sexta-feira, 1 de julho de 2011

MECÂNICOS

Meios de transporte e de locomoção são equipamentos fundamentais em qualquer teatro de guerra. E a guerra colonial portuguesa não podia ser excepção. A importância de uma frota operacional era condição necessária, operacionalidade essa que dependia do seu funcionamento, do tipo de viatura em função do terreno e da sua capacidade para evoluir na multiplicidade de cenários.
Umas maiores, outras mais pequenas, a gasolina ou a gasóleo, com tracção normal, integral, ou reforçada, com ou sem guincho, com quatro, seis ou oito rodados, com reboque e sem reboque, com ou sem cabine, carroçaria entaipada ou não e dotados de uma variedade de equipamentos e capacidades conforme a função a que eram destinadas. Inicialmente eram as velhas GMC que foram gradualmente substituídas pelas famosas GBC, mais conhecidas por viaturas Berliet e as Mercedes nas suas diversas variantes, das quais se destacavam os inimitáveis Unimogs, disponíveis a gasóleo ou a gasolina, bastante versáteis e capazes de vencer qualquer obstáculo.
A frota da Neriquinha era constituída por quatro Berliets, uns quantos Unimogs dos maiores, outros tantos dos mais pequenos e um Jeep Willis, que não podia ser considerado como pertencente à frota. Com efeito, sendo a única viatura a gasolina, tinha quatro velocidades - três para a frente e uma para trás - gastava 50 litros aos 100, era apenas usado no perímetro do aquartelamento, as mais das vezes pelo Capitão, nunca tendo ido mais longe do que o limite norte da pista.
A hostilidade própria das terras do fim do mundo e as irregularidades agrestes das picadas arenosas transformavam o dia-a-dia das viaturas num autêntico inferno. Os rodados enterravam-se no terreno desértico e arenoso, atolavam-se no lamaçal das chanas, derretiam-se sob o calor impiedoso, a suspensão tinha de dar mostras da sua resistência, os motores eram obrigados a rodarem em primeira e segunda velocidade na maior parte dos percursos, a terceira velocidade só era utilizada de quando em vez e a quarta nunca, obrigando a manter os radiadores sempre abastecidos.
Os motores sobreaqueciam, as molas partiam-se, as baterias descarregavam-se perante a relutância dos motores em arrancar, os pneus furavam, os radiadores secavam e o depósito de combustível esvaziava a um ritmo alucinante.
Com as Berliets, o problema da água e do gasóleo resolvia-se; cada viatura carregava permanentemente um bidão cheio de gasóleo e outro com água, permitindo, com a ajuda de uma mangueira, o abastecimento em qualquer altura. Mas os Unimogs não tinham essa capacidade de transporte e, por via disso, só eram utilizados em deslocações de menor distância. O pior é que o estado das viaturas agravava a situação; uma delas estava mais tempo avariada do que a funcionar, outra não merecia confiança e as duas restantes acabavam por soçobrar ao excesso de trabalho.
A operacionalidade da frota era responsabilidade do Gabriel Costa que não tinha a vida facilitada. As viaturas avariavam com muita frequência em consequência da dureza dos itinerários que percorriam, obrigando a reparações frequentes que muitas vezes passavam pela substituição das peças desgastadas, partidas ou irremediavelmente avariadas.
O problema é que o acesso a peças de substituição exigia requisições obedecendo a uma burocracia entediante e desesperava-se à espera que, de Luanda, chegassem as peças necessárias, cuja demora, excessiva não se compaginava com a operacionalidade exigida à companhia, o que determinou que a berliet mais débil e que mais vezes se negava a cumprir a sua missão, fosse arrumada a um canto das oficinas, passando a ser sistematicamente canibalizada, esventrada das peças que iam sendo montadas nas demais, ficando assim a frota reduzida a apenas três unidades, com uma delas a apresentar fragilidades ao ponto de apenas poder sair carregando por precaução uma lança de reboque e em companhia de uma das outras que, de quando em vez, a tinha de trazer a reboque.
Com tudo isto, a equipa de mecânicos não chegava para as encomendas e a rápida formação que a tropa lhes ministrara pouco ou nada acrescentou à pouca experiência que traziam da vida civil e tenho para mim que o Vicente sabia mais da matéria que alguns dos mecânicas da companhia. O Vicente era um puto local que, apaixonado pela mecânica, passava os dias na oficina, ajudando no que fosse preciso.
Na verdade, o que safava tudo era o facto de a equipa de mecânicos contar com o cabo Lobato. O Lobato era um profissional e conseguia fazer milagres com pouca coisa. Homem corpulento, tinha uma estatura à altura das grandes Berliets e conhecia todos os segredos da mecânica, do funcionamento, das manias e dos tiques daquelas viaturas. Pelo menos, conseguia reparar qualquer avaria, desde que não dependesse de qualquer peça que não chegava. Era um conhecedor teimoso e persistente, que se empenhava a fundo fosse qual fosse a reparação exigida, desde o trabalho mais simples até o mais complicado, mesmo que isso implicasse o desmontar de uma embraiagem, de uma caixa de velocidades ou de um motor. Na verdade, devia-se ao Lobato a operacionalidade das três berliets sobreviventes.
Certa vez, o meu grupo de combate foi incumbido de uma missão; manter uma presença na N’Riquinha Velha durante dois dias, patrulhar as margens do Kuando e tomar contacto com a população que por ali olhava pelo seu gado e cuidava das suas plantações de milho. O lugar era aprazível e não ficava muito distante; uma hora de caminho mais coisa menos coisa, dependendo do que o condutor conseguisse da viatura. Para a missão foi afecta a pior das três berliets que, tendo passado o dia anterior nas mãos do Lobato, se esperava que fosse capaz de fazer a viagem de ida e volta sem problemas. Pelo menos a viagem de ida decorreu sem avariar.
Era o tempo do cacimbo, com um calor tórrido durante o dia e um frio gélido durante a noite, exercendo a sua acção desgastante, não apenas sobre os corpos, mas também na mecânica da berliet que, após uma viagem sob sol inclemente, se aquietou na noite gelada a ponto de lhe ter afectado qualquer parte mais sensível.
O facto é que, quando no dia seguinte o condutor accionou a ignição para pôr o motor em marcha, este não respondeu aos insistentes nhé, nhé, nhé, nhééé…… do motor de arranque, decidindo-se que não valia a pena insistir, até porque, após várias tentativas sem sucesso, a bateria começava a fraquejar. A única hipótese passava por requisitar os serviços do Lobato. A distância não era assim tanta e naquele terreno plano de areia seca e solta, fazê-la pegar de empurrão era tarefa impossível, mesmo com toda gente a ajudar.
O operador de transmissões ligou o rádio, estendeu a antena e procurou estabelecer contacto.
- Base, base, aqui óscar … escuto.
Após duas ou três insistências a terminar em “escuto”, a resposta fez-se ouvir.
- Transmita.
- A cabrinha está doente … precisa do médico.
Ou por chacota, ou porque não estivesse a perceber a linguagem toscamente cifrada, o operador na N’Riquinha não associou cabrinha à viatura e menos ainda o de médico ao mecânico, replicando desabridamente:
- Qual cabrinha? Médico para quê? Afinal quem é que está doente?
Para gáudio de todos, a resposta, em jeito de desabafo, saiu pausada, quase palavra a palavra para que não subsistissem dúvidas.
- Oh porra! O motor não pega, … não trabalha.
Se o inimigo ou alguém, à socapa, estava a ouvir a transmissão, ficou a saber que por ali, uma viatura se recusava a trabalhar e que uns tropas aguardavam algures a chegada de um mecânico para resolver o problema e ao mesmo tempo lá se foi às urtigas um código secreto.
De qualquer forma, não demorou muito até que uma outra berliet nos trouxesse o Lobato. Apeou-se, aproximou-se do condutor e embora soubesse exactamente onde estava o problema, perguntou:
- Então, qual é o problema?
- Esta porcaria não pega. Respondeu agastado o condutor.
- Não pega? Não pode ser! Ainda ontem trabalhava tão bem!
O Lobato, sabendo bem qual o mal da viatura, brincava com a situação. Retirou qualquer coisa do bolso, aproximou-se pelo lado do condutor, deitou um olhar de entendido para o emaranhado de peças e fios que rodeiam o motor e disfarçadamente aproximou da entrada de ar o que retirara do bolso, ao mesmo tempo que ordenava:
- Dá lá ao motor de arranque.
O condutor accionou a ignição, o motor de arranque respondeu com esforço e para surpresa de todos a berliet começou a trabalhar ao fim da primeira tentativa.
- Pronto, está reparada a avaria. Sentenciou.
Naquele dia, a fama do Lobato subiu uma significativa quantidade de pontos. Para alguns, operara-se uma espécie de diálogo mágico entre o Cabo e a berliet.
- Ele consegue falar com elas, é o que é! Comentou alguém.
Apercebi-me que o Lobato voltava meter no bolso um pequeno frasco que continha um líquido incolor e quando lhe perguntei qual o segredo do líquido mágico respondeu simplesmente:
- Éter.
De facto, isso explicava tudo e anulava a componente mágica. Mas demonstrava que os seus conhecimentos não se ficavam pelo gosto ou empenho com que se dedicava às coisas da mecânica. Saber que os vapores do éter enriqueciam a mistura de ar e que isso facilitava a ignição, revelava a percepção exacta do fenómeno e das minudências da mecânica subjacentes ao funcionamento dos motores.
Bem se pode dizer que a C.Caç. 3441, teve sorte por ter ao seu serviço um cabo como o Lobato.

4 comentários:

Anónimo disse...

Quasi quarenta anos depois, os pormenores - até de mecânica - que nos trouxeste à memória! Lembro um veio de transmissão que caiu da berliet no mesmo trajeto e que um quilómetro depois nos obrigou a parar... e a ouvir o mesmo código a ser transmitido para a "casinha".
Recordo também, a partir da última foto, os sulcos marcados na picada, o do meio relativo ao diferencial, e os outros que possibilitavam ao condutor cruzar os braços e seguir pelo trilho como se fossem carris, enquanto o volante rodava freneticamente ao sabor das curvas...

Um abraço,

Óscar Morais

Egidio Cardoso disse...

É verdade.
Tenho bem presente esses momentos. Lembras-te que a berliet tinha acelerador de mão? Era como se fosse o automático. A profundidade dos sulcos da picada mantinham a berliet no trilho, dispensando por momentos o trabalho do condutor.
No post "ATASCADOS" (Fev 2010) está lá uma fotografia em que o condutor (o Ribeiro) está sentado sobre a porta enquanto a berliet continua a sua marcha.

Anónimo disse...

Queria também aqui prestar a minha homenagem aos serviços e equipa de mecânicos da C.Caç. 3441, mais conhecidos pela "Ferrugem", embora o nome do Lobato mereça uma menção especial, conforme já salientado no post.
O Lobato, não só tinha uma capacidade de trabalho extraordinária, como revelava um conhecimento profundo dos segredos da mecânica, fruto de alguma experiência anterior, mas também de um verdadeiro gosto pela profissão que haveria de abraçar.
O Lobato não se limitava a consertar as viaturas; para ele cada viatura era uma espécie de paciente que estudava e tratava quase como tal.
Se bem nos lembramos, as viagens ao Rivungo eram obrigatoriamente feitas com duas viaturas, por questões de segurança. Tendo em consideração que apenas três Berlliet poderiam estar operacionais, tenho a sensação que apenas uma ou duas dessas inúmeras viagens foi efectuada por uma única viatura, o que se constituía num perigo a que fomos obrigados a correr, em nome das necessidades dos companheiros que por lá se encontravam cerceados de todos os confortos e necessidades.
Sabendo nós quantas viagens foram realizadas naqueles longos e intermináveis dezoito meses e meio, entendo de toda a justiça deixar aqui esta nossa homenagem àquela equipa, que não fazia operações, mas permitia que outros as fizessem no tempo e segurança necessárias.

Talvez tardio, mas fica o nosso abraço e reconhecimento.

P. Cabrita

PILAO2511966 disse...

Caro camarada
Votos de saúde para si e todos os seus.

Estou ligado a um grupo de trabalho que tenta compilar os Distintivos das Unidades do antigo Ultramar Português.

Assim agradeço e requeiro que me envie,se possível, uma foto digitalizada do Guião e,ou do Distintivo da sua Companhia.

Envio-lhe o meu endereço:

ccbitton@gmail.com

Atenciosamente,sou
Carlos Coutinho