
O facto é que o Morais se queixava de não ter conseguido pregar olho; o Candeeiro passou a noite rangendo os dentes, o que, considerando o exíguo espaço a que estavam confinados, para além dos arrepios que provocava, era barulho bastante para tirar o sono a qualquer um.
Era ainda noite cerrada quando os motores, roncando, arrancaram da sua imobilidade as viaturas meio atascadas na areia seca, avançando lentamente pela escuridão rasgada pela luminosidade dos faróis, ficando de novo o pessoal do Dima sozinho, entregue à sua rotina.
Tínhamos pela frente a extensa Mata da Capua e era importante que fosse atravessada enquanto durasse o dia, pormenor que condicionou todo o plano da viagem, a começar na saída da Neriquinha depois do almoço, o retomar da viagem pelo meio da manhã a partir de Mavinga e a terceira etapa que agora se iniciava quando ainda faltava um par de horas para o amanhecer. É verdade que sempre se ouvira, em cada chegada do MVL, as descrições pouco animadoras das características daquela mata que, descontando a propalada proximidade das bases inimigas, escondia dificuldades e obstáculos vários responsáveis pelos atrasos do MVL nas suas idas e vindas mensais carregados com os mantimentos para a tropa aquartelada desde o Dima até ao Rivungo. Assim, importava sair cedo prevenindo-se qualquer eventualidade ou surpresa. Acima de tudo, era necessário evitar que qualquer acidente de percurso nos obrigasse a uma indesejável pernoita no meio daquela selva travestida de savana.
As viaturas avançavam seguindo a picada cujos sulcos iam sendo fracamente iluminados pelo foco saltitante dos faróis que a irregularidade do caminho impedia que se fixassem num ponto. Perscrutava-se o negro envolvente na tentativa de adivinhar os contornos da mata escondida no denso e impenetrável manto preto da noite que, como quem não quer a coisa, quase sem se dar por isso, foi sendo vencida pelo cinzento da manhã que, aos poucos foi denunciando o pó fininho que, despertado pelo rolar dos pneus, se levantava em remoinhos que iam cobrindo o ar circundante de uma poalha difusa misturada com restos de folhagem seca que, esvoaçando desordenadamente acabava por poisar hesitante até a viatura seguinte voltar a tornar tudo num reboliço irritante que incomodava quem se lhe seguia.
Aquela mata era de facto diferente. Com a mesma areia, mas de maior densidade arbórea. E isso determinou que a picada que a atravessava fosse irritantemente sinuosa, talvez em demasia. E para piorar as coisas, as raízes à superfície constituíam obstáculos que obrigavam as viaturas a um permanente escoucinhar, a uma dança frenética, um constante balanceio entremeado de saltos e ressaltos que iam massajando os corpos do pessoal que procurava a todo o custo manter o equilíbrio sobre a carroçaria desconfortável de viaturas impróprias para o transporte de gente. E tudo isto retardava o andamento deixando aquela conhecida sensação de passeio de tartaruga a conferir maior dimensão a um local onde, pensava eu, nem ratos existiriam.



Alonguei o olhar para a imensidão da savana que, ao longe, se estendia para lá do leito sinuoso e resplandecente do rio. Senti uma sensação de alívio ao interiorizar que não mais voltaria para ali. Por agora, apenas me apetecia um bom duche que me livrasse do sarro acumulado nos últimos três dias. Tirando isso, tudo ficaria perfeito, pensei, se não encontrasse pela frente o comandante do batalhão. Tinha para mim que o homem não era pessoa de bem e por isso preferia não arriscar a eventualidade de um encontro que viesse estragar aquele fim de tarde quase perfeito.