salamaleques, o Litenda mostrou-se um homem vaidoso, muito orgulhoso do seu saber africano e dos costumes e defeitos da populaça que parecia não respeitar muito. Na altura, atribuí a pose a uma encenação para impressionar europeus recém chegados do “puto”. Sempre acompanhado pelo fiel Sipaio, espécie de funcionário administrativo recrutado entre a população autóctone, que o seguia dois respeitosos passos atrás, habitava uma das casas no outro lado do campo de futebol, construído alguns metros à frente das instalações militares.
No Rivungo havia apenas dois arremedos de ruas, semelhantes a picadas (até na sua consistência arenosa) mas bastante mais largas. Uma, que começava em frente às instalações da Marinha, à entrada da localidade, era ladeada à esquerda pelo campo de futebol e à direita por 3 casas, uma das quais a do Administrador, estando desabitada pelo menos uma das restantes. A outra, no topo, correndo na perpendicular a esta, terminava abruptamente na periferia da mata. Dotada de separador central, talvez fruto de ideias megalómanas de quem a projectou, estava permanentemente atolada de areia. Albergava de um lado as instalações da PSP e da DGS e do outro a residência do Camassango, um funciónário para as questões agrícolas, cujas atribuições nunca cheguei a perceber. Mulato, vivia sozinho, mas tinha uma grande facilidade em fazer amizades, pelo que era mais fácil encontrá-lo junto da tropa ou da marinha ou a cavaquear com os elementos da PSP.
As únicas estruturas pré-fabricadas, com evidente aspecto de provisório, eram exactamente a casa do Camassango e em frente, no outro lado da rua, as instalações da PSP. Eram também as últimas estruturas da rua, fazendo directamente fronteira com a orla da mata. A missão da PSP, quer ali, quer em qualquer pequena localidade do interior profundo do território, não era a de patrulhar as ruas. As duas que ali existiam não tinham trânsito; eram apenas acessos. Menos ainda garantir a ordem; o movimento era inexistente e os desacatos que pudessem surgir teriam de ser resolvidos pelas hierarquias (militares ou civis). O posto era apenas a base logística. Os seus agentes estavam distribuídos pelos Kimbos dali dependentes, dois em cada um. Eram comandados por uma personagem muito especial - O Chefe França. Fisicamente, uma fraca figura, o que conferia maior visibilidade ao farto bigode de pontas retorcidas que adornava uma cara esguia marcada pela longa exposição ao sol africano. A sua personalidade era oposta à ideia que se costuma fazer de um polícia.
Era um verdadeiro compincha, o protótipo do pândego e do gajo porreiro, sempre com uma laracha pronta a sair, acompanhada de uma gargalhada a propósito de tudo e de pouca coisa. Passe o exagero, creio que, no primeiro dia, ficou amigo de todos os recém chegados. Por companhia permanente, uma cerveja na mão, dando razão à fama de inveterado bebedor que o perseguia, ilustrada por histórias como as que se contavam da parceria que fazia com o sargento Rodrigues da marinha. O sargento Rodrigues tinha fama de grande bebedor. E físico também. Dotado de uma barriga proeminente e corpo volumoso, ninguém o batia quer na quantidade quer na rapidez com que, de um só trago, engolia cerveja após cerveja. O único que lhe conseguia dar luta era o chefe França. Contava-se que um dia, no Mugamba, ao pequeno-almoço, os dois, sentados sobre um banco, comeram trinta ovos estrelados e beberam duas grades de cerveja (o equivalente a 48 garrafas). Não consta que tenham sofrido qualquer indigestão ou perdido o apetite para o almoço, mas ficou demonstrado que o corpo franzino do França pedia meças a qualquer alarve encartado.
A delegação da omnipresente DGS era constituída apenas por dois agentes que ocupavam uma casa próxima do kimbo dos "flechas", no mesmo lado da PSP. Chocava-me a qualidade da “vivenda” dos pides que, por comparação, transformava as instalações da PSP num barracão de lata. Os Pides, com quem não foi difícil conviver, tinham uma actividade invisível. Muitas vezes me perguntei o que faziam ali aqueles dois elementos, para além de desaparecerem, de quando em vez, dentro de casa, por largas horas. Provavelmente apenas gozavam a sesta, fugindo ao calor tórrido. Contudo, diziam alguns, que a casa possuía umas catacumbas onde se dedicariam a actividades ultra secretas, histórias em que nunca acreditei, por me parecer inverosímil a existência de catacumbas. Creio que o resultado das suas investigações seguia secretamente para Serpa Pinto, retornando, via Cuito Cuanavale e desaguando em Mavinga e Neriquinha, até chegarem às bases sobre a forma de operações que a tropa tinha de cumprir, na demanda do inimigo que não se deixava ver.
Junto à entrada do Rivungo, no cimo de um suave declive que levava ao rio, estavam implantadas as instalações do Destacamento de Marinha do Cuando. Nunca imaginei que pudessem existir marinheiros onde não havia mar. Mas assim era. Mais ou menos uma dúzia, parte dos quais fuzileiros navais, logo tropa especial. Comandados por um tenente, o grupo incluía ainda um sargento e um cabo. Tinham por missão patrulhar o Rio numa extensão que podia ir desde a Neriquinha Velha até ao Luiana, seguindo o caudal preguiçosamente sinuoso do Cuando. Para o efeito, dispunham de uma LDP (Lancha de Desembarque Pequena) que para ali fora transportada aos bocados e montada no local. As LDP’s são lanchas de desembarque, de fundo chato, possibilitando a navegação em águas pouco profundas, o que, não sendo o caso do Cuando, sempre facilitava o acesso a zonas fora do caudal principal. Para isso, a proa era basculante, permitindo o desembarque de tropas numa acostagem de frente para as margens. Esta, talvez por erro dos soldadores ou decisão de natureza táctica, não tinha essa funcionalidade. Na operação de junção das partes, soldaram também a rampa de desembarque. Dispunham ainda de um pequeno bote a motor que permitia pequenas incursões militares e que se utilizava para alguns passeios até à Missão ou para percorrer os labirínticos recantos do Cuando. O local não fora escolhido por acaso. Era um ponto estratégico em que o caudal principal do Rio abandonava o seu território pantanoso e tocava terreno firme. Aí ficavam amarrados, a LDP e o bote. Aquela curva do rio permitiu também a montagem de uma tábua, fazendo a vez de prancha de salto. Ali tomávamos banho, com um ritual simples. Mergulhava-se, nadava-se para a margem para passar demoradamente sabonete pelo corpo. Um segundo mergulho retirava o sabão e só depois é que se desfrutava daquela espécie de resort, dando umas braçadas, mas procurando não desafiar a corrente que, a alguns metros da margem, tinha força mais do que suficiente para vencer a nossa resistência de nadadores amadores.
E assim, todos os dias, fato de banho vestido, toalha sobre os ombros e chinelos nos pés, percorríamos a distância que nos separava das instalações da marinha, para o banho diário, dispensando-se a utilidade do balde que equipava a casa de banho.
A verdadeira população do Rivundo, era a que habitava os dois Kimbos. Um deles, o que se espraiava em frente à marinha e constituído por palhotas alinhadas, albergava a população Ganguela, a maioria autóctone daquelas paragens. O outro, que exibia umas cubatas desalinhadas e improvisadas, era habitado exclusivamente por uma das etnias mais características do sul de Angola e ocupava o espaço por detrás da sede da DGS. Os Bosquímanos (corruptela da palavra inglesa Bushmen) gente pequena, com aspecto de garotos e idade impossível de adivinhar, congregavam um povo essencialmente nómada, que a guerra obrigou à sedentarização. A Pide-DGS, aproveitou o seu espírito guerreiro, recrutando as suas tropas (os Flechas) entre os homens deste povo que comunicavam entre si usando um dialecto impossível de imitar e de perceber. Falavam por estalidos produzidos pela língua, como os garotos a brincar.
A apresentação da localidade não ficaria completa sem a referência ao aeródromo e à Missão. Relativamente ao aeródromo ou pista (qualquer dos termos é exagerado) não passava de um espaço, no meio do mato, afastado cerca de 2 km do Rivungo, que se procurava manter desarborizado. Ali aterrava duas vezes por semana (terças e quintas) um pequenino avião da TASA (Transportes Aéreos do Sul de Angola) que nos trazia o que de mais precioso tínhamos para receber - o correio. Iria decorrer mais de um ano até que fosse construída uma pista a sério. De terra batida sim, mas extensa e logo ali, no limite do Kimbo. Até lá manteve-se a correria, em cima de um pequeno Unimog que acelerava saltitante pela picada, procurando chegar à pista antes da aterragem. Era necessário garantir a segurança da pista e receber notícias de casa. Quanto à Missão, pouco mais era do que uns restos de ruínas de umas instalações de missionários, cuja memória se perdera no tempo. De qualquer forma, o local aprazível, localizado na margem do Rio, a cerca de 2 ou 3 km, convidava a uma visita. Ali não havia nada, mas se alguma vez decidisse fazer vida de Robinson Crusoé, seria aquele o local onde assentaria arraiais.
Sem comentários:
Enviar um comentário