Na tropa há filhos de muitas mães.
Dizia-se, numa espécie de lugar-comum muito em uso quando se queria transmitir a ideia de que a tropa acoitava todo o tipo de gente, em especial uns quantos pouco recomendáveis que é o mesmo que dizer, com poucos escrúpulos. Com efeito, o serviço militar obrigatório dispensava procedimentos de selecção em função do carácter, não importando saber se o mancebo tinha cadastro ou se era ou não propenso à cobiça pelo alheio. Assim, para além de congregar gente vinda de qualquer dos recantos do nosso território, numa mesma unidade militar coexistiam pessoas das mais variadas índoles.
Dormindo no mesmo espaço, tomando refeições na mesma mesa, protegendo-se uns aos outros, coabitavam, entre uma maioria incaracterística, gente de bem à mistura com companhias pouco recomendáveis. Espertos e tansos, uns matreiros e outros nem por isso, alguns mais aldrabões que outros, à mistura com tímidos e vivaços, citadinos e saloios, madraços e diligentes, não esquecendo os maduros de olho vivo e outros ingénuos e pacatos. Convivendo nesta ancestral simbiose humana, sobressaíam os dominadores e senhores do espaço, impondo as suas vontades aos subservientes cuja ingenuidade os colocava à mercê da esperteza de gente pouco escrupulosa.
No caldeirão da 3441, identificavam-se alguns tímidos, uns quantos ingénuos, uma mão cheia de atrevidos e meia dúzia com cérebro bem composto, não se encontrando entre os demais quem pudesse ser apodado de vigarista ou de má índole. Se os havia não se faziam notar, talvez porque, naquele fim de mundo esquecido, não havia espaço para a bandidagem ou matreirice. A bem da verdade, não me parece sequer que entre os cerca de cento e quarenta homens da companhia houvesse alguém com tal perfil.
Apenas uma pequena excepção - o Bacalhau.
A alcunha parecia condizer com a pessoa e não sei exactamente porquê. Talvez porque nunca ninguém o chamasse pelo nome. Respondia sempre por Bacalhau e penso que a alcunha já o acompanhava quando se juntou à companhia. Se a ganhou ali, terá sido certamente atribuída por alguém, a propósito de qualquer situação que o marcou e que, de todo, desconheço.
A fama de gabiru ganhou-a mais pela bazófia do que por alguma ladroagem. Com a especialidade de mecânico-auto, tratava com pouco profissionalismo das viaturas avariadas ao mesmo tempo que fazia alarde de historietas de malandragem nas quais gostava de se colocar no papel do bandido esperto feito herói, transformando a vítima em tanso que não merecia outra coisa. Se calhasse a jeito no enredo, fazia questão de introduzir personagens que o senso comum considera não serem susceptíveis de se deixarem enganar: um polícia e um galego tasqueiro eram figuras que lhe davam prazer satirizar, não disfarçando o gozo que lhe dava ornamentar o libreto com pormenores que, de uma forma ou de outra enalteciam a sua perspicácia em contraponto com a chacota que fazia da patetice e ingenuidade de vítimas tão pouco comuns.
Deliciava-se com a atónita meia dúzia de espectadores que, adormecidos pelo seu bem urdido parlapié, ouviam com ar de espanto a requentada história de como conseguiu a ajuda braçal do polícia de giro que acabara de o apanhar a furtar as jantes de um automóvel estacionado, convencendo-o de que o carro era seu e que apenas pretendia levá-las à oficina para reparação.
- Oh senhor guarda, olhe que não é a primeira vez que me furam os quatro pneus ao mesmo tempo. Gandulos, é o que eles são, sem respeito pela propriedade alheia!
O episódio do profissional da restauração era adornado com pormenores artísticos que arrancavam exclamações de espanto de um ou outro mais fácil de convencer. A história, que lhe ouvi contar pelo menos um par de vezes, metia sempre como burlado um Galego espertalhão, dono de uma tasca, um botequim de comes e bebes numa qualquer pequena rua de Lisboa. O isco era sempre um quadro representando uma pintura barata, preferencialmente inexpressiva, que alguém com ar desleixado, tipo artista, entregava ao tasqueiro para guardar.
-Oh meu amigo! Não se importa de me guardar isto até daqui a bocado?
O galego era amaciado por um comparsa que, algum tempo depois, entrava despreocupado apenas para tomar uma água, ou um refresco. Importava era que aparentasse uma figura respeitosa, com aspecto distinto, bem vestido, de preferência com fato e gravata e dando ares de endinheirado. Distraidamente reparava na pintura e demonstrava interesse especial no quadro.
- O quadro é para vender?
À resposta negativa, lamentava.
- É pena, dava bom dinheiro por ele.
- Se mal lhe pergunto, quanto estaria o senhor disposto a pagar pela obra?
O taberneiro, na perspectiva do ganho fácil, mordera o isco, o que levava o finório a encenar hesitação na resposta:
- Hum… não sei, mas aí uns cinquenta contos de reis estava disposto a largar.
- Pois – retorquia o taberneiro - mas como lhe disse, não é meu.
A armadilha ficava completa quando, mais tarde o primeiro trafulha, o que encenava ar de artista, personagem que, na versão do Bacalhau, era sempre representada pela sua pessoa, voltava para recolher o quadro.
- Oiça lá amigo. Você não quer vender isso?
Na resposta, o falso artista assumia-se como autor da obra, deixando escapar um qualquer comentário, em que obrigatoriamente referia não ter uma ideia de quanto valeria o quadro, ao mesmo tempo que deixava vagamente transparecer que atravessava momentos difíceis, normalmente relacionados com problemas financeiros.
- Sabe, eu não me queria desfazer deste quadro, mas as necessidades … .
Hesitava, encenava um mutismo pensativo, coçava a barba mal aparada e atirava, como se tivesse tomado uma decisão difícil.
- E quanto estaria o senhor disposto a dar por ele?
- Olhe, dou-lhe vinte contos. Rematava o galego.
Nesta altura o Bacalhau encarava a sua assistência que, acreditando na história, ia comentando.
- Eh pá… é preciso ter muita lata para fazer isso. E o gajo? Pagou?
- Claro. Concluía triunfante.
O mais interessante desta faceta do Bacalhau, era a forma como apresentava a história. Distorcia os factos, vestindo-os com uma capa de honestidade encapotada, diabolizando a ancestral avidez do Galego por dinheiro e pelo lucro fácil, transformando assim o burlado em vigarista. Ele, o honesto aldrabão, limitava-se a tirar proveito da sua avareza, esta sim, condenável.
Certa vez, não sei bem por que motivo mas que apostaria ancorado numa bem preparada matreirice – talvez uma inopinada dor de dentes e a consequente necessidade de assistência hospitalar – passou uma semana no Luso. Apanhou a boleia do Nord e quando na semana seguinte regressou, saiu-se com mais uma das suas.
- Querem saber como saquei vinte paus a um labrego? Começou, procurando atrair a atenção de quem estava próximo.
Reunindo uns quantos à sua volta e captada a sua atenção, começou pela descrição dos pormenores, compondo uma espécie de encenação teatral que encerrava em si um conjunto de truques. Contudo, para que tudo funcionasse, a escolha da vítima tinha de ser criteriosa. E isso não é um truque nem se aprende, é algo de inato, que nasce com o burlão e esse sabe que é mais fácil encontrar incautos entre os provincianos.
Dizia-se, numa espécie de lugar-comum muito em uso quando se queria transmitir a ideia de que a tropa acoitava todo o tipo de gente, em especial uns quantos pouco recomendáveis que é o mesmo que dizer, com poucos escrúpulos. Com efeito, o serviço militar obrigatório dispensava procedimentos de selecção em função do carácter, não importando saber se o mancebo tinha cadastro ou se era ou não propenso à cobiça pelo alheio. Assim, para além de congregar gente vinda de qualquer dos recantos do nosso território, numa mesma unidade militar coexistiam pessoas das mais variadas índoles.
Dormindo no mesmo espaço, tomando refeições na mesma mesa, protegendo-se uns aos outros, coabitavam, entre uma maioria incaracterística, gente de bem à mistura com companhias pouco recomendáveis. Espertos e tansos, uns matreiros e outros nem por isso, alguns mais aldrabões que outros, à mistura com tímidos e vivaços, citadinos e saloios, madraços e diligentes, não esquecendo os maduros de olho vivo e outros ingénuos e pacatos. Convivendo nesta ancestral simbiose humana, sobressaíam os dominadores e senhores do espaço, impondo as suas vontades aos subservientes cuja ingenuidade os colocava à mercê da esperteza de gente pouco escrupulosa.
No caldeirão da 3441, identificavam-se alguns tímidos, uns quantos ingénuos, uma mão cheia de atrevidos e meia dúzia com cérebro bem composto, não se encontrando entre os demais quem pudesse ser apodado de vigarista ou de má índole. Se os havia não se faziam notar, talvez porque, naquele fim de mundo esquecido, não havia espaço para a bandidagem ou matreirice. A bem da verdade, não me parece sequer que entre os cerca de cento e quarenta homens da companhia houvesse alguém com tal perfil.
Apenas uma pequena excepção - o Bacalhau.
A alcunha parecia condizer com a pessoa e não sei exactamente porquê. Talvez porque nunca ninguém o chamasse pelo nome. Respondia sempre por Bacalhau e penso que a alcunha já o acompanhava quando se juntou à companhia. Se a ganhou ali, terá sido certamente atribuída por alguém, a propósito de qualquer situação que o marcou e que, de todo, desconheço.
A fama de gabiru ganhou-a mais pela bazófia do que por alguma ladroagem. Com a especialidade de mecânico-auto, tratava com pouco profissionalismo das viaturas avariadas ao mesmo tempo que fazia alarde de historietas de malandragem nas quais gostava de se colocar no papel do bandido esperto feito herói, transformando a vítima em tanso que não merecia outra coisa. Se calhasse a jeito no enredo, fazia questão de introduzir personagens que o senso comum considera não serem susceptíveis de se deixarem enganar: um polícia e um galego tasqueiro eram figuras que lhe davam prazer satirizar, não disfarçando o gozo que lhe dava ornamentar o libreto com pormenores que, de uma forma ou de outra enalteciam a sua perspicácia em contraponto com a chacota que fazia da patetice e ingenuidade de vítimas tão pouco comuns.
Deliciava-se com a atónita meia dúzia de espectadores que, adormecidos pelo seu bem urdido parlapié, ouviam com ar de espanto a requentada história de como conseguiu a ajuda braçal do polícia de giro que acabara de o apanhar a furtar as jantes de um automóvel estacionado, convencendo-o de que o carro era seu e que apenas pretendia levá-las à oficina para reparação.
- Oh senhor guarda, olhe que não é a primeira vez que me furam os quatro pneus ao mesmo tempo. Gandulos, é o que eles são, sem respeito pela propriedade alheia!
O episódio do profissional da restauração era adornado com pormenores artísticos que arrancavam exclamações de espanto de um ou outro mais fácil de convencer. A história, que lhe ouvi contar pelo menos um par de vezes, metia sempre como burlado um Galego espertalhão, dono de uma tasca, um botequim de comes e bebes numa qualquer pequena rua de Lisboa. O isco era sempre um quadro representando uma pintura barata, preferencialmente inexpressiva, que alguém com ar desleixado, tipo artista, entregava ao tasqueiro para guardar.
-Oh meu amigo! Não se importa de me guardar isto até daqui a bocado?
O galego era amaciado por um comparsa que, algum tempo depois, entrava despreocupado apenas para tomar uma água, ou um refresco. Importava era que aparentasse uma figura respeitosa, com aspecto distinto, bem vestido, de preferência com fato e gravata e dando ares de endinheirado. Distraidamente reparava na pintura e demonstrava interesse especial no quadro.
- O quadro é para vender?
À resposta negativa, lamentava.
- É pena, dava bom dinheiro por ele.
- Se mal lhe pergunto, quanto estaria o senhor disposto a pagar pela obra?
O taberneiro, na perspectiva do ganho fácil, mordera o isco, o que levava o finório a encenar hesitação na resposta:
- Hum… não sei, mas aí uns cinquenta contos de reis estava disposto a largar.
- Pois – retorquia o taberneiro - mas como lhe disse, não é meu.
A armadilha ficava completa quando, mais tarde o primeiro trafulha, o que encenava ar de artista, personagem que, na versão do Bacalhau, era sempre representada pela sua pessoa, voltava para recolher o quadro.
- Oiça lá amigo. Você não quer vender isso?
Na resposta, o falso artista assumia-se como autor da obra, deixando escapar um qualquer comentário, em que obrigatoriamente referia não ter uma ideia de quanto valeria o quadro, ao mesmo tempo que deixava vagamente transparecer que atravessava momentos difíceis, normalmente relacionados com problemas financeiros.
- Sabe, eu não me queria desfazer deste quadro, mas as necessidades … .
Hesitava, encenava um mutismo pensativo, coçava a barba mal aparada e atirava, como se tivesse tomado uma decisão difícil.
- E quanto estaria o senhor disposto a dar por ele?
- Olhe, dou-lhe vinte contos. Rematava o galego.
Nesta altura o Bacalhau encarava a sua assistência que, acreditando na história, ia comentando.
- Eh pá… é preciso ter muita lata para fazer isso. E o gajo? Pagou?
- Claro. Concluía triunfante.
O mais interessante desta faceta do Bacalhau, era a forma como apresentava a história. Distorcia os factos, vestindo-os com uma capa de honestidade encapotada, diabolizando a ancestral avidez do Galego por dinheiro e pelo lucro fácil, transformando assim o burlado em vigarista. Ele, o honesto aldrabão, limitava-se a tirar proveito da sua avareza, esta sim, condenável.
Certa vez, não sei bem por que motivo mas que apostaria ancorado numa bem preparada matreirice – talvez uma inopinada dor de dentes e a consequente necessidade de assistência hospitalar – passou uma semana no Luso. Apanhou a boleia do Nord e quando na semana seguinte regressou, saiu-se com mais uma das suas.
- Querem saber como saquei vinte paus a um labrego? Começou, procurando atrair a atenção de quem estava próximo.
Reunindo uns quantos à sua volta e captada a sua atenção, começou pela descrição dos pormenores, compondo uma espécie de encenação teatral que encerrava em si um conjunto de truques. Contudo, para que tudo funcionasse, a escolha da vítima tinha de ser criteriosa. E isso não é um truque nem se aprende, é algo de inato, que nasce com o burlão e esse sabe que é mais fácil encontrar incautos entre os provincianos.
Percebe-se que um qualquer campónio transformado em mancebo, que durante uma vida inteira nunca saiu da parvónia onde nasceu, lá no interior profundo das serranias lusitanas e é largado, por imposição, num lugar distante, torna-se presa fácil como qualquer pequena gazela que, tresmalhada da sua manada, se vê perdida em território de leões. Contudo, o burlão tem de saber escolher, de entre esses, um que seja fácil de enganar, já que, ser das berças não é obrigatoriamente igual a ter falta de esperteza.
No caso, a vítima que por acaso do destino se atravessara no caminho do Bacalhau, tinha um ar infeliz, cara de pacóvio e uma farda de tons ainda carregados a indiciar o pouco uso, próprio do maçarico que mal acabara a recruta se vê mobilizado para África, qual virgem desprotegido que nunca se defrontara com a malandrice do mundo.
Evidenciando o ar de quem se encontra perdido, num meio hostil e desconhecido, a milhares de quilómetros do seu mundo, era a vítima ideal. Está sozinho numa terra onde não conhece ninguém, e sente-se desamparado, parecendo procurar alguma cara conhecida que lhe traga o conforto que os mais frágeis procuram quando longe de casa.
O Bacalhau fisga-o à distância e avança decidido ao seu encontro. Ensaia uma pose de dúvida à mistura com surpresa, mira-o insistentemente, coloca estrategicamente o dedo indicador em riste balançando-o num movimento sincopado e dispara:
- Eu conheço-te!
Na verdade, nunca o vira mais gordo. E o outro também não. Mas a forma como foi abordado lançou a dúvida, obrigando-o a hesitar. A perspectiva de encontrar alguém conhecido, mesmo que não se lembrasse de onde, fê-lo parar como se procurasse nos escaninhos da memória qualquer coisa que o ajudasse a identificar aquela espécie de miragem no deserto da sua desventura.
Perante o mutismo e o ar duvidoso da vítima, insiste:
- Não te lembras de mim? E aproximava-se um pouco como a querer reavivar a memória fotográfica do outro.
E continuava sem lhe dar tempo para pensar.
- Não és de…de...
Alongava o espaço entre os de’s ao mesmo tempo que, abanando a cabeça, levava a mão à testa numa encenação de quem puxa pela memória à procura do nome da terra como se estivesse ali mesmo, debaixo da língua e não saísse.
- S. Cipriano. Declarava o ingénuo sem se aperceber que estava a fornecer a informação que o outro precisava.
- Eh pá … é isso mesmo … S. Cipriano. É que eu sou de lá perto, mas passava a maior parte do tempo na Vila.
Desconhecendo de todo onde raio ficava S. Cipriano, o Bacalhau não arriscava um nome, ficando-se apenas pela designação genérica de Vila, sabendo ser assim que os das berças se costumavam referir à sede de Concelho a que a sua terrinha pertencia, ao mesmo tempo que eliminava a dúvida que ainda pairava na cabeça do outro. E continuava:
- Tu és o ….o…, bolas que me esqueci do teu nome!
E colocando a mão sobre o ombro do outro, apertava-o ligeiramente ao mesmo tempo que balançava a cabeça como a culpar a sua memória de falta tão grave.
-Eu sou o Manel… o Manel do Patrocínio! Denunciava-se ingenuamente o infeliz.
- É isso mesmo, pá! Oh Manel! Esta merda do cacimbo já me baralha a cabeça. Vê lá tu que quase me esquecia do teu nome … o Manel! Eh pá, e tu, nã tás a ver quem eu sou?
Insistia. E sem dar tempo ao outro para pensar, acrescentava.
- Tás a ver o largo? Ali ao pé da igreja?
Perante a anuência do outro, continuava.
- E o chafariz?
Apostando no princípio de que todas as terras têm um largo frente à igreja e uma fonte ou chafariz, arriscava ainda.
- Lembras-te daquela senhora gorda?
O outro franzia o sobrolho, coçando a cabeça procurando trazer à superfície as memórias da terra e das suas gentes.
- Ah! Sim, tou a ver! Aquela que mora naquela casa baixinha, em frente.
Avançava o infeliz, quase convencido de que falava de facto com um conterrâneo, ao encontrar, lá no fundo da sua memória, a imagem de alguém com as características referidas.
- Essa mesma! Reagia simulando entusiasmo. - É minha Tia. Rematava por fim com chave de ouro, anulando em definitivo qualquer dúvida que ainda restasse na cabeça do infeliz.
O Bacalhau preparara bem o isco e escolhera o anzol adequado. Depois, lançou a linha ao acaso e esperou que o peixe mordesse. Faltava apenas o golpe final, aquele em que se puxa a linha com cuidado para que o peixe não escape.
- Olha lá! Não tens aí vinte paus que me emprestes?
O outro hesitou um pouco, pareceu desconfiar, mas o golpe final foi dado com mestria.
- Sabes, tou enrascado … mas amanhã, sem falta, pago-te.
A dificuldade de certas pessoas em dizer não, mesmo quando suspeitam de que estão a ser enganadas, não lhes permite resistir. Para mais, tratando-se de um conterrâneo. Assim, a nota verdinha de vinte paus, retirada do bolso, passou rapidamente para as mãos do Bacalhau que a guardou, após o que, alegando uma qualquer missão urgente, se retirava rapidamente à medida que repetia, acenando com a mão:
- Amanhã pago-te, tá bem?
Concluía assim a história, olhando triunfante para a sua pequena plateia.
- E o gajo? não quis saber onde é que o encontravas para lhe pagares? Perguntou alguém.
- Eles nunca se lembram disso. Concluiu o Bacalhau à medida que se encaminhava para a ferrugem no seu passo lento e bamboleante.
Munindo-se de umas quantas ferramentas, debruçou-se sobre uma berliet avariada, deixando cada um decidir por si se tudo se teria passado como contou ou se era mais uma das suas tretas.
Fosse como fosse, os mais desconfiados começaram a avaliar melhor o risco em deixar algo ao seu alcance.
No caso, a vítima que por acaso do destino se atravessara no caminho do Bacalhau, tinha um ar infeliz, cara de pacóvio e uma farda de tons ainda carregados a indiciar o pouco uso, próprio do maçarico que mal acabara a recruta se vê mobilizado para África, qual virgem desprotegido que nunca se defrontara com a malandrice do mundo.
Evidenciando o ar de quem se encontra perdido, num meio hostil e desconhecido, a milhares de quilómetros do seu mundo, era a vítima ideal. Está sozinho numa terra onde não conhece ninguém, e sente-se desamparado, parecendo procurar alguma cara conhecida que lhe traga o conforto que os mais frágeis procuram quando longe de casa.
O Bacalhau fisga-o à distância e avança decidido ao seu encontro. Ensaia uma pose de dúvida à mistura com surpresa, mira-o insistentemente, coloca estrategicamente o dedo indicador em riste balançando-o num movimento sincopado e dispara:
- Eu conheço-te!
Na verdade, nunca o vira mais gordo. E o outro também não. Mas a forma como foi abordado lançou a dúvida, obrigando-o a hesitar. A perspectiva de encontrar alguém conhecido, mesmo que não se lembrasse de onde, fê-lo parar como se procurasse nos escaninhos da memória qualquer coisa que o ajudasse a identificar aquela espécie de miragem no deserto da sua desventura.
Perante o mutismo e o ar duvidoso da vítima, insiste:
- Não te lembras de mim? E aproximava-se um pouco como a querer reavivar a memória fotográfica do outro.
E continuava sem lhe dar tempo para pensar.
- Não és de…de...
Alongava o espaço entre os de’s ao mesmo tempo que, abanando a cabeça, levava a mão à testa numa encenação de quem puxa pela memória à procura do nome da terra como se estivesse ali mesmo, debaixo da língua e não saísse.
- S. Cipriano. Declarava o ingénuo sem se aperceber que estava a fornecer a informação que o outro precisava.
- Eh pá … é isso mesmo … S. Cipriano. É que eu sou de lá perto, mas passava a maior parte do tempo na Vila.
Desconhecendo de todo onde raio ficava S. Cipriano, o Bacalhau não arriscava um nome, ficando-se apenas pela designação genérica de Vila, sabendo ser assim que os das berças se costumavam referir à sede de Concelho a que a sua terrinha pertencia, ao mesmo tempo que eliminava a dúvida que ainda pairava na cabeça do outro. E continuava:
- Tu és o ….o…, bolas que me esqueci do teu nome!
E colocando a mão sobre o ombro do outro, apertava-o ligeiramente ao mesmo tempo que balançava a cabeça como a culpar a sua memória de falta tão grave.
-Eu sou o Manel… o Manel do Patrocínio! Denunciava-se ingenuamente o infeliz.
- É isso mesmo, pá! Oh Manel! Esta merda do cacimbo já me baralha a cabeça. Vê lá tu que quase me esquecia do teu nome … o Manel! Eh pá, e tu, nã tás a ver quem eu sou?
Insistia. E sem dar tempo ao outro para pensar, acrescentava.
- Tás a ver o largo? Ali ao pé da igreja?
Perante a anuência do outro, continuava.
- E o chafariz?
Apostando no princípio de que todas as terras têm um largo frente à igreja e uma fonte ou chafariz, arriscava ainda.
- Lembras-te daquela senhora gorda?
O outro franzia o sobrolho, coçando a cabeça procurando trazer à superfície as memórias da terra e das suas gentes.
- Ah! Sim, tou a ver! Aquela que mora naquela casa baixinha, em frente.
Avançava o infeliz, quase convencido de que falava de facto com um conterrâneo, ao encontrar, lá no fundo da sua memória, a imagem de alguém com as características referidas.
- Essa mesma! Reagia simulando entusiasmo. - É minha Tia. Rematava por fim com chave de ouro, anulando em definitivo qualquer dúvida que ainda restasse na cabeça do infeliz.
O Bacalhau preparara bem o isco e escolhera o anzol adequado. Depois, lançou a linha ao acaso e esperou que o peixe mordesse. Faltava apenas o golpe final, aquele em que se puxa a linha com cuidado para que o peixe não escape.
- Olha lá! Não tens aí vinte paus que me emprestes?
O outro hesitou um pouco, pareceu desconfiar, mas o golpe final foi dado com mestria.
- Sabes, tou enrascado … mas amanhã, sem falta, pago-te.
A dificuldade de certas pessoas em dizer não, mesmo quando suspeitam de que estão a ser enganadas, não lhes permite resistir. Para mais, tratando-se de um conterrâneo. Assim, a nota verdinha de vinte paus, retirada do bolso, passou rapidamente para as mãos do Bacalhau que a guardou, após o que, alegando uma qualquer missão urgente, se retirava rapidamente à medida que repetia, acenando com a mão:
- Amanhã pago-te, tá bem?
Concluía assim a história, olhando triunfante para a sua pequena plateia.
- E o gajo? não quis saber onde é que o encontravas para lhe pagares? Perguntou alguém.
- Eles nunca se lembram disso. Concluiu o Bacalhau à medida que se encaminhava para a ferrugem no seu passo lento e bamboleante.
Munindo-se de umas quantas ferramentas, debruçou-se sobre uma berliet avariada, deixando cada um decidir por si se tudo se teria passado como contou ou se era mais uma das suas tretas.
Fosse como fosse, os mais desconfiados começaram a avaliar melhor o risco em deixar algo ao seu alcance.
4 comentários:
O Bacalhau -também conhecido como o Alemão, no mundo do boxe em Lisboa- era de facto um tipo sui-generis. Um alfacinha, nato num desses bairros tipicos onde é generalizada a fama de todos serem pouco dados ao trabalho (tipo Zé Carioca) e muito á malandrice, era um mecânico que sabia bem do seu ofício. Sabia, aliás, demais! Sabia até como é que havia de fazer para que uma simples mudança de filtros de gasóleo, durasse um dia inteiro!
A sua apetência pelo trabalho era pouca. Muito pouca. Tinha, no entanto, um espírito nato para a pequena e quase inocente criminalidade, deixando sempre a impressão de que, apesar de enganar um incauto, não deixava de ser um gajo porreiro. E era um gajo com muito himor: ria até das partidas que pregava e das pequenas vigarices com que ía mimoseando um ou outro.
Um dia, na Sala do Soldado, onde os GE's estafavam o mísero pré numa ou duas cervejas, o Bacalhau deu um espectáculo com um baralho de cartas, iludindo, com truque a seguir a truque, os olhos de quem o observava. Os GE's, sobretudo, só diziam:
- Chiii! Chiii!
No final, para terminar em beleza, vira-se para um e diz-lhe:
- Olha lá, ó Preto! Queres apostar que atiro as cartas ao ar e ficam coladas ao tecto? Uma cerveja, está bem?
O GE, olha-o sério e diz:
- Não! Tu tem magia!
Do Bacalhau só me recordo, ou melhor, só me foi dado a observar..., o esquema da moto-bomba que herdámos da companhia anterior e que jamais trabalhou mais de cinco minutos seguidos.
O Bacalhau apresentou-se como um "especialista" em moto-bombas...
A moto-bomba estava à sombra...
Já não me recordo bem; mas ele esteve lá (sentado e à sombra) seguramente uns 15 dias a arranjar a moto-bomba...
E não me recordo da moto-bomba ter trabalhado mais de 5 ou 10 minutos seguidos...
E assim andámos alguns meses a ir buscar água (uma espécie de água...) nas Berliets, até que um ultimato para Luanda nos trouxe a eléctro-bomba que nos forneceu excelente água até Maio de 72 e lá deve continuar enterrada...
Ainda me recordo de visitar o Bacalhau na sua afanosa tarefa de dar conserto à moto-bomba para fim do sofrimento de todos nós.
Percebia-se que dava pela minha aproximação à distância. Acho que era nessa altura que ele passava as mãos com algum óleo pela testa e eu de lá regressava "impressionado" com a boa vontade do Bacalhau...
Até que um dia, eu ou o Gabriel, achámos que era moto-bomba a mais e o fizemos regressar ás Berliets, para maior descanso do Lobato.
Para os que jogavam futebol dá para lembrar que o Bacalhau até na bola tinha uma finta que era uma autêntica "aldrabice"...
PC
Do meu amigo CARLOS ADEMAR, recebi um comentário, via Facebook, que considero dever ser colocado aqui. Reza o seguinte:
"Belo e rico este personagem. Gosto muito da forma como vocês abordam os tempos dificeis que viveram há quase 40 anos. Falam da pequena história, a que eu mais gosto, a história que não vem nos livros. Falam das pessoas que estão condenadas a morrer quando morrer a geração a que pertencem. Por isso gosto do que fazem neste blogue, que não é um blogue saudosista da guerra, antes pelo contrário, defende claramente, sem ser necessário manifestá-lo, os valores humanistas.
Obrigado, Carlos.
Faço questão de manter essa linha editorial.
Sem qualquer pretenciosismo, ou sequer tentativa de comparação, considero que é essa a principal diferença entre este blogue e todos os outros que falam da guerra do Ultramar.
Continuarei, com um compromisso que fiz a mim mesmo: Publicar pelo menos uma "estória" em cada mês, sempre no dia 1.
Bem, pelo menos enquanto a inspiração for durando e o assunto não se esgotar, já que a memória começa a diluir-se na neblina do tempo.
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