Na guerra colonial em qualquer dos territórios das antigas províncias ultramarinas, o exército português contou sempre com o apoio de grupos recrutados entre a população nativa.
O objectivo era óbvio. Envolver as populações no esforço de guerra e dar-lhes importância eram formas de arregimentar homens que, a não ser assim, poderiam engrossar as hostes dos guerrilheiros.
Para nós, que andávamos no terreno, a importância destes grupos não se esgotava na vertente política e de acção psicológica; era mais do que isso. Não sendo militares formados com o rigor de um exército, apresentavam fragilidades ao nível operacional, mas constituíam uma mais valia importante, designadamente porque conheciam o terreno, movimentavam-se na mata com desenvoltura por largos dias e eram quase auto-suficientes. Conhecedores dos segredos da savana, sabiam onde arranjar alimento, quase dispensando a ração de combate e eram capazes de, com muito menos esforço, vencer distâncias em menos de metade do tempo do que as nossas tropas.
Na verdade, a sua existência era primordial. Poupavam-nos a uma parte das operações esgotantes, aliviando o nosso esforço e constituíam guias de confiança no meio de um terreno isento de pontos de referência onde era fácil perdermo-nos.
Aos elementos destes grupos, denominados GE’s, (Grupos Especiais) era atribuído um ordenado, disponibilizado fardamento e entregue armamento o que, naqueles locais, constituía por si só, razão suficiente para convencer elementos da população a integrarem estas tropas por tempo indefinido.
O grupo da Neriquinha não era muito numeroso. No todo, talvez o equivalente a um pelotão, mas eram suficientes para levarem a cabo missões militares com alguma importância.
Fulai Monjuto era o seu comandante, incumbência que levava muito a sério, impondo aos seus homens disciplina e padrões de comportamento que considerava adequados a tropas. Para além disso, era pessoa de quem se gostava. Fiel ao seu ideal, optara pelo nosso lado por convicção própria, creio, e não porque um qualquer discurso mais bem elaborado o convencera. Acima de tudo era alguém em quem se podia confiar.
No outro lado da barricada um grupo de guerrilheiros movia-se entre território angolano e as suas estruturas de suporte na Zâmbia, atravessando a fronteira através de caminhos que cruzavam a chana do Cuando e que procurávamos controlar. Operavam algures na savana imensa da Quirongosa lá para os lados de Mavinga, em bases móveis suficientemente afastadas e difíceis de localizar. O seu comandante, dizia-se, dava pelo nome de Kuenho e constava que seria um irmão, ou meio-irmão, do Fulai.
Contudo esse parentesco nada representava em termos de afinidade ou afectividade. Por ali, os guerrilheiros consideravam os GE’s traidores à causa e falava-se do ódio visceral que nutriam uns pelos outros.
O Kuenho e os seus homens já tinham sido acossados por diversas vezes em operações levadas a cabo por grupos de comandos, chegando a constar que o seu comandante tinha sido abatido numa das incursões feita pelo capitão Vítor Alves quando comandou a Companhia da Neriquinha, um par de anos antes de nós. Mas não havia certezas de que isso fosse verdade.
Parece que o grupo se tornou mais activo do que seria de desejar, facto que terá determinado a preparação de uma grande operação visando controlar os seus movimentos e anular a operacionalidade que vinha manifestando.
Dessa demanda não conheço pormenores, já que as justificações para as operações e forma como eram preparadas ficavam sempre nos segredos dos gabinetes das altas patentes. A nós, apenas competia executá-las sem refilar e sem fazer perguntas e normalmente sem se saber ao que íamos.
A verdade é que foi preparada uma operação envolvendo parte significativa dos efectivos das companhias da Neriquinha e Mavinga incluindo os respectivos grupos de GE’s, operação levada a cabo com grande aparato e estratégia meticulosa de progressão no terreno que deveria bater parte da imensa savana da Quirongosa e um largo troço das margens do rio Toss. Assim, a força foi dividida em dois grupos: um, constituído pelos GE’s e outro, pelo conjunto do pessoal da 3441 e da companhia de Mavinga. O objectivo seria bater o máximo de área possível, encontrar infra-estruturas do inimigo, destruí-las e pelo caminho recolher indícios da sua actividade.
Parece que esse desiderato não foi atingido, já que nem sinais dos guerrilheiros, o que não constituía surpresa. Numa área tão imensa e incaracterística, tinham toda a vantagem a começar pela sua resistência passando pelo conhecimento do terreno e acabando nas suas aptidões inatas de subsistência e sobrevivência.
Mas não andavam longe. Pelos vistos resolveram ignorar a tropa e, sem se fazerem notar, seguir na peugada dos GE’s. Ou então a descontracção e excesso de confiança dos GE’s, talvez resultante dos muitos anos que levavam naquelas andanças sem que tivessem sofrido dissabores graves, deixava-os descontraídos, talvez de mais. Ao fim da tarde, aportaram à chana que ladeava o rio que por ali corria. Já o conheciam como um lugar aprazível, ideal para descansar e pernoitar.
Largaram os equipamentos por aqui e por ali, abandonaram as armas pelo chão ou encostadas às árvores, descalçaram-se, despiram-se e correram para a fresquidão da água para se livrarem do pó que se colara ao suor do corpo.
O grupo do Kuenho esperou pela melhor oportunidade e no exacto momento em que a descontracção era total, despejaram todo o seu poder de fogo sobre os GE’s que, estando em campo aberto e sem o que quer que seja onde se pudessem proteger, foram caindo um após outro sob o fogo intenso do inimigo sem a mínima oportunidade de chegarem às armas abandonadas a escassos metros.
A tarde calma tornou-se rapidamente num inferno cruzado por balas vindas de todos os lados contra GE’s seminus e descontraídos. Encurralados, desorientados e desarmados, procuraram a fuga sem sentido ou lógica por entre a impiedosa metralha. Correram pela mata sem olhar para trás. Os primeiros chegaram a Mavinga algumas horas depois, sem roupa, sem ânimo, sem nada, quase mortos de cansaço, derrotados até ao mais profundo dos seus sentimentos. Para trás, prostrados no terreno, ficaram os corpos dos que não conseguiram escapar.
No dia seguinte, uma missão de resgate, com ajuda da força área, contou treze mortos. Quatro eram do grupo da Neriquinha entre os quais o do seu comandante. O corpo de Fulai Monjuto jazia, crivado de balas, muito mal tratado, a evidenciar a fúria, a raiva vingativa e o ajuste de contas dos seus conterrâneos que militavam no outro lado da barricada.
Mas havia um quinto elemento do grupo do Fulai. Seminu, ensanguentado, apresentava feridas de bala por quase todo o corpo. Pelos vistos nenhuma atingira um órgão vital. Inanimado terá sido dado como morto pelo inimigo. Sobre a madrugada, o frio do cacimbo despertou-o, mas estava demasiadamente ferido para se mover. Um helicóptero levou-o para Serpa Pinto, sem grandes esperanças. Na altura parecia impossível ainda estar vivo. Mas, contra todas as previsões, recuperou.
Falei com ele quando regressou à Neriquinha passada a fase da convalescença. Falava pouco. Como resposta às nossas perguntas apenas sorria e despia a camisa para mostrar as cicatrizes. Era impressionante a forma como o seu corpo ficou marcado. Mesmo que não tenha sido atingido num órgão vital, o que só por si parecia impossível, não era crível que um ser humano pudesse ter resistido a tanto. O GE tinha certamente uma estrelinha protectora ou então um anjo-da-guarda muito influente.
Quanto ao Kuenho, soube-se mais tarde que uma operação mais bem sucedida, levada a cabo já depois de termos saído do Cuando Cubango, logrou abatê-lo. Parece que hoje é um herói angolano. Dizem que existem várias escolas e alguns monumentos que foram baptizados com o nome “Comandante Kuenho”. Creio que apenas o pessoal da 3441 se recorda do Fulai Monjuto. Boas recordações certamente. Contudo, nenhum se lembrará sequer onde foi sepultado. Onde quer que tenha sido, para lá ficou sem epitáfio, honrarias ou reconhecimento por parte da causa que serviu.
6 comentários:
Meus Amigos,
Por aí andei também já lá vão muitos anos mas relembrei situações aí vividas nessa altura.
Na realidade Vitor Alves deu como morto o chefe do grupo que aí operava mas de facto isso não aconteceu. Uma das minhas patrulhas de policia móvel do Dirico foi por ele atacada e só por sorte conseguiram sobreviver. A viatura onde seguiam caiu numa armadilha (leia-se um buraco no caminho) e por isso aí abrigados puderam, abrigados, fazer frente à emboscada montada. Feriram alguns dos inimigos que fugiram deixando rasto de sangue, documentos e armas (uma delas tinha na sua coronha o nome desse chefe) Iko Carreira era o seu nome e até há pouco tempo era vivo mas agora já não faz parte dos vivos pois faleceu de doença prolongada.Essa emboscada deu posteriormente motivo de uma vasta operação, denominada como "Operação Buraco" com a Companhia da Nerriquinha, Tropas paraquedistas e meios helis que apanharam muito material. Talvez alguns desses GE's que aqui foram falados tivessem também tomado parte nessa operação, quem sabe?
Um bom Domingo e um abraço solidário.
Meu caro Luis.
São comentários como este que enriquecem estas nossas memórias. Falam de casos e situações anteriores à nossa passagem por aquelas terras e que, pelo menos para mim, eram desconhecidas.
De facto não me lembro de alguma vez se falar de Iko Carreira. Admito que operasse para além da nossa zona. Como fala do Dirico, pode ser essa a explicação.
Um abraço.
Gostei muito dos factos aqui relatados sobretudo hoje quando vergonhosamente se pretende falsear a verdadeira história das guerras do ultramar. Andava eu a pesquisar dados sobre a Banda ou conjunto musical os palancas de Serpa Pinto, quando me aparece este blog. Estive em serpa Pinto como Alferes miliciano em 1969 a 1970 no batalhão de cavalaria 2870, era alferes de transmissões. Por razões que ainda desconheço fui para a muie integrado no Batalhão As de Espadas, com CCS em Cangamba, sob a chefia do valeroso e Ten Cor Fonseca Lage. Em Serpa Pinto a chefia era dos cobardes, fugidos de Goa Ten Cor Francisco Morais e Major Branco Ló. DE facto os GEs tanto dum lado como outro prestaram imenso apoio às nossa tropas. E este artigo dá disso testemunho. Parabéns. É destes testemunhos que as nossas gerações futuras precisam. Para que a história não seja aldrabada.
Na altura em que por ali andámos, o Major Branco Ló era Governador de Serpa Pinto.Um dia fez-nos uma visita na Neriquinha.
Temos uma fotografia que está postado mais do que uma vez neste Blog. Pode vê-la, por exemplo, no post publicado em fevereiro deste ano "Lupale o interprete".
Companheiros da 3411,depois de tantas chatices,foi muito bom ter como colega o Cabo Lobato...Grande abraço do Peixoto exfurmil de mauto c.caç.546e
Caro Egídio Cardoso:
Foi graças ao Pedro Cabrita que voltei ao reencontro a céu aberto com a N`Riquinha através do seu livro Capitães do vento e, por arrastamento a tudo quanto se encontra já magistralmente publicado na net, de que é exemplo este seu comentário, a que não resisto de acrescentar o meu modesto comentário, interpretando a N´Riquinha profunda e suas gentes que vivem em mim desde 1968.
Para me apresentar, faço parte do grupo de Oficiais do Quadro Permanente que teve o privilégio de conhecer o Fulai Monjuto. Estive na N´Riquinha durante o ano de 1968, como Adjunto do Comandante de Companhia do Capitão Vitor Alves, CCaç 1779.
Foi-me atribuída entre outras a responsabilidade da criação do GE 313 chefiado pelo Fulai Monjuto e o reordenamento da população do Samujuto e do Sul do Rivungo.
Neste muito breve comentário permita-me prestar homenagem ao Fulai Monjuto, cujo desfecho trágico me impressionou, bem como a todos quantos, de um lado ou de outro, acabaram por ser vítimas da corrente da História.
Recordando aquelas vastas chanas, pujantes de Vida nas suas Coutadas, bem mereciam ter sido poupadas às incongruências dos Homens e preservadas desde logo, por serem Terras do Fim do Mundo, como Património Comum da Humanidade.
Um abraço.
Manuel Lopes
Oficial do QP
Enviar um comentário