quarta-feira, 1 de abril de 2015

Enquanto a peluda não chega

A nossa vida mudou radicalmente. De um momento em que quase tudo era condicionado por uma disciplina militar ditada por uma enormidade de obrigações e regras de conduta até então cumpridas quase por inércia, qual reflexo condicionado de quem se teve de habituar a uma disciplina que não admitia contestação, passou-se a um estado em que cada um fazia o que mais lhe dava na gana.
É verdade, a peluda estava a poucos dias de vista e isso levava a comportamentos pouco consentâneos com as exigências militares, reduzindo os regulamentos a uma mera insignificância. Era algo de novo, uma espécie de liberdade que entrava de rompante pelas vidas de jovens que, por tempo que mais pareceu uma eternidade, se sentiram encarcerados num mundo de fardas, ordens, regras, ditames e posturas, obrigados a assumir responsabilidades, passar privações e coleccionar arrelias que esculpiram um fácies amadurecido na cara daqueles meninos quase imberbes que, dois anos antes, desembarcavam no cais de Luanda prontos para fazer uma guerra que nenhum havia começado.
Tenho ainda a longínqua recordação do alívio que experimentei perante a iminência do despir definitivo da farda em simultâneo com o formal depor das armas materializado na entrega nas arrecadações da parafernália belicista que, dois anos antes, naquele mesmo lugar, nos fora entregue e que então assumi serem sinais óbvios de que estávamos ali de passagem a caminho da guerra que, era suposto, nos esperava naquele ermo lá nos confins da savana para onde fomos relegados.
Agora que tudo passara, assistia-se a um desmontar da máquina, sendo por demais óbvio de que já nenhum oficial ou sargento se sentia com autoridade para dar ordens que ninguém parecia estar já disposto a obedecer. Constituindo etapas do ritual de corte de relações com o rigor militar, as regras foram sendo compassivamente cumpridas com aquela certeza de que faziam parte do cerimonial do divórcio ou do fim do contrato que todos foram compelidos a aceitar no momento da incorporação.
Naquela fase, a grande tarefa da companhia resumia-se ao arrumar da casa. E isso significava cumprir uma extensa e escrupulosa via-sacra por tudo quanto era repartição ou serviço da pesada burocracia militar. Era preciso pagar e encerrar contas, elaborar guias de entrega, devolver materiais e equipamentos, fazer requerimentos, assinar papelada e obter a necessária quitação que desobrigaria a companhia de tudo quanto era compromisso ou responsabilidade. Felizmente que tínhamos um primeiro-sargento de eleição, um homem, conhecedor daquele mundo complexo que apenas nos pedia ajuda pontual numa coisa ou noutra. Tirando isso, o tempo estava por nossa conta.
Por mim, inebriei-me com o cheiro a maresia, enchi os olhos daquele mar azul cristalino e caminhei sem destino gozando o bulício da cidade, não resistindo a percorrer a marginal ziguezagueando por entre as palmeiras. Pareceram-me familiares em nítido contraste com a primeira impressão experimentada dois anos antes quando, fugindo ao enjoativo convés do Vera Cruz, dei os primeiros passos naquela terra quente e perfumada que parecia inchar de calor. Pelo menos agora, não estranhei a pacífica quietude da baía que, nas cálidas noites austrais, derramava sobre a marginal centelhas de luz em sintonia com o marulhar de águas calmas.
Depois, abusei de bifes com batatas fritas e mostarda aos montes, preguicei nas esplanadas das cervejarias exagerando na cerveja devidamente acompanhada e mergulhei vezes sem conta nas águas cálidas do Atlântico que placidamente banhavam a areia cor de ouro da ilha. Depois de tanto maldizer as estafantes areias brancas da savana do Cuando Cubango, não hesitei em alagartar-me pelas praias da ilha e embrulhar-me no areal com sabor a sal para, depois de feito croquete, a dissolver num mergulho gostoso nas cálidas ondas salgadas daquele mar que apetecia abraçar.
Vi todas as fitas que passavam nos muitos cinemas da cidade, intoxiquei-me no fumo dos cafés saboreando bicas e lendo placidamente os jornais do dia, matei saudades do pastel de nata e enchi os olhos de mulheres lindas e singelamente sedutoras. Voltei à praia sempre que pude, desfrutei as delícias da noite, conheci a Gruta, afamado cabaré logo ali à entrada da ilha e apreciei o seu badalado espectáculo de striptease levado à cena por um friso de meninas que se esmeravam numa representação lasciva capaz de fazer crescer água na boca aos mais susceptíveis ou mais carentes. Ia-se ali não só pelo espectáculo mas também por uma mão cheia de outras coisas. Naquele local buliçoso enchiam-se os olhos de cor e glamour, inspirava-se o perfume de mulher oferecida, usufruia-se da fartura de sedução que espichava dos meneios de mulheres que sabiam da arte e, porque não, suspirava-se por um agrado, que mais do que isso não era permitido, que ali não era casa de putaria. Visitar a Gruta era imperativo, quase uma missão obrigatória para qualquer militar que se prezasse.
Tirando isso, lambuzei-me com a célebre muamba na Mãe-Preta, matei a fome fora de horas devorando o conhecido bitoque servido a qualquer hora da noite naquele bar lá para os lados do Clube Naval e por pouco não gastei todas as economias que a ausência de tudo e o não ter onde gastar me obrigaram a amealhar nos confins da savana.
Sei que, em cada dia, acabada a desbunda, recolhia a algum lugar. Provavelmente regressava ao Grafanil. Havia sempre aquela viatura, estranha, pesada e com ar muito antigo que, a horários estabelecidos, numa marcha pesada de quem não tinha pressa, fazia a ligação entre a Mutamba e aquele entreposto militar conhecido de todos. Andava muito devagar que a idade não dava para mais e dizia-se que gastava cem litros aos cem. Um exagero.
Mas, por mais estranho que possa parecer, não sou capaz de me recordar nem da camarata nem da cama. Provavelmente passei lá pouco tempo.

3 comentários:

Anónimo disse...

Excelente e inspirado texto!!!

A estadia em Luanda, para a maioria dos furrieis, foi numa pensão próxima do estádio dos coqueiros, em "camaratas" com quatro divãs. Sempre era mais confortável e prático o alojamento na baixa que as instalações do Grafanil. Não recordo se, entre os parceiros de quarto estava o cronista. A diária, bastante módica (60$00??), incluía as refeições com dois pratos que usufruíamos quando dava jeito.

Abraço,

Morais

Egidio Cardoso disse...

Lembro-me dessa pensão. Mas não sou capaz de recordar se foi lá que me instalei enquanto não chagava o dia do regresso.
A verdade é que não tenho qualquer ideia de uma camarata no Grafanil. Daí, supor que não dormia por lá, até porque as noitadas passadas em Luanda não permitiam o regresso ao Grafanil; não havia transporte a desoras
Quanto ao mais, lembro-me de tudo aquilo que refiro no texto. Sem os pormenores que o tempo apagou, mas julgo que foi mais ou menos assim.

Antº Rosinha disse...

As pensões de Luanda, e de todas as cidades angolanas em geral, eram historicamente uma espécie de asilo para os "emigrantes" colonos que iam daqui das nossas aldeias do interior, em geral solteiros e com carta de chamada de algum parente, e tesos com os tostões contadinhos.

Antes da guerra do Ultramar começar, essas pensões "asilavam" quem chegava, e chegavam a fiar vários meses enquanto não se arranjava trabalho.

Quando se diz que os brancos colonos viviamos bem em Angola, havia duas razões para dizer essa "meia verdade".

Uma era porque a vida era baratíssima, devido à fartura de bens alimentares, onde até essas pensões serviam sopa, prato de carne e de peixe, e fruta e algumas ainda serviam café c/ cheirinho, por preços impossíveis aqui na metrópole e muito menos nas nossas terrinhas,de onde saímos quase todos que fomos os velhos colonos (que estavamos lá a roubar os pretos).

Outra das razões que se dizia que os brancos viviamos bem em Angola, era pela simples razão que os que se vivia para o dia a dia sem grandes ambições (seria do clima?).

Com a guerra do Ultramar, Luanda começou a tornar-se muito à maneira metropolitana, e já não se podia ir ao cinema de calções e camisa de macau e sandálias.

O 25 de Abril devia ter acontecido 6 anos antes, quando Salazar caíu da cadeira.

Tinha-se passado menos horas/homem fardado de castigo, e as fronteiras coloniais já eram suficientemente conhecidas mundialmente para serem respeitadas.

Mas os capitães de Abril, em 1968 só ainda eram alferes e aí não podia ser, eram novos demais.

Desculpem estas explicações de um retornado, mas sempre que posso aviso, até tinha avisado aquele do Salgado do BES se o conhecesse, para não mandar para lá tantos milhões.

É que dinheiro ali, é como manteiga em focinho de cão.

Muitos furriéis com 24 meses de poupanças e ainda algum cambiado a 20% o lá deixaram todo em duas simples noites antes do embarque no Vera Cruz de regresso.

Quem andou por lá, deve avisar muita gente que hoje está a cair no engano da "árvore das patacas" que vão para lá iludidos que era fácil "enganar e roubar os pretos" e ficar rico, e dizer que era tudo mentira, os pretos não têm nada para roubar.

Cumprimentos