segunda-feira, 1 de junho de 2015

Goma-arábica, a cola que sabia a mel


Ainda nem haviam decorrido duas semanas desde que, amesendados na grande cidade aguardando sem pressas o dia em que se encetaria a viagem de regresso a casa e já muitas das agruras por que passáramos começavam a transformar-se em remotas recordações. Por mim, aquela certeza de que jamais voltaria a calcorrear as esgotantes e quentes areias das terras-do-fim-do-mundo trazia uma confortante sensação de bem-estar apenas perturbada pela recordação do inacreditável acidente que nos levara o Morgado. Exactamente quando já parecia certo que todos regressariam ilesos, o destino decidiu fazer-nos pagar a ousadia de termos conseguido escapar à má sorte, como se o azar que nos levou o Gonçalves não tivesse sido já paga suficiente. Mas, feita a catarse, com a ajuda da juventude que tudo supera, os dias continuaram a correr, intensos, quentes e aconchegantes, vividos como se houvesse pressa em compensar os tempos de escassez que, por aquelas alturas, já me pareciam suficientemente distantes.
O facto é que, aplacadas que estavam as mágoas, cauterizadas as feridas da alma e completada a convalescença com doses maciças do bálsamo apaziguador das Mabubas, tudo aquilo por que se passara parecia agora coisa de somenos.
Terá sido por aquela altura que se deu início a uma espécie de ritual que ainda hoje se repete: a irresistível tendência para trazer à espuma dos dias a lembrança dos episódios rocambolescos, dos sustos e maleitas, das alegrias e dissabores vividos e sofridos no tempo que durou a nossa passagem pelas guerras da Neriquinha, recordados a propósito de tudo e de nada, contados e recontados, explicados e relembrados como quem conta a história da última fita vista na soirée do cinema Miramar.
Foi por estas alturas que, certa manhã, lá na Pensão dos Coqueiros, unidade hoteleira modesta onde costumávamos pernoitar, creio que ao pequeno-almoço, descosendo a língua em conversa de circunstância, porventura recuperando da ressaca da noite anterior, alguém se lembrou de ter ouvido contar uma das máximas do nosso major Tamegão. Para tanto bastou um refrescar de memória trazido pelo ritual de untar a torrada com compota.
Constava que nada afectava o apetite do major e dizia-se que nunca reclamava do rancho. Aliás, o seu aspecto roliço e maneirinho era prova disso mesmo. A sua mais que conhecida fama de lateiro, típica de quem nunca reclama do rancho, ficou suficientemente demonstrada, quando, numa das poucas vezes que a sua missão o obrigou a descer ao inferno da Neriquinha, devorou um prato de massa guisada com atum que o vago-mestre incluíra na ementa numa tentativa de retaliação pelas exigências e observações esparvoadas que o homem fizera aos mapas de controlo do depósito de géneros. Tudo em vão. Enquanto toda a companhia achou a refeição uma porcaria, o Major, rapando o prato onde um último fio de massa resistia às suas arremetidas, apenas deixou escapar um: - Isto estava muito bom!
Mas, voltando à compota, parece que o homem, lá na messe do Cuito Cuanavale, descobriu um frasco com mel. A sua consistência e a cor ligeiramente ambarada eram características mais do que suficientes para que nem sequer lhe passasse pela cabeça que pudesse ser outra coisa. Aliás, estando na messe e com aquele delicioso aspecto a fazer-lhe nascer na boca uma aguadilha de gula, no seu entender não poderia ser outra coisa. Assim, todas as manhãs, a fatia de pão que lhe servia de mata-bicho, foi sendo generosamente untada com o produto e saboreada em gulosas dentadas intervaladas por largos golos de café com leite, lauta refeição por vezes finalizada com pomposa e sonora eructação.
Até que, certo dia, a mulher do médico que, uma ou outra vez o calor obrigava a madrugar, deu conta de que, afinal, era o major o responsável pelo esvaziamento constante e paulatino do conteúdo do frasco.
- O senhor major come isso? Interrogou a senhora com não disfarçada surpresa.
- Sim, eu gosto muito de mel. É muito saudável. Respondeu o oficial um tanto ou quanto atónito como se considerasse a pergunta descabida.
- Mas isso não é mel, senhor major. Isso é goma-arábica; trouxeram-na há dias da secretaria para colar uns papéis.
Apanhado de surpresa o homem, contudo, não desarmou.
- Ah é? Mas olhe que é muito bom.
Consta que, ainda assim, mesmo se apercebendo de que, afinal, andara a ingerir cola o tempo todo, não se coibiu de comer o pão até ao último migalho.

4 comentários:

Pedro Cabrita disse...

O Major Tamegão era na verdade uma figura bizarra, embora, no fundo, um bom homem.
Lembrei-me de um episódio ocorrido na Companhia, aquando uma das visitas de inspecção que fazia periodicamente.

Parte I

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Um dia, logo após o hastear da bandeira, cerimónia a que assistia todos os dias com inusitada devoção (uma espécie de missa da madrugada que elevava a fé na instituição) o nosso Major solicitou ao oficial de dia que mandasse tocar a alarme para verificar como reagia a tropa. Segundo as regras militares, ao som daquele toque, toda a Companhia se deveria dirigir aos abrigos o mais rápido possível, tomando posição de combate e postando-se em defesa do aquartelamento.
O oficial de dia (o Alferes Oliveira, creio), receando alguma falha, decidiu perguntar ao corneteiro se conhecia o toque, porque para ele aquilo era uma novidade. Embaraçado o corneteiro lá consultou os seus colegas de função e lá se arranjou uma “opereta” de circunstância que se depreendeu dever ser parecida com o que solicitara o Major. De permeio foi bufando a um ou outro companheiro que passava nas proximidades que aquilo que se ia ouvir era um toque de alarme, pelo que todos se deveriam dirigir aos abrigos.
Assim foi. O toque soou, com o pessoal a encaminhar-se lentamente para os abrigos em amena cavaqueira – alguns com a arma apoiada no ombro segura pelo cano – cumprindo aquela chatice de alguns terem que sair da cama mais cedo e outros a irem à caserna buscar a arma, quando já se encontravam nos trabalhos que lhes estavam destinados naquele dia. Parece que quinze minutos depois de ter soado o toque de alarme ainda havia soldados a dirigirem-se para os abrigos, quando o nosso Major, de relógio em riste, esperava que o tempo não ultrapassasse um ou dois minutos para considerar aceitável a resposta dada ao sinal de alarme.
O nosso Major ficou destroçado e incrédulo e o Alferes incapaz de responder ao nosso Major perante tanta “permissividade” da tropa.
Habituado ao toque costumado do hastear da bandeira, autêntico despertador natural do mato, acordei um pouco confuso com aquela nova melodia. Levantei-me um pouco apressado como quem não quer perder nada da festa que parecia anunciar-se com aquele rebate matinal. Já me dirigia para a messe quando, autenticamente “emboscado”, o Major me esperava a meio do caminho das tabuinhas, agitando frenético e nervoso os dedos das mãos atrás das costas. Eu já lhe conhecia o gesto e a partir daí comecei de imediato a desmontar a ideia de festa que me vinha animando a alvorada.
Sem mais delongas desfiou logo ali a enorme ladainha do seu descontentamento e estupefacção pela resposta totalmente inadequada que a minha tropa tinha dado ao toque de alarme. Percebi de imediato o significado daquela estranha melodia que me tinha acordado prazenteira logo pela manhã.
.../...

Pedro Cabrita disse...

Parte II

(cont.)
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Desliguei um pouco daquilo que ouvia, enquanto o Major continuava a despejar-me motivos de sobra para as minhas futuras preocupações que deveriam concentrar-se naquele desastre de segurança para todos. Incluindo o Major, claro. Por fim encontrei algo para dizer.
- O meu Major não se importa de esperar umas horas?
- Umas horas? Mas para quê? Respondia-me sem vislumbrar o meu ponto de vista.
- Isto não pode ser. Um dia o inimigo entra-vos pelo quartel dentro e vai ter convosco à cama.
Percebi que era uma visita que o Major não desejava, pelo menos enquanto se mantivesse por ali. Julgo que terá sido o momento em que sentiu a insegurança que todos nós sentíamos havia largos meses, por via do isolamento em que nos encontrávamos.
Mas por fim lá anuiu e acalmou. Durante todo o dia não se falou mais no assunto mas sentia-se que o Major tinha ficado incomodado e, quiçá, assustado.
Escureceu.
Logo a seguir ao jantar, solicitei a um dos Alferes que levasse o nosso Major para junto das casernas onde os militares se acomodavam para dormir. Intrigado o Major deixou-se conduzir.
No silêncio da noite fiz explodir uma granada ofensiva nas proximidades das casernas.
Foi um pandemónio. O Major quase foi atropelado e teve que se proteger. Em menos de um minuto as casernas ficaram desertas e todos os soldados ocuparam os seus postos de combate. Peguei no Major e convi-dei-o a percorrer comigo todos os abrigos. Parte dos soldados ou estavam em cuecas, descalços ou em tronco nu, mas as cartucheiras estavam à cintura e a espingarda na mão. O Major não balbuciou uma palavra, nem voltou mais a falar no assunto. Apenas me respondeu, quando defronte daquele quadro lhe disse.
- Meu Major; é que não estou propriamente à espera que o inimigo me apareça de corneteiro a avisar que vai atacar...!
- Pois. Mas sempre era bom que conhecessem o toque...
- ... ?!!

.../...

In "Capitães do Vento"

Nota hilariante para quem se lembra da figura que agora recordo.
Na verdade as casernas não ficaram completamente desertas. Ficou lá o Joãozinho a chorar copiosamente porque não conseguiu encontrar a arma...
O Joãozinho era ajudante de cozinheiro e no tempo que estivemos na N'riquinha terá pegado na arma não mais de meia-dúzia de vezes...

Anónimo disse...

Mais um belíssimo texto, a que não faltou uma nota de ficção. Refiro-me à ementa de esparguete com atum. Essa não lembra ao diabo! O atum servia-se sempre com os designados "ciclistas"!! Noto que, quando havia visitas, o comandante da companhia fazia questão em, previamente, se pronunciar sobre o cardápio a servir. Recordo um prato de bacalhau cozido recomendado servir aos "primos" sul-africanos que foi um fiasco assinalável!! Em consequência, depois do almoço saí com eles, de heli, em inesquecível caçada ao núncio.

Outra ficção, frequentemente referida por alguns camaradas (não pelo cronista Cardoso), é a ementa de massa com salsichas. Se a memória não me falha, só a comi em três ocasiões e sempre relacionada com praxes:
1) no dia de chegada à N'riquinha, servida pelos "velhinhos";
2) um ou dois dias depois para retribuir a gentileza aos mesmos, antes de embarcarem no MVL, quando nos deixaram;
3) No dia de chegada dos "maçaricos".
De resto, as salsichas eram servidas em pratos de massa ou arroz com carne e chouriço.

"vaguinho" Morais

habibahkadel disse...
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