Em memória, e a minha homenagem, aos que por lá ficaram sem glória mas com honra.
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Em tempo porque o tempo não guarda rancores aos que partiram sem tempo...
(Excertos do livro "Capitães do Vento")
Gonçalves
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Más notícias. A primeira derrota. Somos um a
menos.
Tinham corrido rumores de um ataque iminente ao
Rivungo. Numa tentativa de rentabilizar todos os meios, um lança-granadas
foguete sem uso e esquecido a um canto é resgatado à letargia enferrujada em
que se encontrava e decidido experimentar ali mesmo no destacamento. Sabia-se
como funcionava, mas ninguém ali tinha alguma vez disparado aquela arma.
Aprontaram um tiro para a chana do rio Cuando. O soldado que vai operar a arma
ajeita-a no ombro com o dedo no gatilho de modo a encontrar a melhor posição
para o impacto. Um toque ligeiro e esta dispara-se inadvertidamente lançando
para trás um cone de fogo mortífero com uns bons dez metros de comprimento,
enquanto a granada se perdia na chana. O Furriel Gonçalves apanhou em cheio com
todos aqueles gases incandescentes. Teve morte imediata. Um acidente tão
estúpido quanto estúpida era a guerra.
Doloroso foi depois explicar à família como se
perde um filho de forma tão bruta na troca de correspondência que mantive com
os pais durante algum tempo. Ajudou um pouco o facto de o pai ser, também ele,
um militar. Compreensivo, foi mais da vida e não da morte que falámos.
Dolorosamente compreensivo sem força nem vontade para se insurgir contra a
guerra que o roubava assim de forma tão dura e cruel. Afinal, a profissão que
abraçou haveria de se transformar numa espécie de carrasco que lhe levaria os
seus.
Morgado
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Seria já em Luanda que sofreríamos a segunda
derrota que nos decepou um segundo e último membro. Foi como que um “morrer na
praia” e foi mesmo na praia que morreu a cinco dias de embarcar.
A tropa parada e sem nada que fazer, para mais
com o “cacimbo” entranhado no corpo e na alma, tende para a asneira. Procurando
amenizar aquele tempo de espera foram organizadas idas à praia em colunas de
Berliet.
Um grupo estendia-se ao sol onde procurava
harmonizar o contraste da alvura do tronco com o negro do antebraço e pescoço
em V. Afogueado pelo calor o Ilídio Morgado disse levantando-se.
- Vou dar um mergulho. Reparem bem na minha pinta
a mergulhar.
O mergulho foi elevado e acrobático com descida
a pique. Da areia os companheiros ficaram a ver o Ilídio a boiar depois do
mergulho “fazendo fôlego...”. Passaram dois, três minutos até que se
compreendeu que algo não tinha corrido bem. O Ilídio continuava a boiar de
barriga para baixo. Ele não tinha “fôlego” para aquele tempo todo. Retiraram-no
da água já praticamente morto por afogamento, após ter batido com a cabeça no
fundo de areia e ter partido o pescoço.
Não havia melhor forma de despedaçar a alegria
incontida que todos vestiam no rosto naqueles últimos cinco dias de Luanda sem
emboscadas de inimigos conhecidos, poeira de picada ou fome de ração de
combate.
À porta do cemitério de Luanda soou um “...
funeral arma!” em voz rouca gritada que rasgou o silêncio de desespero da penúltima
manhã quente de guerra em África. Seguiu-se-lhe uma espécie de silêncio
ensurdecedor semelhante ao de uma execução. Depois o troar uníssono de seis
disparos que atordoam e deixam a sensação de nos embaterem no peito e nos
vararem de lado a lado. Um segundo disparo de homenagem à vida em tempo de
morte apanha-nos num meio adormecimento de resignação para com as leis da vida.
O terceiro grito vociferado pelas seis G3 que, voltadas aos céus imploram ou
questionam algo que não consigo vislumbrar, já não nos diz o que quer que seja,
nem nos consegue sequer acordar daquele entorpecimento momentâneo que se abate
sobre todos. O silêncio que fica é difícil de romper. O tempo pára e é como se
não quiséssemos que continue como que receando viver a realidade que se lhe
segue.
E o cais de partida ali tão perto. Data e hora
de regresso marcada e alterada abruptamente a cinco dias do fim de quase todas
as tormentas. Adiada para sempre a hora feliz da chegada. Por cumprir, e ali
amortalhada, aquela nesga de esperança de um retalhado “... adeus ... e até ao
meu regresso!”.
E o frio do Puto que nos chega com cinco
dias de antecedência e enregela às onze horas da manhã de calor ardente
cavalgando um fio fino de suor gelado que nos percorre as costas e estremece o
peito numa angústia que nos desgoverna os sentidos e derrota o desejo tardio de
vingar a morte.
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