sábado, 1 de agosto de 2009

Mascotes

Provavelmente é próprio do homem a mania de se rodear de mascotes. Umas vezes por superstição, outras, simplesmente porque sim e outras ainda, sabe-se lá porquê. E não falo apenas da simples tendência para adoptar animais domésticos, sejam eles cães, gatos, periquitos ou papagaios. Refiro-me às mascotes, àqueles que, para além de animais de estimação, têm um significado especial. Uma espécie de superstição. Que dão sorte.
O Matias, por exemplo, encontrou, algures no meio da mata, um pequeno macaco. Perdera-se da mãe (ou perdera a mãe). A verdade é que ganhou afeição ao pequeno símio e este parecia corresponder. Acompanhava-o para todo o lado, tendo facilmente criado o hábito de se encavalitar no seu ombro, mordiscando pedacitos de guloseimas que este lhe ia dando. O Matias, com os seus óculos de aros grossos pesando-lhe sobre o nariz, ignorava os comentários brejeiros da malta. Revoltava-se de quando em vez ou porque a paciência se esgotava ou porque entendia que a brejeirice ultrapassava os seus limites. Mais preocupante parecia ser o caso de um dos cabos da Força Aérea. Ou porque já afectado pelo cacimbo ou, mais provável, condicionado na sua razoabilidade pelos charros de liamba, adoptou uma galinha. A sua imaginação foi ao ponto de levar o galináceo a passear por entre as palhotas do kimbo, atada pelo pescoço com um cordel a que chamava de trela, como se passeasse um caniche pelas ruas da cidade. Encorajava o animal com suaves toques de uma improvisada vergasta incitando-o com voz meiga:
- Anda bicha, anda.
Após algumas voltas sobre a areia solta do Kimbo, metia-a debaixo do duche. Não que lhe quisesse dar banho. Simplesmente descobriu que a galinha, provavelmente porque confundia o duche com a chuva, aquietava-se naquele genético e característico empinar do corpo para facilitar o escorrer da água sobre as penas.
- Assim, ela não foge.
Concluía o cabo, sem conseguir convencer alguém sobre o seu temor pela fuga da galinha. Na verdade, o bicho nunca se afastou para além do perímetro do arame farpado, como acontecia com a criação da população que deambulava por entre as palhotas. Galinhas são animais domésticos e naturalmente, não se distanciam muito do local onde lhes é fornecido alimento
Mascote era também o camaleão que vivia junto ao pequeno jardim frente à messe. Pacífico e pachorrento, era mimado por todos, passeando frequentemente aos ombros de uns e de outros, numa pose de verdadeiro animal doméstico, mudando de cor em função do padrão do tecido onde se agarrava com firmeza. Após o passeio, depositavam-no sempre sobre as plantas do jardim, passando de ramo para ramo no seu passo hesitante de câmara lenta, alimentando-se de mosquitos e outros insectos. Aliás, qualquer animal que fosse considerado predador de mosquitos era sempre bem-vindo. Até as osgas que se alapavam na parede, por serem especialistas na caça ao mosquito, eram estimadas e não me lembro que alguém, alguma vez, se tivesse atrevido a molestá-las, não obstante a repugnância manifestada por alguns.
Detestados, apenas os percevejos que usurpavam as nossas camas, infernizavam o sono e provocavam erupções na pele seguidas de comichão que se agravava com o inevitável coçar.
Os ratos eram igualmente indesejados, pelo que, foi com alguma preocupação que alguém encontrou, algures pelo aquartelamento, uma ninhada. Eram ainda muito pequenos e indefesos, mas tinham de ser eliminados, já que uma praga de roedores era certamente coisa a evitar.
Assim, três ou quatro cacimbados ofereceram-se como voluntários para a tarefa, transformando o acto de extermínio dos bicharocos num passatempo. Um risco no chão passou a simbolizar uma fronteira. Largavam um ratito num dos lados e sentenciavam: - Se passares o risco, lixas-te.
O animal vagueava, perdido, sem se decidir por onde avançar, intimidado pelo bulício à sua volta. A aproximação do risco criava um suspense. Enquanto uns incitavam, outros gritavam em excitação pela iminência da passagem da fronteira.
- Ooooohhh…bolas!
Exclamavam em coro de desapontamento, quando, no último momento, o atarantado murganho inflectia a marcha e adiava o cruzar da linha fatal.
Quanto finalmente ultrapassava o risco, o rato era eliminado e imediatamente substituído por outro, sucedendo-se a cena até não restar nenhum.
Mas, ninhadas de ratos não se encontravam com frequência pelo que, outras vezes, uma ou outra barata menos lesta na fuga, foi utilizada na brincadeira até o jogo perder a graça e ser substituído por outro entretém para matar o tempo.
Porém, a mais mimada, era a cadelita Riquinha que trouxéramos do Rivungo. Sendo a mascote do meu pelotão, tornou-se rapidamente no centro das atenções. Atrevida e simpática, assenhorou-se das atenções, do espaço, da camarata, das messes e alargou paulatinamente o perímetro do seu território de brincadeira. Tomava banho amiúde, usufruindo dos nossos duches, não fosse ser acometida por alguma praga de pulgas a juntar à de percevejos existente.
Foi crescendo, lentamente, embora se visse de imediato ser um animal de fraca estatura.
Havia ainda dois cães, o Tigre e o Cúbia. Corpulentos, embora não em excesso, eram de raça indefinida, ou então, o meu fraco conhecimento da matéria não a permitiu identificar. Haviam sido herdados da companhia anterior que por sua vez também os herdara da que os antecedeu. Um, era acastanhado e o outro, de cor escura matizada. Não sei exactamente qual era o Tigre e qual o Cúbia. Andavam sempre juntos e quando se chamava um, vinham os dois. Quanto aos nomes, admito que o Tigre tenha sido escolhido porque, naquela altura, a maioria dos cães respondia pelo nome de Tigre ou Leão. O do outro, provavelmente em homenagem ao rio do mesmo nome, afluente do Cuando, cujas margens éramos obrigados a calcorrear com frequência, especialmente porque alinhava o caminho para o Rivungo.
Esta parceria canina, fazia-me sempre lembrar dois rios ligados à história da civilização antiga: o Tigre e o Eufrates, um pelo nome e obviamente o outro por ser nome de rio. Enfim, reminiscências de estudante habituado a decorar o que não podia ser assimilado pela compreensão.
Havia quem dissesse que eram cães treinados para a guerra, animais que seriam capazes de dar luta a qualquer turra que se atrevesse a invadir o recinto e por isso sentinelas eficazes. Mas isso não era verdade. Cresceram habituados às fardas militares, mostrando-se indiferentes a quem a usasse e manifestavam, de quando em vez, alguma animosidade para com o aspecto seminu que definia o trajar da população. Contudo, nunca houve notícia de que tivessem alguma vez atacado ou mordido alguém, sendo mais pacíficos do que o seu aspecto aparentava.
A Riquinha, no natural atrevimento de canídeos novos, infernizava a o dia a dia do Tigre e do Cúbia. Estes, a princípio, ignoravam-na, não dando importância às suas brincadeiras atrevidas, designadamente quando, em atitude provocatória, mordiscava a orelha de um ou puxava a pata do outro. Não demorou muito para que passassem a ser vistos juntos com maior frequência.
Ou porque a cadela era oferecida ou porque os cães não olham a idades, pareceu-nos que a brincadeira passou a ter outro interesse. Digamos que lhe acrescentaram sensualidade ou lascívia canina. Mas não. Creio que os cães reagem a tais impulsos por instinto, não se podendo colocar maldade no que a natureza comanda. Fosse como fosse, passado algum tempo, tornou-se notório o aumento de volume do ventre do animal. A Riquinha estava prenha.
- Não pode ser! Exclamavam uns.
- A cadela é muito nova! Acrescentavam outros.
Mas era um facto. A cadela estava mesmo prenha e bem cedo deu sinais de ainda não estar fisicamente preparada para a tarefa. Tropeçava frequentemente como se não pudesse com o peso, perdeu o apetite e parecia lamentar-se num silêncio de culpa.
- Prenha coisa nenhuma, isso só pode ser doença. Sentenciou alguém.
Acabou por morrer antes de dar à luz, sem que se tivesse descoberto, afinal, qual tinha sido o responsável. Se o Tigre, se o Cúbia.
Os dois canzarrões não mostraram preocupação, lamento ou dor pelo desfecho.
Continuaram na sua ocupação ociosa: esticados debaixo de uma qualquer sombra, indiferentes ao desaparecimento da malograda mascote.

3 comentários:

Gabriel Costa disse...

Houve outra mascote, não me lembro já de quem, que por ali andou até ter desaparecido quando esteve estacionada, dois ou três dias, na Neriquinha uma Companhia de Comandos. Era uma cabrita do mato, sempre com um laço vermelho ao pescoço e que tinha sido apanhada ainda na fase de aleitamento.
No dia em desapareceu, comida certamente pelos visitantes, o Marques, cantineiro na messe dos sargentos e responsável pelo bar dos soldados, decretou dia de abstinência para a Companhia de Comandos e não houve cerveja para ninguém.

Egidio Cardoso disse...

Afinal, o que parecia apagado da memória, não estava.
A simples referência ao laço vermelho acendeu a luz e de repente vi a frágil cabrinha, cujo desparecimento mexeu com os sentimentos de alguns.
Este blog também tem este condão.
E confirma a minha teoria das mascotes.
Por outro lado, fica demonstrado que umas coisas lembram as outras.

Egidio Cardoso disse...

Cá está a cabrinha, com a fita vermelha, sininho e tudo.
Como é que eu não me lembrei dela?
Mas a fotogarfia aí está, postada tardiamente, mas ainda a tempo de testemunhar o facto.

E.C.