quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Disparos acidentais


Manipular armas, por si só, acarreta riscos. E o risco é ainda maior se estivermos a falar de armas de guerra. Foram feitas para matar e delas não podemos esperar misericórdia ou complacência. Lidar com armas exige respeito, disciplina e muitas cautelas. Mas, assustava-me especialmente a falta de jeito que muitos tinham para o seu manuseio. É verdade, os desajeitados quando andam com uma arma nas mãos, são duplamente perigosos.
E o mesmo é válido para os nabos. Quanto a estes, o perigo resulta exactamente da ignorância. Durante a minha curta vida militar, encontrei uma mão cheia deles. Incapazes de perceber particularidades importantes do funcionamento de uma espingarda, agiam inconscientemente e cometiam erros por vezes fatais.
Havia ainda os que tinham pavor a armas. Olhavam-nas como se estas lhes mordessem e entravam em pânico só de pensar que teriam de fazer fogo. Descontrolavam-se com os estampidos e o cheiro a pólvora e o medo levava-os a disparar sem sentido. Fechavam os olhos e premiam o gatilho contorcendo-se em caretas de horror. O tiro, esse saía para onde calhasse.
Durante a instrução, os procedimentos e as regras de segurança eram repetidos vezes sem conta. Uma delas, considerada a regra das regras, dizia: nunca se aponta uma arma a ninguém, mesmo que se tenha a certeza de que está descarregada. Nunca. Nem a sério nem a brincar. E isto não era um conselho, era uma ordem. E na tropa, ordens são para serem cumpridas.
Contudo, tal rigor não obstou a que, bem cedo, tenha sentido um arrepio, ao ser confrontado com o flagrante esquecimento de regras tão elementares. Durante a primeira instrução de tiro aos recrutas que me saíram em sorte, a G3 de um deles encravou. Sei lá, não disparava. Ignorando as recomendações que, pouco antes, repetira por mais de um par de vezes, virou-se para mim com a arma em riste e gritou por entre o barulho dos disparos de instrução:
- Encravou! … não dispara!
E pressionava insistentemente o gatilho mantendo a arma apontada para mim como a querer confirmar o óbvio.
A minha sorte é que, daquela vez, a arma, por qualquer mau funcionamento ou sorte minha, encravara de facto. Por vezes, quando o problema era apenas da percussão, o disparo dava-se à segunda ou terceira insistência. Não o foi daquela vez, caso contrário não estaria aqui a contar este episódio.
Mas ainda me lembro que desviei a arma com um golpe brusco, mimoseei-o com um chorrilho de asneiras que atingiu a sua inocente progenitora e provavelmente mais uns quantos membros da sua família e encerrei a questão com um valente pontapé que acertou em cheio no rabo do recruta.
Ainda não refeito do inusitado episódio, dedo em riste apontado ao nariz do infeliz, mas com vontade de partir para o estaladão, voltei a repetir, com voz nitidamente enervada e quase gritada, o aviso feito escassos minutos antes do início da instrução de tiro:
- Não se aponta a arma a ninguém, mesmo que se tenha a certeza que está descarregada.
Coçando o fundilho das calças procurando amenizar o ardor causado pelo impacto da bota, balbuciou à laia de justificação:
- Não disparava!
Fica assim demonstrado que, não obstante o rigor e solenidade postos no seu ensinamento, as regras de segurança eram frequentemente esquecidas ou ignoradas e muitas vezes não compreendidas por gente sem vocação ou jeito para as lides militares, e com consequências funestas. Uns entendiam que eram tretas, teorias da tropa, outros nunca chegaram a perceber o seu significado. Mas a verdade é que, durante o tempo que durou a guerra do ultramar, muitos morreram em consequência do desleixo e do seu não cumprimento e em quase todas, nem sequer foi precisa a intervenção do inimigo.
Numa altura em que até os quase cegos e os semi-aleijados eram obrigados a cumprir serviço militar, era visível, a olho nu, a falta de vocação de muitos, tropeçando-se frequentemente com um bando de desastrados irresponsáveis, autênticas ameaças para quantos andassem por perto.
Esta realidade obrigava a redobrar os cuidados postos no ensino da arte da guerra, repetindo-se até à exaustão instruções papagueadas, recomendações redobradas, avisos solenes complementados com ameaças de severos castigos ao desastrado prevaricador. Insistia-se na explicação do funcionamento de cada espingarda, das dezenas de peças que as compunham, sua função, particularidades, manias, pontos fracos e pontos fortes. Limpava-se e oleava-se cada peça, uma e outra vez, mesmo que já não restasse ponta de sujidade nem se vislumbrasse sinal de ferrugem. Escarafunchava-se cada ranhura, cada molinha, cavilha ou pinchavelho. Montava-se e desmontava-se a arma vezes sem conta, por rotina ou em testes de destreza, para ver quem o fazia mais depressa. Premiavam-se os mais capazes e mantinha-se vigilância apertada sobre os inábeis. Explicavam-se as consequências nefastas do incumprimento das regras, falava-se do azar que perseguia os mais desleixados e da sorte que acompanhava os zelosos.
Mas, acabara o tempo de instrução e do faz de conta onde tudo era teoria, simulação e encenação. No teatro de operações era a sério: as balas eram reais, as granadas explodiam de facto e o inimigo era verdadeiro. Experimentávamos o medo, de braço dado com o stress gerado pela expectativa torturante do ataque. Sim, agora o deslize, a distracção, o acidente, estavam sempre à espreita, à vez ou todos ao mesmo tempo, conluiando-se em cabalas de morte, como aquela que nos levou o Gonçalves, um furriel dos bons, amigo e camarada, dos nossos. Morreu de forma violenta atingido em cheio pelo cone de fogo provocado por disparo acidental de um lança-granadas quando, como mero espectador, espreitava a azáfama de uma simples e inofensiva acção de verificação do estado do armamento e munições.
De nada lhe valeu o saber do escrupuloso cumprimento das medidas de segurança, das rotinas e cuidados com o manuseamento das armas, com a sua manutenção ou com as cavilhas de segurança. Aquela granada nem chegou a explodir. Nem sequer fora descavilhada. Enterrou-se inofensiva no lodaçal do Rio Cuando, não sem antes deixar um bafo quente de morte atrás de si, provocado pela labareda do disparo.
A verdade é que, parte substancial destes procedimentos e cuidados era preocupação de cada dia. Cumpriam-se especialmente quando se saía e quando se regressava das operações.
Especialmente nas chegadas. Por regra, logo ali onde as viaturas nos largavam, no limite inferior da parada poeirenta e antes do desejado duche, cumpria-se o mesmo ritual. Arma apontada para cima, culatra puxada atrás, pressionava-se o gatilho uma e outra vez e repetia-se tudo de novo procurando garantir que nenhuma munição ficava na câmara. Só depois cada um ia à sua vida. Matar a sede, livrar-se do sarro e descansar da estafa.
Mas, ainda assim, e porque há sempre uma excepção, todos os cuidados eram poucos. Afinal estamos a falar de acidentes e, por muitas cautelas que se tenham, os acidentes acontecem.
Corria a tarde, quente, com um efeito paralisante sobre os corpos. Caminhar exigia um esforço para além do habitual e havia pouco que fazer. A maior parte dormitava por aqui e por ali. Outros, simplesmente jaziam espojados. Alguns preguiçavam à sombra enquanto uns quantos se entretinham em jogos de bisca lambida ou monótonas partidas de sueca matando a sede com a cerveja semi-fresca saída de frigoríficos alimentados a petróleo sem força para vencer a canícula. Com excepção da área da cozinha onde o tilintar de tachos anunciava o início da preparação do jantar, o silêncio imperava. A imperceptível brisa, intimidada pelo calor grosso e implacável, era incapaz de tirar as duas ou três árvores da quietude a que se haviam remetido. Nem o mais pequeno murmurejar se ouvia por entre o cansado movimento das suas folhas amolecidas pelo sol escaldante.
O Cabral, por qualquer razão que não retenho, resolveu entreter-se com a arma. Provavelmente achou que precisava de ser limpa ou então preparada para uma qualquer saída e não encontrou melhor lugar para o fazer do que a caserna, ali, sentado na beira da cama. O Silva, que ocupava a cama de cima - as camas estavam dispostas em beliche, duas a duas – preparava-se para escrever à namorada, ou à família, tanto faz. No dia seguinte passava o avião do correio e no outro lado do mar havia gente ansiosa aguardando notícias. Como de costume, sentara-se na cama, colocara a mala à frente dos joelhos em jeito de mesa, dispôs sobre a mesma a folha de papel e concentrou-se. Podia ter escolhido o refeitório, mais a jeito e com espaço para dar e vender. Mas o seu canto era aquele. Ali dormia e ali sonhava, por vezes acordado. Nã… escrever à miúda exigia recato, inspiração e tempo. E ali o seu cantinho oferecia a intimidade necessária. Para além do mais, dentro da mala de viagem que usava como escrivaninha, guardava a caneta, as folhinhas amarelas de aerogramas ainda virgens e, mais importante, as cartas recebidas a que importava responder.
Na cama de baixo, às voltas com a G3, o Cabral, talvez para confirmar que o mecanismo estava bem oleado, premiu o gatilho. O disparo deu-se, inesperado, com estrondo. Seguindo a orientação do cano, a bala passou pelo colchão da cama por cima da sua, trespassou a mala feita escrivaninha, assobiou aos ouvidos do Silva, perfurou a chapa de zinco ondulada do telhado e desapareceu no azul do céu.
O Silva levou um susto de todo o tamanho largando a caneta num gesto brusco, mais em consequência do estrondo inopinado do que da bala que quase lhe roçara a cabeça. Na verdade nem dera por ela e só mais tarde se lembrou que ouvira um ruído sibilante.
O susto do Cabral não foi menor e com o coração a cento e vinte batidas por segundo, não reagiu. Ficou-se a olhar a arma como que a tentar compreender o que sucedeu, surpreso por descobrir, da pior forma, que havia uma bala na câmara pronta a disparar. Infringira uma das tais regras elementares e não sei se terá chegado a tomar consciência do que ia acontecendo, pelo menos no momento. É que, a percepção efectiva da desgraça, só deverá ter atingido as consciências mais tarde, talvez com maior intensidade à noite, na quietude silenciosa que antecede o adormecer.
A desgraça batera à porta mas, felizmente, não quis entrar. Como sinal da sua passagem, apenas restou uma mala de cartão furada e um buraco no tecto da caserna.
Ficou mais uma vez demonstrado que as regras repetidas durante a instrução não eram treta. Resultavam de experiências que, pela frequência com que ocorriam, foram conferindo validade aos avisos. À regra de nunca se aponta uma arma a ninguém, havia que acrescentar-se: nem se carrega no gatilho a menos que seja necessário.
Não me admiro nada que, naquele fim de tarde, muitos tenham ido verificar a sua arma. Com a consciência tranquila dorme-se melhor e sempre mais vale prevenir que remediar.

4 comentários:

Afonso Loureiro disse...

Tirando os pormenores que tornam única esta história, passou-se exactamente o mesmo com um grande amigo meu, sargento de operações especiais em Angola.

Também ele precisou de limpar a arma e escolheu a caserna, por ser o sítio mais fresco. Vinha coberta de lama da última operação e achou por bem começar por passar um pano pela arma antes de a desmontar. Nesse dia, contou-me, lembrou-se de enfiar o pano pelo gatilho e limpar a guarda por dentro. Descobriu depressa haver uma bala na câmara. Nesse Verão, sempre que chovia, o buraco no telhado lembrava-o da aselhice...

Era soldado experiente, mas o cansaço fê-lo esquecer as regras mais elementares.

Egidio Cardoso disse...

Mais um caso, idêntico a tantos outros. E o pior que ocorriam com mais frequência do que se possa imaginar.
Um abraço, Afonso.

jose monteiro disse...

Estive em Moçambique de 1967/69.
Também tivemos um acidente igual em Mueda, mas com consequencias mortais.Foram três envolvidos, o dono da arma, quem disparou e o que faleceu.
Gostei do artigo,muito bem escrito.
José Monteiro
www.batalhãocacadores1916.co.cc


Um abraço para todos os EX_COMBATENTES

Anónimo disse...

Disparos acidentais e alguns com
consequências fatais,não creio ha_
ver, ao longo do conflito ultrama_
rino,Companhia ou Pelotão,que não os tenha tido, por esta ou aquela
razão.Na"minha"Companhia, foram três,duas com muitos ricochetes e o
consequente buraco no zinco.A ter_
ceira,o soldado com a arma quase desmontada(sem coronha)mas com o a_
parelho de disparar e a culatra
montados,uma bala na câmara e....
uma das mãos na boca do tapa-chamas
A mão ficou esfacelada,a culatra da
G3,voou até à parede, fazendo-lhe
um rombo.Comigo também se passou
algo,mas hilariante e ao mesmo tem_
po ridiculo.Ao certo não me lembro
do motivo, pelo qual o nosso CC,uma
vez nos ordenou, que batêssemos uma
zona à volta do aquartelmento,com
tiros curtos de morteiro de 60.Ti_
rei a cavilha de segurança da cabe_
ça da granada,aproximei-me do lado
direito do morteiro,segurando a
granada verticalmente e com as duas
mãos,aproximei-as da boca do mor_
teiro, introduzi a granada até meio
largueia e descaí para o lado.A
granada não saíu.Ali próximo estava
o Alferes FD,bom rapaz, culto, da
minha idade 24 anos.Então N,a gra_
nada não saíu?devia tê-la empurrado
com força?.Aí eu "passei-me", dis_
se-lhe sr.Alferes,eu sou cabo, mas
o sr. sabe que eu não vim do con_
tingente geral,ao dizer-me tal coi_
sa, põe-me ao nivel de um pobre Bá_
sico,sabe que eu tenho o CSM,não
sabe?.Sem mexer na arma e muito me_
nos olhar para dentro do tubo disse
o que sabia de morteiros, em lado
nenhum tinha sido instruido a" em_
purrar" a granada, afim de ser per_
cutida,por gravidade ela cai em ci_
ma da ponta percutora na culatra do
morteiro.O CC ouviu a nossa troca de "opiniões"aproximou-se da arma,
calmamente abriu o alvélo do prato,
soltou a culatra, inclinou o tubo
para a frente do bipé,suavemente fez sair a granada,meteu-lhe outra
vez a cavilha de segurança,visto
não ter havido percução a segurança
de enercia da granada continuava
activa,já que esta só funciona uns
segundos após o engenho sair do tu_
bo,sem ser especialista em mortei_
ros, foi isto que aprendi em Tavira
O CC pegou no tubo olhou bem lá no
fundo e disse,a culatra não tem a
ponta percutora.E o pirata era eu?.
CN

minha