domingo, 1 de agosto de 2010

O Furriel NETO

A companhia estava desfalcada de furriéis. A morte do Gonçalves, para além da saudade imensa, deixara uma vaga que demorava a preencher e havia tempos que o Duarte (o palúdico) em consequência da sua permanente luta contra o paludismo, tinha sido transferido para o Cuito Cuanavale.
Na verdade, menos dois furriéis pode parecer coisa de somenos importância, mas contando que o segundo-sargento Sousa não participava na actividade operacional e que o P. Costa, queixando-se de asma, fora confinado a actividades que não iam além do perímetro do arame farpado, a sobrecarga sobre os demais começava a fazer-se sentir. Ao fim e ao cabo isso significava que as actividades mais desgastantes e de maior risco que em princípio seriam repartidas por uma dúzia de furriéis, estavam a ser garantidas por apenas oito. E menos quatro elementos, por si só, mais do que justificava a expectativa de ver chegarem reforços.
Os comandos e respectivas estruturas de recursos humanos estavam ao corrente, mas a reposição do quadro de sargentos da companhia tardava. Relegados para os confins das terras do fim do mundo quase nos convencíamos que o assunto estava esquecido e por isso, teríamos de nos aguentar até ao fim, já que refilar não adiantava.
Até um dia. Quando já ninguém pensava no assunto, o esperado reforço desceu pelas estreitas escadinhas do Nord que acabara de aterrar na pista de terra vermelha para mais um reabastecimento semanal.
Parou e olhou em volta como que se avaliasse o local. Não disse nada, mas não seria de estranhar que no seu íntimo se sentisse como se tivesse sido largado no fim do mundo. Pelo menos achei que o seu semblante parecia maldizer a sua sorte. Provavelmente questionava-se em silêncio, à medida que, carregando as suas coisas, caminhava em direcção à camarata.
- Que mal fiz eu para vir aqui parar?
Na verdade, Angola teria certamente, espalhados pelo seu vasto território, muitos locais distantes e isolados. Mas a Neriquinha estaria certamente entre os mais remotos e inóspitos.
A chegada deste desconhecido constituiu uma surpresa e em dose dupla; uma, porque chegou sem aviso, outra pela cor da pele. Quando se esperava um maçarico, vindo directamente do puto, sai-nos na rifa um furriel negro, africano de nascença e angolano de gema. Com efeito, nestes casos, era costume o recurso a rendição individual, recaindo a escolha em alguém que já pensava escapar a uma mobilização. Mas não. Parece que optaram por quem estava mais à mão.
Na verdade, o Neto fora mandado para a Neriquinha pela disciplina militar em consequência do seu mau comportamento. É verdade, fora punido militarmente. Como se dizia na tropa, levou uma porrada de todo o tamanho e como se isso não bastasse, juntaram à pena uma guia de marcha para os confins da savana, o limite mais afastado do território.
Levei algum tempo a digerir este facto. Afinal, sem que ao longo da nossa ainda curta carreira militar, tivéssemos feito algo de censurável ou que justificasse uma punição, fôramos colocados num local para onde, pelos vistos, a título de pena acessória, eram enviados militares mal comportados.
Nunca soube exactamente o que raio teria feito de tão grave para ser punido de forma tão severa. Se bem me lembro, nos primeiros tempos, desconhecíamos esse facto e o seu comportamento reservado em tudo o que se relacionasse com a sua vida pessoal não o permitia descobrir.
Inicialmente apenas se revelou dependente do álcool, mas com um sentido de humor extremamente apurado. Até na forma como segurava a garrafa de cerveja que fazia questão de manter como companhia permanente. E permanente significa mesmo isso. Começava a beber logo de manhã, assim que se levantava e continuava noite dentro, mesmo depois de deitado, das luzes apagadas e da maioria já estar a dormir profundamente. No meio do silêncio da noite, ouvia-se, de vez em quando o glu de mais um gole ou o clock anunciando a abertura da derradeira garrafa da noite.
O efeito de tanta cerveja manifestava-se de várias formas: na voz entaramelada, no andar cambaleante, nos olhos mortiços amarelados e algo raiados de sangue, no gesto lento e desajeitado como levava a garrafa à boca, ou na forma como lidava com o cigarro que nunca largava. Para que não caísse, segurava-o espremendo-o fortemente entre os dedos. Esquecendo-se frequentemente que o tinha aceso, deixava o morrão de cinza alongar-se até cair naturalmente onde quer que fosse, ou sacudia-o violentamente quando a proximidade da incandescência lhe queimava os dedos. Certa vez, a anestesia alcoólica impediu-o de se dar conta disso; a queimadura provocou duas grandes bolhas entre os dedos indicador e médio, a que não pareceu dar importância.
As tonturas que o assolavam deram origem a uma das suas máximas mais recordadas. No silêncio da noite, às voltas com as duas últimas cervejas, o desconforto da vertigem provocada pelo excesso de álcool tornou-se óbvio. Remexendo-se na cama ao meu lado, soltou mais uma das suas saídas humorísticas; como se delicadamente culpasse a cama do desconforto, balbuciou num lamento quase suplicante:
- Dona cama, por favor, deixe de ser rotativa.
Creio que adormeceu pouco depois. A respiração pausada e profunda assim o fazia supor.
Mas o Neto não lutava apenas com a cerveja. Declarara guerra aos mosquitos e parecia óbvio a toda a gente que as melgas estavam a ganhar. Ainda assim, insistia em dispensar a rede mosquiteira e como normalmente tinha dificuldade em se despir, era frequente adormecer vestido, esticado sobre a cama. A verdade é que não me lembro de o ver armar a indispensável rede que nos protegia dos vorazes insectos.
- Se me picarem, embebedam-se.
Brincava, consciente da elevada quantidade de álcool que circulava no seu sangue.
Outras vezes, insistia que as melgas eram naturalmente afastadas pelos vapores alcoólicos que exalava.
Um dia, talvez vencido pela bebedeira, deixou-se cair na cama de qualquer forma. Adormeceu do avesso que é como quem diz, com os pés para a cabeceira e a cabeça para os pés. Acordou na manhã seguinte, eufórico, rindo-se sozinho. Sem que percebêssemos de imediato o que se passava, exclamou:
- Ah! Ah! Ah! Enganei-as!
E insistia referindo-se às melgas.
- Enganei as gajas! Queriam picar-me a cabeça, mas apenas encontraram os pés.
Certa noite, um grilo resolveu assentar arraiais no nosso dormitório não deixando ninguém dormir com o seu cantar estridente. O Neto deu-lhe caça, jurando comê-lo mal o tivesse a jeito. Com persistência e alguma paciência, conseguiu por fim apanhá-lo. Era um bicho enorme, de cor esbranquiçada em contraste com o negritude normal de qualquer grilo. Mirou e remirou a estranha criatura e, encenando uma espécie de reprimenda, sentenciou:
- P´ra cantares tão mal, tinhas que ser branco!
O Neto era assim; ao mesmo tempo que brincava com a sua dependência alcoólica e consequentes gafes, insistia em desafiar a ferocidade do mosquitame e surpreendia-nos com o seu humor inteligente. Mesmo na mata, durante as operações, a cerveja continuava presente. Chegou a pagar do seu bolso a carregadores para lhe transportarem a cerveja que considerava não poder dispensar.
Mas havia períodos de lucidez, não obstante estes se confinarem à primeira metade da manhã e pouco mais, ou então durante o tempo em que estivesse fora, participando em operações e por isso, com acesso limitado à cerveja. Aliás, tudo dependia da quantidade de álcool que ingeria e é preciso ter em atenção que, para o Neto, meia dúzia de cervejas era coisa pouca.
Aos poucos fomos descobrindo as diversas facetas da sua rica personalidade. Para surpresa de alguns, o Neto revelava-se acima da média, estejamos a falar do ponto de vista cultural ou intelectual. O seu jeito para a escrita e os visíveis conhecimentos literários e não só, eram disso sinais mais do que evidentes.
A tudo isso juntava a sua fértil imaginação, animando os dias pastosos e monótonos onde só de vez em quando acontecia alguma coisa diferente. Ficou na memória de todos o jornal de parede que criou. E o mais interessante é que apenas ele escrevia, desempenhando o papel de jornalista solitário.
Fosse como fosse, a verdade é que se criou o hábito de diariamente não se dispensar a leitura das notícias, movidos mais pela curiosidade de descobrir, em cada dia, os acontecimentos sensaborões que haviam merecido a atenção jornalística do Neto. Interessante era ver a forma inteligente como coloria com textos bem conseguidos os corriqueiros momentos a que não dávamos importância e que, na sua maior parte, passavam despercebidos à maioria.
O tempo que o Neto esteve connosco constituiu um marco e impôs naturalmente uma etapa bem delimitada na nossa estada por aquelas bandas, marcando pontos e ganhando amizades. Aquele negro que nos saiu na rifa passou a ser o principal centro de interesse, contribuindo para colorir e apimentar a monotonia dos nossos dias. E pelas melhores razões.
Da sua faceta de indisciplinado, não vimos sinal, a menos que se tivesse regenerado na sequência da porrada que levou, hipótese que não me parece adequada. Não me parecia fácil dobrar o Neto por essa via. Mas na verdade, nunca o vi sequer refilar quando era incumbido de qualquer tarefa ou missão, por mais desagradável que fosse. Dessa sua tendência para o incumprimento da rígida disciplina militar, apenas sobressaía o seu sarcasmo à mistura com a forma desleixada como misturava o fardamento com peças de roupa desalinhada, compondo, com uma barba mal semeada e nunca tratada, o ramalhete da informalidade e do pouco cuidado que dispensava à sua figura.
Já não nos acompanhou quando nos mudaram para as Mabubas. Ao comandante da companhia, fora remetido pelas instâncias militares, um conjunto de documentos oficiais que ditavam a sorte que a disciplina militar lhe reservou. Afinal o que quer que tenha feito, lá no sítio de onde veio, deveria ter sido mesmo grave. A pena aplicada, para além da sua transferência para a Neriquinha, incluía a despromoção a soldado raso, o que trouxe mais um problema administrativo ao nosso primeiro - pelos vistos, a despromoção parecia ter sido aplicada com efeitos retroactivos o que implicava ter de devolver os ordenados que já recebera como furriel.
Não sei se o fez, ou como fez, apenas me lembro de o ver partir, carregando as suas coisas, mas já sem divisas sobre os ombros.
O soldado raso, ex-furriel Neto, abandonava-nos definitivamente. Nunca mais soubemos dele, mas as histórias das suas máximas, dos seus tiques e meneios, do seu humor inteligente, sarcástico e mordaz, foram recordadas, contadas e recontadas até à saciedade. Ainda hoje são relembradas.

6 comentários:

Gabriel Costa disse...

127 dias! Foram uma série de castigos seguidos que somavam 127 dias!
Um dia, farto de esperar pela peluda, foi ter com o 1º Pinto e perguntou-lhe quando ía embora, pois o seu tempo de tropa há muito que terminara. Incrédulo, o 1º Pinto recebeu a informação de que, antes de abandonar a tropa, teria de pagar 57 contos ao Exército de prés indevidamente recebidos porque deveria ter sido despromovido há muito tempo.
- Pagar? Tá bem, tá! Cunque?

Antº Rosinha disse...

Só nós mesmo, na nossa santa ingenuidade comandada por Salazar, numa confusão daquela guerra do Minho a Timor, podiamos assistir a um 1º da companhia a cobrar umas refeições a um passa fome naquele fim do mundo.

Que em qualquer momento podia ser um heroi nacional.

Sim porque qualquer um de nós, naquele tempo era candidato a uma medalha no 10 de Junho a título póstumo.

Quando hoje assistimos a estes banqueiros e políticos e presidentes de câmaras desaparecerem com triliões...que nós tenhamos muita saúde para ver constrastes por muitos anos.

Será que Salazar existiu ou teria sido uma imaginação daquele 1º sargento?

Egidio Cardoso disse...

Caro amigo Rosinha.

O seu comentário, exige que eu faço um reparo.
É que, de facto, o nosso primeiro não o merece.
Era um homem honesto, competente e querido de todos nós. Talvez a pessoa mais humana que conheci na tropa. Se quiser saber o que eu penso dele, leia o post (o nosso primeiro) publicado há uns meses atrás.
Toda a história disciplinar do Neto é anterior à sua vinda para a Neriquinha. Connosco, e tirando a sua tendência alcoólica, portou-se sempre bem. Era um homem culto e em tudo diferente de um “Zé Ninguém”. Penso até que não faria grande mossa às suas finanças repor a referida verba.
O nosso primeiro apenas se viu obrigado a aplicar o regulamento e apostaria que o fez contrafeito.
Eram ordens vindas de cima. Fora da alçada do comandante da companhia e creio que até do batalhão

Anónimo disse...

Egidio Cardoso, para mim, quando falo num 1º sargento que não conheço e num furriel/soldado passa fome que não conheço, englobo todos os que por lá andámos em plena guerra, em que fomos todos um autêntico soldado desconhecido com o seu pré contadinho na ponta do lápis, em que se contabilizava a ração de combate, em que o mapa do rancho tinha que fechar as contas a zero, quando hoje sabemos como são os milhões em submarinos que não se vêm, em milhões por meia dúzia que vão para a Bósnia, tudo isto misturado com os actuais gestores e banqueiros, faz-me lembrar os tostões que o botas de Santa Comba orçamentava.

Se aquela guerra fosse hoje, em vez de Salazar o 1º sargento tinha o Sócrates na imaginação, e aí...era tudo mais folgado!

Era só isso

Cumprimentos

Anto Rosinha

Anónimo disse...

Para não passar pelas agruras e os
vexames do Neto,optei por levar a
"porrada" e a não promoção cá da
Metrópole.Aliás,já contei parte da minha Estória neste blogue.O Neto
sendo um indivíduo com um bom inte_
lecto,provávelmente não o era psi_
cologicamente para a tropa e muito
menos para o tipo de guerra que nós
tinhamos que enfrentar.Eu além de
ser filho de paramilitares,já tinha
lido uns livros sobre a tropa e so_
bre tipo de guerra de guerrilhas.
Li:Os Boinas Verdes;Os Pretorianos;
OS Centuriões e a tremenda tareia
que os Franceses,apanharam em Dien
bien Phu,fruto do militarismo e in_
competência do general Navarre.Li
mais uns tantos,mas o que me "en_
cheu"as medidas foi um escrito por
Hans Hellmut Kirst,passado na 2ª guerra mundial,um livro anti-mili_
tarista e um bom narrador do que é
ser-se: perigoso;lambe-botas e in_
competente.Quantas vezes ao longo da sua leitura,me achei na pele do
tenente Kraft.
CN

Carlos Ademar disse...

Bela história e bem contada.
Um episódio bem à dimensão do Homem. Episódio vivido num meio e num tempo onde, por todas as envolvências, talvez faltasse à generalidade da massa humana capacidade de espírito crítico para melhor o avaliar.
Uma bela personagem este Neto. Deu-me muito prazer esta leitura. Parabéns.
Carlos Ademar