sexta-feira, 1 de maio de 2015

Em memória do Ilídio Morgado

Quase que passou despercebido. Não fora duas ou três situações extremas que o marcaram e o facto de termos sido relegados para o fim do mundo, confinados a um singelo quadrado delimitado por uma precária cerca de arame farpado que nos impôs uma longa convivência de proximidade, a lembrança da sua passagem pela companhia teria provavelmente ficado perdida no limbo da nossa memória colectiva.
O Ilídio Morgado era um soldado do meu pelotão integrando aquele lote dos que não dão muito nas vistas. Beirão, oriundo de uma pequena freguesia do Conselho de Sátão, comportava-se de forma algo bisonha e falava devagar conferindo às palavras aquela pronúncia sibilina característica do linguajar das gentes que habitam a região a norte das Terras de Viriato. Não sei se era preguiçoso mas a ideia que vagamente retenho da sua figura, do seu andar vagaroso e da postura indolente que punha em tudo o que fazia, deixa-me essa possibilidade. Creio que nunca fez inimigos e não consta que alguma vez alguém tivesse feito qualquer reparo menos abonatório ao Ilídio, mas também não consigo identificar nenhum grupo de amigos mais chegados a que pertencesse.
Em resumo, pode dizer-se que era um homem comum sem nada de especial que se lhe apontasse a não ser o facto de, por vezes, beber um pouco mais do que a conta.
Contudo, a ser esse o seu maior defeito, convenhamos que era uma coisa de nada se tivermos em atenção que, pelo menos naquele tempo, a melhor forma de mitigar a sede e afrontar o calor, passava pela ingestão de cerveja em quantidades razoáveis. Era barata e havia em quantidades generosas. Excluindo o Candeeiro, pescador dos mares algarvios que ficou na memória de todos pela frequência com que se enfrascava e pelo mau feitio que apenas se manifestava quando toldado por uma cerveja a mais, o Ilídio, se calhar, integrava o restrito grupo dos que ficaram na memória colectiva como aqueles que, com mais assiduidade, exageravam um pouco na quantidade de imperiais.
O excesso de bebida não trouxe problemas a ninguém. É claro que nestas coisas, há sempre excepções e o Candeeiro é uma flagrante excepção. Nele, a bebida, queimando o seu fraco bom senso, fazia com que andasse sempre de candeias às avessas com as hierarquias daí resultando algumas ameaças de punições severas por parte do comandante da companhia. Mas não o Morgado; nele, a bebida apenas lhe soltava a língua, desatando num falaçar trôpego que nunca lhe trouxe problemas de maior quanto a questões disciplinares mas, tanto quanto a minha memória retém, foi o único que sofreu na pele as consequências de beber demais.
Pois é, certa vez, como que por castigo da providência, sentiu de forma muito dolorosa as consequências de um dia de excessos. Não sei se alguém se lembra mas, quando faltava para aí cerca de um par de meses para o fim da comissão, fez coincidir uma bebedeira valente com o dia que lhe competia estar de serviço de guarda à baia que controlava o acesso de viaturas à localidade, dia em que, para piorar as coisas, era aguardada a visita de um grupo de altas patentes militares, que suponho constituído pelo comandante de batalhão e respectivo séquito.
Ninguém sabe como e ele também nunca conseguiu explicar, deu um tiro em si mesmo quando, ao abaixar-se esforçando-se por manter o equilíbrio que o excesso de bebida tornava precário, accionou o gatilho da G3. São coincidências fatais e até hoje ainda ninguém conseguiu perceber por que artes do demo, num local como as Mabubas, tinha uma bala na câmara pronta a disparar. Acabou por ter sorte, a bala apenas lhe perfurou o braço obrigando-o a andar entrapado durante uns tempos.
Este pequeno incidente, a que na altura não se deu muita importância – coisas do vinho, dir‑se‑á, embora me pareça que a bebedeira era de cerveja – não deixa de ter o seu quê de premonitório. Cá para mim, a negra e encapuçada figura sem rosto, de gadanha a tiracolo, já andaria a rondar o infeliz do Morgado.
O tempo passou e a missão chegou ao fim. Agora era o tempo da diversão, do entretém, do dolce far niente. Matavam-se as saudades de tudo aquilo de que, por demasiado tempo, não se teve acesso, gozando hoje uma coisa, amanhã outra, por vezes exageradamente e ao fim do dia planeava-se o que fazer no dia seguinte. Enfim, aproveitava-se o tempo enquanto não chegava o dia do regresso a casa. A praia, porque não era longe, passou a ser local de visita assídua. E o Morgado, porque no sítio onde nascera era coisa que não havia, também por lá andou, até porque o calor a isso convidava.
Não conheço pormenores, mas num desses dias, estando ele na brincadeira com a malta do grupo que com ele decidira passar o dia na praia, resolveu fazer uma habilidade. Correu em direcção à água e ensaiou um mergulho, atirando-se de cabeça contra a onda que entretanto se desfizera espalhando-se preguiçosamente no areal.
O mergulho saiu desorganizado, espalhafatoso, descoordenado e sem estilo, visível na forma como se estatelou pesadamente nos escassos vinte centímetros de água que mal chegava a meia canela. No imediato, ninguém se apercebeu que o corpo do Morgado, inerte, apenas se movia ao sabor das ondas num embalo de vai e vem. Quando alguém deu o alarme, já era tarde. A autópsia, contou-me o alferes Correia que conduziu o processo de averiguações, concluiu que partira o pescoço.
A notícia do passamento do malogrado soldado produziu um efeito devastador no pessoal, trazendo à lembrança a trágica morte do furriel Gonçalves que desastradamente ocorrera lá bem para baixo, nos confins da savana, reabrindo feridas que só há bem pouco tempo haviam cicatrizado. O clima de festa e de diversão de que todos tiravam partido murchou e a alegria desapareceu dando lugar a uma consternação colectiva, a uma revolta surda visível no semblante de cada um.
Que raio. O pior já havia passado e já só faltava tão pouco tempo para tudo terminar.
Não foi justo.

1 comentário:

Anónimo disse...
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