Incontidos desejos e saudades de quase tudo o que deixara para trás impeliam-me a uma fuga da Neriquinha. Mais de nove meses haviam passado desde que, sem data de regresso agendada, fui largado no meio daquela terra de ninguém para onde não confluíam estradas e aonde ninguém estava interessado em ir a não ser que a isso fosse obrigado. E nem o facto de partilhar aquela autêntica viagem à pré-história com mais 140 homens evitou que, de quando em vez, me sentisse na pele de Robinson Crusoé. Não estávamos numa ilha, mas a ausência de tudo e a inexistência de contacto com o mundo exterior quase me convencia do contrário. Um pequenino avião trazendo correio duas vezes por semana, o Nord Atlas às terças-feiras com os frescos e o MVL uma vez por mês com o reabastecimento de tudo o que não era perecível, eram as únicas visitas a que tínhamos direito.
A nossa vida estava confinada a um singelo quadrado delimitado por uma tosca cerca de arame farpado, onde pouco mais de uma centena de homens fardados ou quase, faziam companhia uns aos outros à medida que o calendário se arrastava penosamente na contagem lenta dos dias. À volta, apenas mata, atravessada aqui e ali por picadas formadas pelos rodados das viaturas que, saindo daquela espécie de acampamento, levavam a lugar nenhum.
Vivíamos assim no meio da natureza selvagem, na sua maior parte nunca tocada e sem nada de permeio. Nem muros nem amarras. Apenas uma frágil cerca de arame farpado nos separava da savana imensa. Sair do perímetro e trilhar aqueles caminhos, implicava riscos a exigir cuidados especiais, obrigando a carregar equipamento de combate, nem que a saída se destinasse apenas a recolher, a pouco mais de dois ou três quilómetros, a lenha necessária para a cozinha ou para aquecer o artesanal forno de pão.
Vivia-se assim uma espécie de claustrofobia em campo aberto que alimentava o tédio e condicionava os comportamentos. Sem terem para onde ir, alguns procuravam enganar o juízo vestindo a inútil roupa civil guardada no fundo das malas e passeavam-se enterrando os sapatos na areia para percorrer os escassos 50 metros que separavam a caserna do barracão onde funcionava a cantina. Tudo apenas pelo prazer de beber umas cervejas com indumentária colorida, em busca de memórias das esplanadas da grande cidade.
Por ali não havia mais nada. As localidades mais próximas resumiam-se ao Rivungo e a Mavinga. Mas estas, ficavam a cerca de 7 horas de viagem por picadas empoeiradas e pouco mais tinham do que meia dúzia de barracões cobertos a folhas de zinco onduladas em tudo idênticos aos da Neriquinha. Tirando isso, as cidades mais próximas eram quase inacessíveis; o Luso, a cerca de uma hora e meia de avião e o Cuito Cuanavale, a três ou quatro dias por picada e que ninguém estava interessado em visitar. Mais longe, a cidade de Serpa Pinto, de onde provinha o MVL.
Ao fim de algum tempo, já ninguém se lembrava que, lá longe, existiam lojas, restaurantes, esplanadas e imaginem lá, café … cremoso, tirado à pressão. As saudades que eu tinha de saborear uma bica bem tirada. E um bife na Portugália empapado em molho de mostarda … e … e tudo o mais.
- Será que em Belém ainda fabricam pastéis de nata? Interrogava-me em diálogo com os meus botões.
- E na Trindade, ainda serviriam búzios? E pregos no pão?
O facto é que na Neriquinha não havia nada disto.
Também não havia ruas, nem carros. Logo, trânsito era coisa de ficção. E o mesmo se podia dizer das regras de trânsito. Prioridades, pisca-piscas, ultrapassagens e tudo o mais, eram coisas inúteis. As três berliets e os quatro ou cinco unimogs que constituíam a frota da 3441 andavam por onde fosse preciso, seguindo as direcções que os condutores entendiam ser as melhores, sem preocupações com regras de trânsito. Aliás pensar nisso até seria ridículo.
Assim, o dia-a-dia, monocórdico e quente, não variava. Dormia-se numa camarata, sempre com as mesmas pessoas por companhia. Já se conheciam os diversos timbres do ressonar de cada um e familiares os seus tiques e manias.
- Lembram-se que o Viola dormia de boca aberta?
Um dia, alguém, não me lembro quem, espremeu para dentro da boca do Viola um tubo inteiro de pasta de dentes. Foi uma risada geral quando, engasgado, acordou estremunhado cuspindo violentamente e raispartando contra todos.
Nas andanças de cá para lá, percorrendo os passadiços de tabuinhas construídos para evitar a areia, cruzávamo-nos sempre com as mesmas pessoas.
Ao almoço e ao jantar, ocupava-se o mesmo lugar, sempre na mesma mesa corrida, com as mesmas conversas e tendo por companhia os mesmos companheiros de pernoita.
Discutiam-se futilidades, que ali as novidades não chegavam ou só vinham de quando em vez nas linhas de um aerograma ou ouvidas num rádio roufenho em emissões para entreter militares, insistindo nas velhas cançonetas do Paco Bandeira:
- Lá longe, onde o sol castiga mais …..
Ocupava-se o tempo, com jogos de cartas ou bebendo cerveja directamente da garrafa, que o copo anulava a tímida fresquidão conseguida ao fim de muitas horas dentro do frigorífico alimentado a petróleo e sem capacidade para o ritmo a que eram esvaziadas.
A nossa vida estava confinada a um singelo quadrado delimitado por uma tosca cerca de arame farpado, onde pouco mais de uma centena de homens fardados ou quase, faziam companhia uns aos outros à medida que o calendário se arrastava penosamente na contagem lenta dos dias. À volta, apenas mata, atravessada aqui e ali por picadas formadas pelos rodados das viaturas que, saindo daquela espécie de acampamento, levavam a lugar nenhum.
Vivíamos assim no meio da natureza selvagem, na sua maior parte nunca tocada e sem nada de permeio. Nem muros nem amarras. Apenas uma frágil cerca de arame farpado nos separava da savana imensa. Sair do perímetro e trilhar aqueles caminhos, implicava riscos a exigir cuidados especiais, obrigando a carregar equipamento de combate, nem que a saída se destinasse apenas a recolher, a pouco mais de dois ou três quilómetros, a lenha necessária para a cozinha ou para aquecer o artesanal forno de pão.
Vivia-se assim uma espécie de claustrofobia em campo aberto que alimentava o tédio e condicionava os comportamentos. Sem terem para onde ir, alguns procuravam enganar o juízo vestindo a inútil roupa civil guardada no fundo das malas e passeavam-se enterrando os sapatos na areia para percorrer os escassos 50 metros que separavam a caserna do barracão onde funcionava a cantina. Tudo apenas pelo prazer de beber umas cervejas com indumentária colorida, em busca de memórias das esplanadas da grande cidade.
Por ali não havia mais nada. As localidades mais próximas resumiam-se ao Rivungo e a Mavinga. Mas estas, ficavam a cerca de 7 horas de viagem por picadas empoeiradas e pouco mais tinham do que meia dúzia de barracões cobertos a folhas de zinco onduladas em tudo idênticos aos da Neriquinha. Tirando isso, as cidades mais próximas eram quase inacessíveis; o Luso, a cerca de uma hora e meia de avião e o Cuito Cuanavale, a três ou quatro dias por picada e que ninguém estava interessado em visitar. Mais longe, a cidade de Serpa Pinto, de onde provinha o MVL.
Ao fim de algum tempo, já ninguém se lembrava que, lá longe, existiam lojas, restaurantes, esplanadas e imaginem lá, café … cremoso, tirado à pressão. As saudades que eu tinha de saborear uma bica bem tirada. E um bife na Portugália empapado em molho de mostarda … e … e tudo o mais.
- Será que em Belém ainda fabricam pastéis de nata? Interrogava-me em diálogo com os meus botões.
- E na Trindade, ainda serviriam búzios? E pregos no pão?
O facto é que na Neriquinha não havia nada disto.
Também não havia ruas, nem carros. Logo, trânsito era coisa de ficção. E o mesmo se podia dizer das regras de trânsito. Prioridades, pisca-piscas, ultrapassagens e tudo o mais, eram coisas inúteis. As três berliets e os quatro ou cinco unimogs que constituíam a frota da 3441 andavam por onde fosse preciso, seguindo as direcções que os condutores entendiam ser as melhores, sem preocupações com regras de trânsito. Aliás pensar nisso até seria ridículo.
Assim, o dia-a-dia, monocórdico e quente, não variava. Dormia-se numa camarata, sempre com as mesmas pessoas por companhia. Já se conheciam os diversos timbres do ressonar de cada um e familiares os seus tiques e manias.
- Lembram-se que o Viola dormia de boca aberta?
Um dia, alguém, não me lembro quem, espremeu para dentro da boca do Viola um tubo inteiro de pasta de dentes. Foi uma risada geral quando, engasgado, acordou estremunhado cuspindo violentamente e raispartando contra todos.
Nas andanças de cá para lá, percorrendo os passadiços de tabuinhas construídos para evitar a areia, cruzávamo-nos sempre com as mesmas pessoas.
Ao almoço e ao jantar, ocupava-se o mesmo lugar, sempre na mesma mesa corrida, com as mesmas conversas e tendo por companhia os mesmos companheiros de pernoita.
Discutiam-se futilidades, que ali as novidades não chegavam ou só vinham de quando em vez nas linhas de um aerograma ou ouvidas num rádio roufenho em emissões para entreter militares, insistindo nas velhas cançonetas do Paco Bandeira:
- Lá longe, onde o sol castiga mais …..
Ocupava-se o tempo, com jogos de cartas ou bebendo cerveja directamente da garrafa, que o copo anulava a tímida fresquidão conseguida ao fim de muitas horas dentro do frigorífico alimentado a petróleo e sem capacidade para o ritmo a que eram esvaziadas.
Alguns dedicavam-se à leitura de revistas retardadas, fora de prazo, enviadas pelo Movimento Nacional Feminino que as recolhia nos monos que entupiam os armazéns da Agência Portuguesa de Revistas. Eram revistas de mexericos ou de fotonovelas que ilustravam foleiros contos de amores e desamores da desgraçadinha do costume.
Jornais, ali não chegavam. Certo dia, não sei donde, nem como, uma edição retardada, com mais de 15 dias, do jornal “A BOLA” aportou àquelas bandas. Andou de mão em mão até ficar amarfanhado, roto, amarelecido, sujo e com nódoas de gordura. Creio que não ficou nada por ler. Ninguém se atreveu a atirá-lo para o lixo, acabando abandonado num canto, ali ficando por muito tempo.
Eu tinha que sair dali. Precisava de respirar outros ares e o mês de férias a que tinha direito vinha mesmo a calhar. O Gabriel regressara há pouco tempo depois de um prolongado mês de férias. Pelo menos foi o que nos pareceu, que a ele passou num quase piscar de olhos. Trazia novas do Puto. Um novo filme que contava a história inédita de um tal de Trinitá e do seu cavalo amestrado. E as novas tendências musicais a anunciar o fim da era dourada da década de sessenta.
O Gabriel parecia empolgado e contagiava toda a gente aniquilando a réstia de indecisão que ainda pairava na minha cabeça. Deram-me o contacto de uma agência de viagens em Luanda que tratava de tudo. Volvidas duas semanas, recebi a resposta. Estava tudo tratado e com viagens marcadas. Agora já não podia voltar atrás. Nem queria. Estava demasiado empolgado para pensar em desistir. Na verdade, creio que se não fosse o cansaço não teria conseguido dormir nas noites que faltavam para a partida. A excitação não deixava.
Só era preciso sair dali, já que a Agência apenas garantia a viagem a partir do Luso. Para lá chegar era preciso contar com a boleia do Nord da Força Aérea, às terças.
E assim foi. Em pouco mais de uma hora de viagem, o Barriga de Jinguba deixou-me às portas da civilização, despejando-me no aeroporto do Luso.
Reservei quarto na Pensão Central, que a viagem para Luanda só seria no dia seguinte e percorri as ruas da vila, sentindo-me na pele do saloio que vem à cidade pela primeira vez.
Sentei-me na esplanada do café e pedi uma bica. Mais de nove meses haviam passado desde que bebera a última. Degustei o café em pequenos sorvos de prazer à medida que, mais parecendo um cata-vento, seguia com o olhar tudo o que bulia. Cheguei a recear ser interpelado por alguém que se sentisse ofendido pelo meu ar embasbacado. Fixava qualquer mulher que passasse seguindo-a de longe até a perder de vista e reagia com sobressalto a qualquer buzinadela mais intensa. Na verdade, sentia-me num mundo novo, não obstante o movimento da pequena vila do Leste de Angola ser inferior ao de qualquer cidade de província. Era um facto, já não estava habituado ao bulício urbano.
Um velho Friendship da TAAG, fazendo escala em Nova Lisboa, levou-me até ao bulício de Luanda, deixando-me no aeroporto mais morto que vivo em consequência da atribulada viagem.
Bonita e aprazível, Luanda era uma grande cidade. Cosmopolita e movimentada, quente e luminosa, com muitas esplanadas e cafés, gente, mulheres, de mini-saia, já que o calor e a moda criada pela bendita Mary Quant puxavam as saias bem acima dos joelhos.
A fome levou-me à esplanada do Amazonas onde matei saudades saboreando uns camarões e um suculento prego no pão, mal passado, como eu gosto e bem acompanhado por umas quantas imperiais, fresquinhas, fervilhantes, acabadinhas de tirar.
Ah! O prazer que foi beber a bica, sentado na Versalhes, lendo o jornal do dia. E a volta pela cidade, sem destino ou rumo, apenas pelo prazer de deambular no meio do frenesim citadino.
Percebi que quem vive na cidade e nunca dela saiu, não tem como perceber o que é viver dia após dia no meio de coisa nenhuma.
Não é assim de admirar que a chegada a Lisboa já não tivesse tido aquele impacto. Apenas estranhei a cor acinzentada da cidade, a luz mortiça e a temperatura amena, quase fria, do mês de Setembro. Em África havia calor, luz, cor, espaço.
Sabem! O tempo deve ter passado mesmo a correr naquele mês de férias. Tirando o facto de ter tirado a barriga de misérias e de me embriagar no perfume de mulher, lembro-me de pouco mais. Retenho contudo o facto de no dia do regresso, ter vestido uma camisola de lã de gola alta. O frio do mês de Outubro em Lisboa, impôs essa indumentária.
Desembarquei assim em Luanda com roupa de Inverno e recordo que me senti sufocar de calor quando saí do avião. O trajecto do aeroporto de regresso à Pensão dos Coqueiros foi infernal. Só desejava que o táxi acelerasse. A camisola fazia comichão pelo corpo todo e o suor escorria copiosamente. Não havia dúvida, estava de novo em África.
Fazia agora o caminho em sentido inverso, sobrevoando aquele imenso território com a sensação de que apenas estivera ausente por muito pouco tempo.
A Neriquinha estava no mesmo sítio. Pelo menos o Nord não teve dificuldades em encontrá-la, aterrando na velha e conhecida pista poeirenta com a desenvoltura do costume.
Desapertei o cinto que me prendia ao assento de lona, agarrei no saco de viagem e assomei à porta preparando-me para descer. Lá fora, as mesmas caras e a azáfama do costume. Nada mudara durante a minha ausência.
Desci os pequenos degraus e olhei em volta como a certificar-me da realidade. A cerca de arame farpado lá estava, no mesmo sítio. As duas pequenas construções que ladeavam a porta de armas continuavam desocupadas. Creio que nunca tiveram serventia. A chana mantinha ainda a mesma cor e a mata circundante parecia olhar-me como se, reconhecendo-me, me desse as boas vindas. Respirei fundo sorvendo o perfume selvagem da savana e caminhei decidido em direcção à camarata onde a minha cama me aguardava, já mentalizado de que ali era o meu lugar. Pelo menos durante mais os próximos meses aquela continuaria a ser a minha morada … o meu canto perdido no meio da imensidão agreste.
Uma semana depois já quase não me lembrava da civilização. Na verdade, sentia-me como se dali nunca tivesse saído. Mulheres brancas, movimento, bicas, pastéis de nata, restaurantes, ruas, casas, prédios, bulício citadino, televisão, jornais, viraram rapidamente coisas de ficção.
Jornais, ali não chegavam. Certo dia, não sei donde, nem como, uma edição retardada, com mais de 15 dias, do jornal “A BOLA” aportou àquelas bandas. Andou de mão em mão até ficar amarfanhado, roto, amarelecido, sujo e com nódoas de gordura. Creio que não ficou nada por ler. Ninguém se atreveu a atirá-lo para o lixo, acabando abandonado num canto, ali ficando por muito tempo.
Eu tinha que sair dali. Precisava de respirar outros ares e o mês de férias a que tinha direito vinha mesmo a calhar. O Gabriel regressara há pouco tempo depois de um prolongado mês de férias. Pelo menos foi o que nos pareceu, que a ele passou num quase piscar de olhos. Trazia novas do Puto. Um novo filme que contava a história inédita de um tal de Trinitá e do seu cavalo amestrado. E as novas tendências musicais a anunciar o fim da era dourada da década de sessenta.
O Gabriel parecia empolgado e contagiava toda a gente aniquilando a réstia de indecisão que ainda pairava na minha cabeça. Deram-me o contacto de uma agência de viagens em Luanda que tratava de tudo. Volvidas duas semanas, recebi a resposta. Estava tudo tratado e com viagens marcadas. Agora já não podia voltar atrás. Nem queria. Estava demasiado empolgado para pensar em desistir. Na verdade, creio que se não fosse o cansaço não teria conseguido dormir nas noites que faltavam para a partida. A excitação não deixava.
Só era preciso sair dali, já que a Agência apenas garantia a viagem a partir do Luso. Para lá chegar era preciso contar com a boleia do Nord da Força Aérea, às terças.
E assim foi. Em pouco mais de uma hora de viagem, o Barriga de Jinguba deixou-me às portas da civilização, despejando-me no aeroporto do Luso.
Reservei quarto na Pensão Central, que a viagem para Luanda só seria no dia seguinte e percorri as ruas da vila, sentindo-me na pele do saloio que vem à cidade pela primeira vez.
Sentei-me na esplanada do café e pedi uma bica. Mais de nove meses haviam passado desde que bebera a última. Degustei o café em pequenos sorvos de prazer à medida que, mais parecendo um cata-vento, seguia com o olhar tudo o que bulia. Cheguei a recear ser interpelado por alguém que se sentisse ofendido pelo meu ar embasbacado. Fixava qualquer mulher que passasse seguindo-a de longe até a perder de vista e reagia com sobressalto a qualquer buzinadela mais intensa. Na verdade, sentia-me num mundo novo, não obstante o movimento da pequena vila do Leste de Angola ser inferior ao de qualquer cidade de província. Era um facto, já não estava habituado ao bulício urbano.
Um velho Friendship da TAAG, fazendo escala em Nova Lisboa, levou-me até ao bulício de Luanda, deixando-me no aeroporto mais morto que vivo em consequência da atribulada viagem.
Bonita e aprazível, Luanda era uma grande cidade. Cosmopolita e movimentada, quente e luminosa, com muitas esplanadas e cafés, gente, mulheres, de mini-saia, já que o calor e a moda criada pela bendita Mary Quant puxavam as saias bem acima dos joelhos.
A fome levou-me à esplanada do Amazonas onde matei saudades saboreando uns camarões e um suculento prego no pão, mal passado, como eu gosto e bem acompanhado por umas quantas imperiais, fresquinhas, fervilhantes, acabadinhas de tirar.
Ah! O prazer que foi beber a bica, sentado na Versalhes, lendo o jornal do dia. E a volta pela cidade, sem destino ou rumo, apenas pelo prazer de deambular no meio do frenesim citadino.
Percebi que quem vive na cidade e nunca dela saiu, não tem como perceber o que é viver dia após dia no meio de coisa nenhuma.
Não é assim de admirar que a chegada a Lisboa já não tivesse tido aquele impacto. Apenas estranhei a cor acinzentada da cidade, a luz mortiça e a temperatura amena, quase fria, do mês de Setembro. Em África havia calor, luz, cor, espaço.
Sabem! O tempo deve ter passado mesmo a correr naquele mês de férias. Tirando o facto de ter tirado a barriga de misérias e de me embriagar no perfume de mulher, lembro-me de pouco mais. Retenho contudo o facto de no dia do regresso, ter vestido uma camisola de lã de gola alta. O frio do mês de Outubro em Lisboa, impôs essa indumentária.
Desembarquei assim em Luanda com roupa de Inverno e recordo que me senti sufocar de calor quando saí do avião. O trajecto do aeroporto de regresso à Pensão dos Coqueiros foi infernal. Só desejava que o táxi acelerasse. A camisola fazia comichão pelo corpo todo e o suor escorria copiosamente. Não havia dúvida, estava de novo em África.
Fazia agora o caminho em sentido inverso, sobrevoando aquele imenso território com a sensação de que apenas estivera ausente por muito pouco tempo.
A Neriquinha estava no mesmo sítio. Pelo menos o Nord não teve dificuldades em encontrá-la, aterrando na velha e conhecida pista poeirenta com a desenvoltura do costume.
Desapertei o cinto que me prendia ao assento de lona, agarrei no saco de viagem e assomei à porta preparando-me para descer. Lá fora, as mesmas caras e a azáfama do costume. Nada mudara durante a minha ausência.
Desci os pequenos degraus e olhei em volta como a certificar-me da realidade. A cerca de arame farpado lá estava, no mesmo sítio. As duas pequenas construções que ladeavam a porta de armas continuavam desocupadas. Creio que nunca tiveram serventia. A chana mantinha ainda a mesma cor e a mata circundante parecia olhar-me como se, reconhecendo-me, me desse as boas vindas. Respirei fundo sorvendo o perfume selvagem da savana e caminhei decidido em direcção à camarata onde a minha cama me aguardava, já mentalizado de que ali era o meu lugar. Pelo menos durante mais os próximos meses aquela continuaria a ser a minha morada … o meu canto perdido no meio da imensidão agreste.
Uma semana depois já quase não me lembrava da civilização. Na verdade, sentia-me como se dali nunca tivesse saído. Mulheres brancas, movimento, bicas, pastéis de nata, restaurantes, ruas, casas, prédios, bulício citadino, televisão, jornais, viraram rapidamente coisas de ficção.
13 comentários:
Mais um excelente retorno à picada da saudade pela mão do Egídio, que nos vai soletrando reminiscências meio distorcidas pela voracidade impiedosa do tempo.
Um trilhar de memórias que nos carreiam este recente conflito da provecta idade com as recordações dos tempos de todas as aventuras, sonhos e ousadias próprias da indomável juventude, que devassou a guerra, e a venceu, mesmo sem verdadeiros inimigos para pelejar e derrotar.
Estas talvez as memórias mais sensíveis e que mais nos vincaram os sentidos; o sair de um fim de mundo e procurar encontrar um fio de meada deixado para trás, e já perdido de sentido pela devassa do calor ardente da savana.
Saí duas vezes de N´riquinha para gozar licença, nos dezoito meses e meio que por lá estivemos.
Nove meses chegaram para me esgotar na poeira sempre ruiva e seca da parada, uma espécie de tempero do rancho à hora do almoço que nos acentuava também o bronzeado da pele, logo descolorido no retemperador banho de fim de dia.
Duas recordações mais fortes refluem ainda no limbo que me vai separando aquilo que a temperança de um ou outro neurónio mais saudável consegue reter daquele tempo.
Volvidos que eram nove meses de isolamento, desembarquei em Luanda vindo do Luso deveriam ser 13:00 horas, a caminho do meu Algarve, donde, abruptamente, me arrancaram ao mar, sem tempo sequer para sacudir os bolsos e dobras das calças pejadas da areia fresca da praia.
Depositei a bagagem no hotel e saí desarvorado pelos caminhos mais directos que desembocavam na baía.
Caminhei rápido até vislumbrar a primeira nesga de mar. Depois, como que em motor desengatado, deixei-me ir sem medir nem sentir os passos que me rolavam até mesmo à beirinha do passeio a um passo do mar.
Apeteceu-me pular, mas fiquei; não sei se em sentido se em êxtase perante aquela planície de mar que se estendia aos meus pés.
Não sei exactamente quanto tempo. Meio perdido que vinha, perdido me fiquei.
Depois sentei-me num banco debaixo duma palmeira que aplacou a impetuosidade do sol que sobre mim se derramava. E por ali fiquei, com metade dos sentidos alheios de mim, não sei por quanto tempo mais.
Deveriam passar bastante das 15:00 horas quando, retemperado, me movi caminhando um pouco mais ao longo da marginal, sorvendo ainda um último aroma, como que despejando o décimo copo de água pela cabeça abaixo, depois de saciada a sede imensa de náufrago de deserto à beira do oásis.
Saciada esta primeira fome, eis-me nas terras mais ao sul do Tejo três dias depois.
Fui recebido pelo calor justo de um conhecido Julho algarvio, a prometer um Agosto tórrido, que encarei com a sobranceria da minha pele queimada, lá onde o sol se empina e verte implacável a sua voz.
Lá em casa, pujante de alegria, ninguém me perguntou o que queria comer.
Serviram-me sardinhas assadas vezes seguidas, dias e dias.
A meio, e a medo, perguntaram-me: e amanhã?
Sardinhas, respondi.
É que na última carta, antes da partida de N’riquinha, eu havia escrito em maiúsculas para que não passasse despercebido:
“… EU SÓ QUERO COMER SARDINHAS ASSADAS…!”
P. Cabrita
Meu caro:
Afinal, na altura, sem nada dizermos uns aos outros, todos sentiam o mesmo.
Já passou muito tempo e é certo que não me lembro exactamente dos pormenores. Mas provavelmente também devo ter corrido para o mar. Não acredito que após mais de nove meses sem ver aquele azul imenso, não tivesse corrido para o contemplar.
Especialmente eu que nasci e cresci vendo o mar de um primeiro balcão.
Quanto ao que comi à chegada, não foram sardinhas de certeza, porque isso não é hábito na minha terra.
Aposto nos bifes de atum com milho frito. Digo isto porque era o que a minha mãe fazia quando me queria presentear com uma guloseima
Ao Pedro Cabrita,deixo um convite para uma sardinhada um dia destes, à sombra de uma alfarrobeira, ali para os lados de Albufeira
OK companheiro.
Só preciso que me marque o dia e coloque uma bandeira na alfarrobeira de modo a que se veja bem à distância...
Lá estarei.
Abraço, seja lá quem for o patrício.
P. Cabrita
Ainda não estão gordas as sardinhas,mas hei-de por a bandeira,"se outra não arranjar será a do SLB" na Alfarrobeira ali para os lados de Albufeira.
Ainda estão magras as sardinhas,para marcar o dia,depois porei a bandeira do "SLB". na Alfarrobeira
Continuamos sem saber quem é o patrício...
Mas; ainda há alfarrobeiras em Albufeira...?
Julgava que a única coisa que por lá se encontra são "Camones"...
Bem, mas pode pôr a bandeira em Tunes...
... ou poderia ser nas Ferreiras...?
Abraço
P. Cabrita
Já deixei outros comentários acerca da bandeira na alfarrobeira,mas o autor do blog é soberano, e não os tem colocado,paciencia Pedro C.O teu gmail não funciona o nº de telemovel desapareceu só te resta procurar uma alfarrobeira com uma bandeira a norte de Albufeira.
Que fique claro que eu nunca apaguei um comentário. Todos os que apareceram foram publicados.
Caro Patrício
Há por aí algum erro ou lapso quanto à não publicação de comentários.
O gestor do blogue é correcto e eficiente.
Proponho uma entrada no meu blogue pessoal, pode ser que forneça os dados em falta.
Abraço e até breve.
Em Agosto aí estaremos para a degustação das "maldessoadas" das sardinhas...
Pedro Cabrita
http://pedrocabrita.wordpress.com/
Pedro C. aparece e avisa ou então procura por uma bandeira na Alfarrobeira,embora os nossos navegadores tenham que regressar já, a bandeira na alfarrobeira a norte (cerca de 3 km)de Albufeira vai continuar.
As "maldessoadas" sardinhas estão a ficar sem gosto,porque está a chegar o final de Agosto,mas a bandeira ainda continua desfraldada na alfarrobeira a cerca de 3 Km a norte de Albufeira.
E eu que só estou de férias mais esta semana tenho esperado a visita do PC,mas nada,talvez que o seu BMW,(deve ler-se BMV) não saiba andar por estradas secundárias, desde que se habituou a viajar em auto-estrdas.
Desisto...
Bati as alfarrobeiras todas a norte de Albufeira e não vi nada. Nem sardinhas nem bandeira; nem sequer o cheiro...
Ou o anónimo se identifica melhor... ou nada feito.
Resta um fim de semana...
Sugiro fogo de artifício...
Mas fogo a sério.
Aguardo.
P Cabrita
PS
Nem com o BMV lá chego...
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