domingo, 1 de dezembro de 2013

Praias, laranjais e palmeiras

Era uma espécie de predestinação a que a malta já se habituara. A partir do momento em que aterrámos nas Terras-do-Fim-do-Mundo, um montinho de gente, dos nossos, foi apartado do grupo principal e mandado guarnecer, proteger ou ocupar um posto afastado. No Cuando Cubango era o Rivungo. Um pelotão, à vez, e com rotações trimestrais, esteve sempre ali destacado, deixando a Neriquinha desfalcada de homens e materiais. Não é que a passagem pelo Rivungo fosse indesejável, mas a verdade é que, cerca de trinta homens estavam sempre separados do grupo principal. É claro que isso trazia vantagens, na medida em que permitia, com menor esforço, garantir uma melhor cobertura da imensidão de savana que nos competia calcorrear. Ali tudo era longe, estéril e hostil, não obstante a singular feeria daquelas imensas planuras a exigir temporais de trabalhos intervalados com a oferenda de bonanças fotográficas.
Resgatados que fomos da savana e acolhidos por umas Mabubas bonançosas de travo doce e recebidos por gente simpática e hospitaleira, sempre se pensou que, desta vez, ficaríamos todos juntos; ou melhor, se calhar ninguém pensou nisso; habituados que estávamos a cumprir ordens, ia-se para onde nos levassem sem refilar, com aquela certeza de que qualquer outro lugar seria certamente melhor do que a nossa moradia dos últimos dezoito meses.

No que respeita a mantermo-nos todos juntos, não seria assim. Parece que uma alteração na estratégia de colocação de tropas terá determinado que o enquadramento da pequena vila do Ambriz se bastaria com um simples grupo de combate e como, pelos vistos, a nossa companhia estaria mais desafogada, foi esta a disponibilizar esse pequeno contingente. Está, então, explicada uma das vertentes da nova actividade operacional da companhia: zelar pela vila do Ambriz. Nunca lá fui e por isso, não conhecendo o local nem o que por lá se fazia, não posso adiantar nada acerca de como ocupavam o tempo. Sei, contudo que, patrulhas na mata não faziam parte das suas tarefas, sendo levado a concluir que, pelo menos nas folgas, dariam um saltinho à praia, ali à beirinha da vila. Como se vê e outra coisa não seria de esperar, muito melhor que no Rivungo.
Tirando isso, a missão da companhia, bem se pode resumir em três capítulos específicos: guarnecer a localidade, dar protecção à barragem e garantir a permanência de uma força, não uma grande força, apenas um punhado de homens, numa grande fazenda ali perto, no outro lado do rio Dande.
Guarnecer ou, se se quiser, garantir a permanência de tropas nas Mabubas, nem sequer podia ser considerado uma missão. Estar naquele simpático sítio era, por si só, um privilégio, longe da guerra e na companhia de boa gente. Para quem se habituara a viver com quase nada, isso era quase tudo.

A protecção à barragem, de facto, poderia ser uma carga de trabalhos. Bastaria olhar para a altura do paredão que retinha aquela imensidão de água e a fragilidade da localização da central hidroeléctrica, a jusante, lá em baixo, desprotegida e à mercê do que quer que a pudesse ameçar. Contudo, toda aquela zona estava bem protegida; uma tripla vedação, cada uma com três correntezas de arame farpado, sustidas por estacas sólidas de betão, constituíam uma quase intransponível barreira, tanto mais que, a fiada do meio, mais baixa que as demais, estava electrificada. A forma como ficavam esturricados os animais que, ignorando o perigo, se atreviam a passar por ali, era demonstração mais do que evidente da eficácia daquela protecção. E energia eléctrica era coisa que ali não faltava. Como se vê, podiam dispensar-se sentinelas; na Neriquinha, faltava electricidade e os quartos de sentinela, sempre cumpridos com resmoneios, eram dos trabalhos mais detestados. Só por isso, as Mabubas começaram logo por ser amadas.
Resta então, como verdadeira actividade operacional, a tarefa de zelar pela segurança da fazenda. Não ficava longe. Descia-se em direcção ao Sassa e tomava-se a estrada que levava ao Úcua e a Quibaxe, virando pouco depois para a picada que, correndo paralela ao Dande, se estendia irregular até penetrar no casario principal da fazenda. Pouco mais de quinze minutos mas nunca mais de meia hora, era o tempo necessário para percorrer a distância. Um nada quando comparado com todas aquelas horas que se levava a percorrer qualquer distância lá para os lados das savanas da Neriquinha.
Da fazenda apenas retenho que era muito extensa e que ali se produziam frutos, fundamentalmente laranjas, muitas. Também ali cresciam palmeiras dendeseiras, cultura a que se dedicavam, em maior ou menor grau, todas as fazendas das redondezas. Alias, a extracção de óleo de palma ou, como é mais conhecido, óleo de dem-dem, era uma indústria que por ali florescia. Mas, de facto, o que a minha memória preservou, quase que só se resume a montanhas de laranjas, prontas para serem processadas, colhidas por bandos de negros nos extensos laranjais espalhados pelos terrenos da fazenda cuja segurança nos calhou em sorte, assegurar.
Nunca cheguei a conhecer os pormenores dos planos estratégicos que norteavam a nossa missão ali, mas isso nunca foi coisa que preocupasse ninguém. Na prática, executavam-se uns quantos patrulhamentos seguidos da preparação de emboscadas para descansar o corpo. Contudo, creio que, no fundamental, o que mais importava era marcar presença, deixar bem visível que a fazenda tinha em permanência uma força militar armada, anulando qualquer intensão ou veleidade do inimigo que nunca chegámos a conhecer e que suponho não andaria pelas redondezas.
No regresso, lembro-me, deixavam-nos trazer as laranjas que quiséssemos. Escolhíamo-las de uma quase montanha delas empilhadas debaixo de um telheiro. De uma das vezes que lá fui, trouxe o bornal cheiinho. Por algum tempo o meu quarto ficou decorado a laranjas doces e sumarentas que iam desaparecendo ao ritmo da sede e da gula.
É verdade, confirmavam-se as nossas primeiras impressões: o cheiro da guerra, a solidão e as provações, tinham acabado. Por mim, quase arrumei a G3. Houve alturas em que cheguei a pensar que valeu a pena ter sofrido na pele as agruras e tormentos daquela terra selvagem para, agora, poder ser compensado com esta vida bonançosa.

7 comentários:

A.R. disse...

Sempre uma excelente leitura no início de cada mês. Abraço

Pedro Cabrita disse...

Continua a saga cronista do que predisseram os Velhos do Restelo, quando previram que aquilo iria acabar mal...

Coube-nos a desgraça de o sofrermos na pele mas, algum ganho de conhecer bem por dentro o que chamámos de Império durante cerca de 500 anos; essencialmente conhecer e lidar com as gentes que nunca vimos nem sentimos como irmãos. E afinal, a primeira vez que os encontrámos eram nossos inimigos.

A História do fim do Império é bem mais longa que a própria vida desse mesmo Império.
E tudo graças à arte de cronistas, bons cronistas, como o que nos coube na nossa parcela de presença em África.
Nunca será de mais agradecer ao Egídio Cardoso os belos textos com que nos embala a memória e o enlevo da nossa juventude.

Aquele abraço.

P. C.

Egidio Cardoso disse...

Tenho vindo a confirmar que, de facto, as vicissitudes passadas na Neriquinha parece terem ficado marcadas a ferro incandescente. Comparado com isso, a memória das Mabubas apenas se parece com uma suave sensação de quase férias.
A verdade é que isso não só influencia em mim o fluir das palavras, como ainda a decisão do que irei escrever a seguir.

Anónimo disse...

A "peregrinação" fernãomendespintiana continua, agora menos épica mas igualmente interessante.

Abraço

Morais

Afonso Loureiro disse...

É-me estranho conhecer as Mabubas sem as marcas da guerra que lá chegou alguns anos mais tarde. As comportas encravadas à custa de explosivos, a central eléctrica crivada de buracos de balas e o abandono que se sente na alma. Esforços inglórios. Sina dos Portugueses, talvez.

Egidio Cardoso disse...

Olá Afonso! Folgo em voltar a vê-lo por aqui.
Conta-se que a barragem já está a funcionar. Uma empresa chinesa tratou disso.
Contudo, fico com aquela sensação de que não é a mesma coisa.
E para que se veja que assim é, continuarei a deixar aqui a descrição daqueles tempos. pelo menos daquilo que a minha memória conseguiu preservar.

Anónimo disse...

21/12/2013 - Cardoso, como já nos habituaste, ler a publicação que tu com dedicação e de forma minuciosa, nos patenteias, é reviver momentos um pouco arrumados,mas n totalmente esquecidos. Ao falares da estrada do UCUA, recordo me que fazia a dita " PSICO" junto de aldeamentos numa picada que derivava dessa estrada e que passava por entre bananeiras e palmeiras. Não me recordo do seu nome,mas ao ver a publicação e a ilustração com fotos, o baú abriu se e deixou sair memórias enfurrejadas. Obrigado. Um abraço