As celebrações do 10 de Junho, por muito que o tempo passe e queiramos evitar, é um dia que nos marca pelo seu significado e, sobretudo - àqueles que foram mobilizados para a Guerra do Ultramar -, um dia de regresso ao passado. O Tempo - que nem sempre tem "tempo" de lavar as memórias de uma juventude sofrida - atira-nos, de chofre, com as marcas e os sentimentos que vivem ainda dentro de nós, e faz reviver os afectos nascidos durante os meses de convívio militar. O dia 10 de Junho tem o efeito de catárse que limpa os males da alma e serena, ciclicamente, os espíritos ainda inquietos de duas gerações de portugueses
Reli, este fim de semana, o livro do cabo da C. Caç. 3441, Joaquim de Sousa, já falecido, "Memória de um Combatente". É um livro em verso, longe dos circuitos de venda, edição da família, que pretendeu dessa forma, manter vivo o espírito de um homem bom, que não conseguia esquecer o passado e a juventude perdida nos confins de Angola. Entre as minhas notas de apoio ás memórias da C. Caç 3441, que cada vez mais se vão diluindo com os anos que passam à velocidade da luz, encontrei este comentário que enviei, em Junho de 2008, ao capitão Cabrita - autor de 2 livros sobre a sua/nossa passagem em Terras de Angola - e parceiro na feitura deste blog.
Caro Cabrita:
De vez em quando a vida abana à nossa frente uns farrapos afectivos que nos devolvem a capacidade de dar passos atrás no universo das nossas vidas. Foi o caso do livro do Joaquim Sousa. Não vem ao caso nem o léxico nem a sintaxe, que são o que são para um homem que tinha a formação que tinha. Conta, aqui, a sensibilidade e o amor que se ganha a uma terra que não é a nossa, numa missão que não devia ser nossa com fins que nunca deveriam ter sido os nossos. Mas, na roleta que nos atirou para África, isso já não conta, porque o tempo e a vida (que nos come o tempo de vida), se encarregaram de diluir o mau, e, criar à superfície das recordações da juventude, uma nata de saudades que continua a envolver-nos numa afectividade comum e estranha, com aquela terra.
Confesso que me revi e revivi um pouco no calor, nos cheiros e sons da N’Riquinha. A África suga-nos a alma e, este livro, curioso porque escrito em verso, é a simplicidade, a inocência e a ingenuidade assumidas por um soldado que outra coisa não tem para se expressar, senão o feitiço em que foi envolvido por aquela terra. Deixa-se absorver por um sentimento tão forte que o inspira a aventurar-se numa escrita, que não é naturalmente a sua, e, revela um talento natural, mas não educado, que o leva a escolher a poesia para se exprimir, numa métrica difícil e mais difícil ainda de entender para quem não tem hábitos de leitura. Confesso a minha surpresa e espanto pela forma usada e perante uma sensibilidade que, todos nós que com ele convivemos, estávamos longe de adivinhar. A leitura não é fácil e o primor épico só existe na intenção. Mas, isso, é o menos!
O Sousa, foi, para mim, uma surpresa cuja intensidade só pode ser medida por almas que por ali andaram, nas “Terras do Fim do Mundo”.
O livro dele, esse montão de generosidade e calor humano, deveria ter sido apresentado na parada, perante toda a companhia e em sentido estando todo o kimbo presente, tendo nos lugares de honra o secúlo Sarikisse, as Reginas (rainhas dos amores clandestinos coloridos), o Dango, o Vicente e o João, e, ao fundo, no palco principal, as almas do Fulai Monjuto, do Morgado e do Furriel Gonçalves.
Li o livro este fim-de-semana, não pela qualidade da escrita, que o meu amigo, melhor do que eu, sabe não ser, sequer, razoável. Li-o pelo conforto espiritual que me deu e pelo acalmar dos demónios africanos que todos transportamos escondidos no nosso íntimo. De vez em quando sabe bem ser surpreendido por aqueles que julgamos tão vulgares como nós.
Caro Cabrita:
Ainda não comecei a ler o seu livro, coisa que vou fazer após serenar da envolvência e do aperto de alma deste turbilhão de emoções com que fui assaltado, para não dizer violado. Ás vezes o rodar do botão das saudades não está em nós, aparece-nos de chofre vindo de onde menos esperamos.
Foi um gosto revê-lo no sábado. Obrigado pela oferta do seu livro.
Um abraço
Gabriel
1 comentário:
O desaparecimento do companheiro Joaquim de Sousa transporta em si uma daquelas tragédias de vida que nos deixam abalados e incrédulos quando, abrupta, se desmorona sobre nós, não deixando sequer tempo para pensar quanto breve, e por vezes estranha, é esta nossa passagem pelos insondáveis caminhos da nossa existência
Qual Luís Vaz de Camões bateu um dia à minha porta erguendo bem alto, embora tímido, a sua lírica, pedindo que lesse o seu trabalho e o emendasse na medida do possível, porque um trabalho "... de um quase analfabeto bruto...", era como se designava, carecia de um enorme desbaste que lhe permitisse divulgá-lo ao mundo.
Foi uma surpresa; uma enorme e agradável surpresa.
A meias com o dr. Eduardo B. Aranha, demos-lhe pouco mais que uma "engraxadela" nas linhas mais arrevesadas, deixando-lhe o incentivo à sua publicação, para mais, tendo em conta o fervor com que o J. Sousa se determinava na sua divulgação.
O trabalho poético do Sousa não é nenhum tratado literário.
É a transcrição pura e simples de sentimentos intensamente vividos transpostos para o papel na forma mais intrínseca como os sentia; pela poesia.
Não há métrica. Ele confessou-me que nem sabia o que isso era. Porque se soubesse...
Pois, mas é aí que está todo o encanto do sabor popular e profundamente puro da linguagem poética do Joaquim de Sousa.
E é neste ínterim que a morte o surpreende, deixando-o ainda de pena na mão à espera de assinar o seu "tratado poético de guerra", guerra em que participámos sem pressentir a veia poética do Sousa, apenas conseguindo vislumbrar a sua bondade, carácter e simplicidade.
Mais uma vez a morte se enganou no tempo e na pessoa, conjugando apenas fria e insensata o verbo morrer.
E quanta poesia ficou por dizer...
P. C.
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