terça-feira, 1 de setembro de 2009

Comandantes

O batalhão 3857, do qual fazia parte a 3441, tinha no topo da pirâmide de comando, como qualquer batalhão de caçadores, uma espécie de triunvirato. É verdade que não exercia os seus poderes como se diz que teria acontecido nos autênticos, nos da Roma antiga, já que o autoritarismo do comandante tornava isso numa impossibilidade, mas o facto é que eles eram três.
No topo, como comandante, um tenente-coronel. Logo abaixo, dois majores: um com o papel de subcomandante e responsável pelas questões administrativas e de logística, o outro com o pelouro da operacionalidade do batalhão.
O major de operações, o mais novo dos três, era um homem de porte atlético, exibindo um farto bigode, adorno muito em voga na época mas pouco apreciado pelas hierarquias militares. Quando aparecia na companhia, apenas o víamos à conversa com o Capitão e alguns oficiais, certamente cogitando e planeando estratégias para a próxima operação. Desaparecia de seguida levado pela pequena Dornier que o transportava por via aérea, aparelho que também utilizava para, lá do alto, seguir o desenrolar das operações mais importantes que, cá em baixo, decorriam contra o inimigo, levadas a cabo por tropas à beira do esgotamento.
O segundo comandante era um homem atarracado e volumoso, arrumado num físico pouco harmonioso e exibindo uma figura com tendência para o ridículo, sem desprimor pelo homem. Militar de carreira, oriundo da classe de sargentos, o Major Tamegão integrava o aparelho administrativo do exército. Era sem dúvida o elemento mais velho (em idade) de todo o batalhão. Quando aparecia na Neriquinha (o que não aconteceu mais do que um par de vezes) era porque o calendário das regras de controlo impunha uma inspecção à papelada. Coisas de secretaria e de contabilidade militares.
Nessas alturas (raras) saía do aconchego da sede de Batalhão no Cuito Cuanavale e por obrigação do cargo, visitava, à vez, cada uma das companhias.
A 3441 era a mais afastada. Confinada a uma pequena área delimitada por uma cerca de arame farpado plantada num local remoto no meio de coisa nenhuma, distava do Cuito Cuanavale, cerca de uma semana por picada. Tudo ingredientes que parecia não agradar ao major, não obstante possibilitar um pouco de aventura. Nessas alturas, retirava do estojo uma velha Kalachnikov que arranjara em comissões anteriores, provavelmente apreendida ao inimigo em alguma operação em que certamente não participara. Aproveitava a proximidade do mato para dar uso à relíquia e sem exagerar na aventura, arranjava um pretexto. No caso, juntou um grupo, afastou-se pouco mais de meia dúzia de quilómetros, o suficiente para se sentir no meio da savana de forma a criar um cenário de caça. Só que, tão perto do aquartelamento, não havia caça. Na verdade, não havia nada em que valesse a pena atirar. Animais selvagens afastam-se naturalmente do bulício humano. Excepto um bufo que, provavelmente por distracção, se empoleirou no ramo de uma árvore, ali perto. O Major não hesitou. Era a oportunidade de fazer o gosto ao dedo e desenferrujar a relíquia. O infeliz do bufo é que pagou as favas.
Tirando isso, sentava-se frente à messe, à sombra, numa espécie de cadeirão que por ali jazia e determinava de quando em vez, nos intervalos das sonecas que a idade e o calor iam impondo, que lhe fossem presentes um conjunto de papeis e fichas que os furriéis responsáveis pelas coisas do material dos combustíveis e dos víveres tinham de manter escriturados de acordo com as regras definidas pelas omnipresentes NEP’s (normas de execução permanente).
Encontrava sempre algo que considerava irregular. Sendo por natureza uma boa pessoa, daquelas de que se diz não fazerem mal a uma mosca, esforçava-se por parecer mau ou austero, numa vã tentativa de se aproximar da atitude do comandante, homem execrável que transpirava veneno por cada poro da sua pele suada de militar pequeno.
Diz o povo que homem pequeno, ou é velhaco ou dançarino. O comandante não era certamente dançarino e embora não pudesse ser apodado de velhaco, a verdade é que não era boa pessoa. Ficou conhecido pelo Ruizinho, diminutivo do seu nome próprio, espécie de caricatura não só da sua pequena estatura, mas também da sua mesquinhez.
Pouco ou nada respeitado desde o oficial ao soldado, era, contudo, um homem temido. Com ele presente nunca se sabia que tipo de norma estaríamos a infringir, sendo certo que era elevada a probabilidade de, no mínimo, levarmos com uma ameaça, uma admoestação (a tradicional piçada) ou algo pior (uma porrada). Dedo em riste, cara de poucos amigos e batendo na perna com a sua inseparável chibata, num tique irritante, passava o raspanete ou cuspia a ameaça, após o que nos presenteava com um altaneiro rodopiar, virando as costas em atitude de puro desprezo pelo animal fardado que acabava de mimosear com mais uma dose de bílis mal digerida, quiçá resultante de uma qualquer insuficiência hepática. Afastava-se verbalizando sapiências militares ilustradas por movimentos de chibata, adorno ou fetiche cuja utilidade nunca cheguei a compreender.
Não obstante ter cabido em sorte à 3441 o pior, o mais remoto e inóspito local de toda área operacional do batalhão, não deixava de ser vantajoso o facto de estar o mais afastado possível do centro de comando, com a vantagem de as suas precárias instalações não convidarem muito a visitas do ilustríssimo oficial, poupando-nos aos seus desmandos. Compreende-se assim que tenha chegado a sentir pena do pessoal da CCS, (Companhia de Comando e Serviços) a qual, por integrar a estrutura de comando do batalhão, tinha o comandante sempre à perna, o que, de alguma forma, anulava a vantagem de ficar quase sempre melhor localizada e não ter actividade operacional.
Assim, o homem só aparecia quando maquinava qualquer coisa para nos lixar a vida. Normalmente uma qualquer operação militar planeada em noites de insónia na sequência de fidedignas informações sobre os movimentos do inimigo, sacadas pela sinistra PIDE a um qualquer indígena azarado que tivesse sido submetido aos seus eficazes interrogatórios secretos.
É assim que nos sai na rifa mais uma daquelas operações, visando a destruição do inimigo que, diga-se de passagem, nunca se mostrou muito interessado em pedir meças às unidades do batalhão. Admite-se que o Ruizinho, no alto do seu heroísmo, tenha decidido que, se eles não nos procuram vamos lá chateá-los.
Operação em grande, no mínimo com dois grupos de combate, comandada pelo próprio capitão, lá para os lados do Chiúme, quase já fora da área de actuação da companhia, zona inacessível por picada o que implicou o transporte por helicóptero, no caso, garantido por uma esquadrilha da força aérea Sul-africana.
Deveríamos percorrer uma vasta área de território selvagem onde apenas se dizia existirem alguns carreiros percorridos por população não enquadrada, pelo que, como era natural, equipei-me com o camuflado mais usado e que, por via disso, exibia as marcas das diversas andanças pela mata: um pequeno rasgão aqui, um remendo acolá, a falta de uma bainha, uma ponta a desfiar-se. Enfim, impróprio para os formalismos militares, mas adequado a uma operação que de formal não tinha nada.
O facto é que só possuía dois camuflados e era importante que, pelo menos um deles chegasse ao fim dos dois anos de comissão. O exército não fornecia fardamento aos oficiais e sargentos e não me apetecia investir dinheiro num terceiro camuflado. Fora obrigado a comprar os que tinha e custaram-me uma pipa de massa. Por esse facto, castigava sempre um dos dois, preservando o outro para as mariquices militares a exigirem maior cuidado no atavio.
Decorria toda a azáfama de preparação para o embarque nos helicópteros que fariam o transporte do efectivo para o local da acção. A capacidade limitada dos Alouette III obrigava a duas viagens para a colocação da força no terreno.
Nesse entretanto, o comandante deambulava de um lado para o outro, distribuindo ordens à direita e à esquerda até olhar para a minha equipa que aguardava, junto ao helicóptero, o momento de embarque. Sem nada que justificasse uma ordem ou instrução do competentíssimo militar, resolveu implicar com o meu camuflado.
- Ó nosso furriel! Dirigiu-se-me em tom ameaçador.
Que será que eu fiz? Questionei-me em silêncio, perfilando-me apressadamente.
- Isso são modos de um graduado se apresentar frente aos seus homens? Continuou sem que eu percebesse exactamente a que se referia.
Só faltava agora implicar comigo. Pensei ao mesmo tempo que procurava corrigir a postura na esperança de anular a grave falta que determinara tão enfática censura.
- Esse fardamento está uma vergonha! Exclamou furioso.
Braço em riste, apontando a ridícula chibata em direcção ao aquartelamento, ordenou:
- Vá imediatamente fardar-se.
Balbuciei um “sim meu comandante” e encetei um passo de corrida militar em direcção à camarata.
Retirei o outro camuflado cuidadosamente dobrado na mala arrumada debaixo da cama, vesti-o, voltei a colocar todo o equipamento de combate e corri de novo em direcção à pista onde uma esquadrilha de helicópteros me aguardava para a partida.
Pelo caminho pensava na estupidez da ordem.
Será que o animal não sabe o que é andar na mata? Interrogava-me.
Será que o inimigo se, por remota hipótese com ele nos cruzarmos, irá reparar num ou noutro remendo no camuflado?
Ainda por cima, o homem já não andava nas redondezas quando cheguei junto do meu grupo. Se não tivesse mudado de farda, não teria dado por isso. Pior ainda foi o facto de as calças não terem resistido às exigências da caminhada. As costuras do interior das pernas cederam totalmente ainda durante o primeiro dia de operação. Passei a andar como se vestisse uma saia comprida, com duas enormes rachas: uma à frente e outra atrás.
Que diria o comandante se à chegada me visse naquele estado?

3 comentários:

Gabriel Costa disse...

Caro Cardoso:

De quem tu te foste lembrar: do Tamegão! Era um tipo sui-generis, de facto, sempre com um aspecto de cabo arvorado com galões.
A história do Bufo, gigante, aliás, passou-se comigo numa noite de caça aque nos obrigou a ir já depois do jantar. A cena aconteceu um puco antes das pontes do Cúbia. Matou a ave, á falta de outra coisa em que atirar e obrigou o Comandos a carregá-la na Berliet.
Uma pequena correcção: a arma era uma pistola de origem checa, que transportava num estojo, á qual acescentava uma coronha de carabina e um aextensão do cano, com calibre de 9mm.
Um dia destes conto-te a história do Tamegão e das melgas, na Tentativa.
Um abraço
Gabriel

Egidio Cardoso disse...

Caríssimo amigo,

De facto, lembro-me vagamente da história do bufo, mas de me ter sido contada, provavelmente por ti.
Fica a correcção da arma, que não sendo uma kalachnicov é, de qualquer forma, oriunda dos então designados países da cortina de ferro e por isso, provavelmente apreendida aos guerrilheiros.
Quanto às melgas, tenho uma vaga ideia de ma teres contado. Acho que dava uma pequena boa história que merece ser contada e postada a seguir a esta.
Sei que consegues fazer isso em poucos minutos. Força.

Um abraço
E.C.

Anónimo disse...

... Vamos rir um bocadinho...

A arma era uma Manelika... lol...!

O bufo foi confundido com uma águia real, que era o objectivo maior que o M. Tamegão contava levar a cabo na N'riquinha, terras do fim do mundo onde seria possível concretizar qualquer anseio de caça.

Nas Mabubas foram as peles de jacaré, que me fartei de apanhar para ele... e nem uma trouxe para mim...

Quanto às estórias do Major Tamegão são tantas que dariam para um livro bem composto.
Conto-vos uma que julgo não ser do vosso conhecimento.

Na messe de oficiais do Batalhão havia uma espécie de boião que continha "uma espécie de doce de qualquer coisa".
Todas as manhãs o nosso M. Tamegão pegava numa torrada, espalhava o "doce" e comia com voracidade.
Um dia a mulher do médico, vendo o repasto disse-lhe:
O Sr. Major come isso?.
Sim! É muito bom.
Mas.. isso é goma arábica que usam para colar a correspondência...

Sempre aquele abraço

P. Cabrita