
Olhei de relance, pela derradeira vez, a silhueta familiar do aquartelamento que, resguardado atrás da precária segurança do arame, ia desaparecendo do campo de visão à medida que a viatura progredia em direcção à picada que, indicando o caminho à nossa frente, se perdia no meio do capim amarelecido. Sem saber bem porquê, ainda olhei, de esguelha, para as últimas palhotas do kimbo com aquela certeza de que não mais as voltaria a ver. Aquela coluna podia estar a fazer o caminho de volta, como sempre o fazia e certamente voltaria a fazer mas, para nós, não haveria retorno.
Já passara a época das grandes chuvas e havia já algum tempo que a aridez do cacimbo se instalara secando a areia que se apresentava solta e entediante, obrigando as viaturas a uma marcha lenta rodando em primeira velocidade para melhor vencerem a resistência da areia solta que, dificultando a progressão, teimava em assorear os sulcos da picada. Afinal, nada a que já não estivéssemos habituados, tanto mais que aquele percurso era nosso conhecido. Por enquanto, e até chegarmos a Mavinga, a sensação era a de que ainda se vagueava pelas areias quentes da savana, porém desta feita, com ânimo diferente. O caminho era agora sempre para diante com a garantia de que não haveria voltar atrás como sempre aconteceu nas escassas vezes que, por imperativo da nossa missão, visitáramos a malta da companhia de Mavinga.
Para quem, como eu, que ufanamente se gabava de já conhecer aquelas matas, a viagem prometia ser um simples passeio pela savana imensa. E isso foi sendo confirmado à medida que se vencia aquele primeiro troço do percurso que liga a Neriquinha a Mavinga. As extensas chanas que abraçavam o tímido caudal do rio Cúbia apresentavam-se já com aquela cor familiar de verde a tender para o seco. Dentro de pouco tempo seria pasto das chamas, naquele ritual já nosso conhecido de ciclicamente se renovar pelo fogo. Como diz Mia Couto, a savana arde para poder viver.
Sem atrasos ou contratempos, aportámos a Mavinga pelo fim da tarde. De acordo com o plano previamente definido a viagem só continuaria no dia seguinte. Por agora, haveria que aproveitar o tecto oferecido o que, ainda que sem o conforto de lençóis aconchegantes, era dádiva a não regatear. O frio, que por aquela altura tinha por hábito andar de braço dado com as noites do cacimbo, era rigoroso e não se combatia com a fragilidade da parca roupa que se levava vestida.
A noite passou sem história, pelo menos ninguém se queixou, até porque não havia de quê. Sabíamos que a viagem seria longa mas isso não incomodava ninguém. A muito pior do que isso estávamos habituados e não seria agora que isso iria incomodar alguém.
Reiniciámos a marcha, lá pelo meio da manhã, deixando para trás dois dos apêndices que trouxéramos da Neriquinha: a gazela bebé que, não se dando bem com os solavancos da viatura foi acometida de compreensíveis enjoos não restando outra solução senão largá-la algures e o puto Candela que tinha à sua espera uma promessa de vida longe das matas onde cresceu e viveu os curtos anos da sua existência: um furriel da companhia de Mavinga, natural de Sá da Bandeira, predispôs-se a adoptá-lo. Não me lembro bem dos pormenores, mas penso que já estava tudo acertado para o efeito quando abandonámos a Neriquinha.


O nosso objectivo, naquele dia, era chegar ao Dima, um lugar com má fama, considerado o pior sítio para se estar em todo o Cuando Cubango. Constava que era atacado de quando em vez e o pessoal ali destacado, um pelotão da companhia de Mavinga que se revezava amiúde, passava as noites em sobressalto. Era exactamente ali que estava previsto pernoitarmos, dando por finda a segunda etapa daquela longa travessia.

Não perdi tempo a fazer qualquer reconhecimento do local; não me interessava. Estava apenas de passagem e com a garantia de que, depois de atravessar aquele deserto infernal, não voltaria a pôr os pés nas areias daquela savana inóspita. Mas deu para perceber a exiguidade das instalações, sendo visível no topo do edifício principal um arremedo de torreão guarnecido com uma metralhadora pesada cujo modelo nem cheguei a identificar, sinal mais do que suficiente para me convencer de que os tão propalados ataques ao aquartelamento não eram invenção. Mesmo que não fossem muito frequentes seriam certamente o bastante para transformar num inferno a vida de quem tinha por missão a defesa daquele pedaço da soberania portuguesa.
Acoitei-me o melhor que pude procurando abrigo debaixo de uma das viaturas. A areia fofa e ainda quente pela exposição ao calor do dia era conforto bastante e rapidamente adormeci sob a precária protecção do camião; a pior do que isso estava habituado e não seria por falta de colchão e lençol que perderia o sono. Mas a sensação de que estava exactamente no meio do inferno passou-me pela mente antes de adormecer embalado pela certeza de que, na madrugada seguinte, retomaríamos o nosso lugar naquela espécie de barca de Caronte que nos conduzia para fora daquele imenso mundo inferior.
Ali ninguém era Orfeu e não estava em curso o resgate de uma qualquer Eurídice. Também é verdade que nenhum de nós se cruzara com Hades ou Perséfone mas, por uns momentos, imaginei-me à boleia do barqueiro Caronte no regresso de mais uma viagem ao inferno onde passei dezoito meses da minha vida. Naquele preciso momento, senti como se estivesse no centro dessa terra de ninguém, mas reconfortado pela certeza de que isso seria apenas por uma noite. Quanto aos nossos anfitriões, apostaria que, naquela noite, dormiram descansados o sono dos justos. Quase uma companhia inteira era defesa mais do que suficiente contra qualquer ataque que pudesse estar programado pelo inimigo. Mesmo que assim fosse, pensei, não se atreveriam.
Ali ninguém era Orfeu e não estava em curso o resgate de uma qualquer Eurídice. Também é verdade que nenhum de nós se cruzara com Hades ou Perséfone mas, por uns momentos, imaginei-me à boleia do barqueiro Caronte no regresso de mais uma viagem ao inferno onde passei dezoito meses da minha vida. Naquele preciso momento, senti como se estivesse no centro dessa terra de ninguém, mas reconfortado pela certeza de que isso seria apenas por uma noite. Quanto aos nossos anfitriões, apostaria que, naquela noite, dormiram descansados o sono dos justos. Quase uma companhia inteira era defesa mais do que suficiente contra qualquer ataque que pudesse estar programado pelo inimigo. Mesmo que assim fosse, pensei, não se atreveriam.