terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

LITENDA – O Administrador do Rivungo

Existiam diferenças entre a Neriquinha e o Rivungo e significativas, sem dúvida. Desde logo, a proximidade do rio. Na Neriquinha não corria água enquanto que o Rivungo era banhado pelas substanciais águas calmas e sinuosas do Rio Cuando. Contudo, a principal diferença residia na sua estrutura administrativa. Enquanto a Neriquinha era apenas uma espécie de acampamento militar, delimitado por uma cerca de arame farpado, à beira de um descampado em forma de pista de aviação, o Rivungo era considerado uma povoação. Em termos administrativos, uma Circunscrição. Isso significa que tinha casas e uma autoridade administrativa, para além das instalações militares que albergavam, junto ao Rio, um destacamento do exército enquadrado por um pelotão da companhia da Neriquinha e um destacamento de Marinha. Havia ainda dois agentes da DGS, que se entretinham em secretas actividades de espionagem e a PSP, cuja missão não era propriamente a manutenção da ordem pública mas a defesa das populações que habitavam os Kimbos administrativamente dependentes do Rivungo e disseminados pela mata a distâncias consideráveis: o Liahona, o Mugamba e o Demba, no enfiamento da picada que levava à Neriquinha, o Caxoxo meio perdido mais para o interior, o Samatamo à beira do Cuando a meio caminho do Chipundo, constituindo este a derradeira fronteira a sul e finalmente, ali bem pertinho, a Mahinha, pequeno kimbo com meia dúzia de cubatas, arrumado no meio das lavras mantidas pela população.
A mandar em tudo isto, o Administrador. Em tudo não, que o homem não mandava na tropa, nem na marinha e tão pouco na DGS e tenho dúvidas quanto à sua ascendência sobre a PSP. Mas era de facto a autoridade civil máxima por aquelas bandas e não deixava os seus créditos por mãos alheias. Creio que nunca cheguei a saber o seu nome de baptismo e quanto ao seu apelido, perdi-o nos recantos da memória. Formalmente, era tratado por Senhor Administrador, pelo menos era esta a forma como todos se lhe dirigiam, desde o membro mais insignificante da população até às mais altas hierarquias que por ali andavam. Tirando isso, era simplesmente conhecido pela alcunha de Litenda. Fosse em que circunstância fosse, estivesse quem estivesse, desde que o homem não andasse por perto, Litenda era o nome que se usava, mesmo em ambientes formais. E tornou-se tão vulgar que havia quem pensasse ser esse o seu nome, embora se soubesse que não gostava da alcunha, mostrando-se enfadado sempre que se apercebia que assim o tratavam.
O Litenda era um homem peculiar, de tal forma que quem quer que tivesse estado no Rivungo, nunca mais o esqueceu. E, no Cuando Cubango, mesmo quem não o tenha conhecido, certamente que dele ouvira falar. Fosse em que circunscrição fosse, o seu nome e as suas façanhas eram sobejamente conhecidas. As suas características físicas eram marcantes, quase especiais, diria únicas. Tirando os membros da população local, era certamente o mais velho habitante do Rivungo, o que é natural já que, entre os que por ali andavam em missão de soberania, poucos haveria com mais de trinta anos. Exibia uma pose estudada de jovialidade e desenvoltura, numa tentativa ensaiada de disfarçar a idade denunciada pela vasta e luzidia calvície, característica que lhe deu a alcunha: No dialecto local, Litenda significava careca e encerrava em si uma carga depreciativa.
Corpo esguio, normalmente enfiado numa farda cor de caqui, cujo corte lhe realçava a magreza, especialmente a calça estreita, quase justa pelos artelhos, a alongar o sapato que fazia questão de usar no meio daquele mundo de pó. Sobre os ombros, uns galões com aplicações avermelhadas atestavam a autoridade que o cargo lhe conferia. A pele tisnada, de um castanho carregado pela exposição ao sol acentuando o brilho da careca sem pêlo, denunciava uma vida inteira de deambulações pelas savanas e recônditos lugares das profundezas de África, acumulando histórias e aventuras que contava à medida do discorrer de memórias de tempos passados, uma das quais certamente explicaria a perda de um olho, cuja cavidade vazia era preenchida por uma esfera de vidro rapidamente identificável pela imobilidade das pálpebras envolventes. Era, enfim, o típico branco africano que parecia conhecer bem a zona, os costumes e até os hábitos dos turras. Sabia sempre de um caminho novo nos itinerários que percorria amiúde nas visitas que ia fazendo às populações espalhadas pelos kimbos da circunscrição que chefiava, sendo notória a sobranceria com que as tratava. Dando-se ares de superioridade perante populações que parecia considerar como seres inferiores, fazia alarde das receitas que possuía para os manter controlados. Como costumava dizer: - Importa é que não armem maka! Maka, termo, que por ali significava confusão, era coisa que, pelo menos no meu entender, não fazia sentido: aquele era um povo pacífico que só se preocupava com a sua subsistência e nunca os vi causar distúrbios que merecessem preocupaçao.
Sempre ao volante do seu Land Rover, autêntico parceiro de aventuras, circulava pela savana imensa, acompanhado por dois ou três Sipaios, espécie de guarda pretoriana sem condições para fazer frente a qualquer eventualidade. Armados apenas com velhinhas Mauser, totalmente desadequadas à realidade da guerra e que, já naquela altura, mais se pareciam com peças de museu, mesmo quando comparadas com o armamento dos guerrilheiros. Mas era esta a companhia do Litenda nas suas incursões pela mata, especialmente um deles que não descolava do Administrador, acompanhando-o para onde quer que fosse, como uma autêntica sombra sem nunca se lhe ouvir uma palavra ou lamento; e quando andava sozinho, levava certamente um recado a alguém em cumprimento de ordens do chefe. Arrumados nas traseiras da viatura, procurando a todo o custo não serem cuspidos pelos contínuos solavancos, saltos e piruetas a que a picada esburacada obrigava, representavam a única segurança com que o Litenda se atrevia pelas matas, como se estivesse protegido por um qualquer pacto que lhe assegurava imunidade à eventualidade de uma emboscada, coisa que, verdade seja dita, nunca lhe aconteceu, pelo menos enquanto andou por terras do Cuando Cubango.
Nas suas mãos, o Land Rover dava o máximo, que o Litenda não sabia conduzir devagar; dizia que assim evitava atascar na areia solta. Mas verdade seja dita, dentro ou fora da povoação, a velocidade era sempre a mesma. Quando nos visitava, normalmente para tratar de qualquer formalidade com o alferes, acelerava pela picada que findava junto às nossas instalações e numa manobra ensaiada e quase mecanizada pelo número de vezes que a executou, rodava o volante para a direita, inclinava o corpo para o mesmo lado como se quisesse anular o efeito da força centrífuga e num rodopio, como se intentasse fazer inversão de marcha, colocava o Land Rover numa posição perpendicular à picada, deixando-o depois descair pelo declive parqueando no terreno adjacente.
Até um dia. O alferes, talvez inspirado no sistema de defesa da Neriquinha, decidiu cavar, logo ali ao lado, um buraco rectangular onde pretendia montar o morteiro e com isso aumentar a capacidade de defesa em caso de ataque à localidade. Poucos se aperceberam do avançar da obra e o Litenda, para sua infelicidade, desconhecia-a de todo, não sabia, nem tinha sido informado. O pior, é que o sítio entendido como adequado para abrir a trincheira foi exactamente aquele onde, por hábito, o Administrador costumava largar a viatura. A agravar a situação, o pessoal destacado para a obra exagerou no tamanho do buraco. Assim, quando uma qualquer razão levou o Litenda a visitar-nos, montou-se no Land Rover, acelerou pela picada e com estilo executou com mestria a manobra do costume, deixando depois a viatura deslizar de marcha-atrás pelo declive. Não viu nem podia ver que, naquele exacto local, existia agora um buraco e de tamanho suficiente para engolir a viatura cujas rodas do seu lado esquerdo acertaram direitinhas no vazio da trincheira em construção. O Land Rover adornou, afundou-se lentamente, enrolou-se sobre si mesmo capotando e pousou no fundo da trincheira de rodas para o ar numa posição caricata, com os quatro pneus a rodar no vazio como um qualquer escaravelho que, ao tombar, não se consegue endireitar, dando às patas numa tentativa de sair da posição desconfortável.
A muito custo e ainda meio atarantado, o Litenda, esgueirou-se do interior da cabine e trepou até sair do buraco. Sacudiu-se, tentou compor a pose, ensaiou um ar irado e apontando o buraco, gritou: - Quem abriu aqui este buraco? Conteve-se, procurou acalmar-se refreando o chorrilho de asneiras que se adivinhava pronto a sair, engoliu em seco e pareceu raciocinar sobre o que lhe acabara de acontecer, à medida que tomava consciência da situação. Ao ver o ar sério e preocupado do alferes deve ter juntado dois e dois e deduzido que o culpado tinha autoridade e se calhar justificação para mandar executar a obra. Só não sabia qual. A risada mal disfarçada dos circunstantes misturou-se com a preocupação agravada pela culpa assumida - o homem podia ter-se magoado a sério. De facto, podia ter-se ali colocada uma sinalefa qualquer, avisando do perigo. Mas agora era tarde e ao alferes, apenas lhe saiu um: 
- Então, Sr. Administrador! O senhor está bem? 
Eu não resisti a olhar insistentemente para a cara do homem. O capotanço, mais parecendo uma cena em câmara lenta, não causou grande estardalhaço, mas podia ter-se magoado, partido qualquer coisa ou, lembrei-me, ter perdido o olho de vidro. Mas não, nem um arranhão. O Litenda apenas se esforçava por conter a irritação ao mesmo tempo que balbuciava. 
- Eu não tenho nada! A viatura é que deve estar toda partida! E acocorando-se, espreitava a parte visível da carroçaria procurando avaliar os estragos.
- E agora? Como vamos tirar isto daqui? Era de facto um problema a resolver. O Land Rover não estava apenas capotado, estava completamente encaixado dentro do buraco que mais parecia ter sido feito à medida. Tirá-lo dali não iria ser fácil, não obstante as sugestões, bitaites e toda a espécie de palpites por parte dos circunstantes. Por sorte, decorriam as obras de construção da nova pista de aviação havendo, por isso, maquinaria pesada capaz de desenterrar a viatura sem a amachucar mais do que já estava. No fim, pelo ridículo e embaraço da situação, a auto-estima do Litenda saiu mais amachucada da refrega do que o Land Rover acidentado.

6 comentários:

Gabriel Costa disse...

Caro Caedoso:

LITENDA também queria dizer, Monstro. E, de facto, aquela figura -de pele curtida, meio monhé, o ar estranho dado pela órbita ocular com uma esfera de vidro e a cabeça de Mahatma Ghandi, sem cabelo- bem podia ser utilizada num filme de "A Múmia" que não ficaria mal!

Egidio Cardoso disse...

Não sabia... ou já não me lembrava que o termo tambem tinha esse significado.
Mas vem confirmar a minha teoria sobre as relações do homem com a população.
Creio que era mais temido que respeitado. Enfim, um Africano dos antigos!

Anónimo disse...

Pela descrição da figura do Litenda, sem eu saber quem foi, é o retrato típico do Administrador de Angola e das outras colónias, em que a maioria era oriunda de descendentes mestiços de Caboverde, ou Goa ou de qualquer colónia.

Quem como nós que iamos da metropole e nunca nos chegavamos a integrar intimamente nas sociedades tradicionais africanas, esses Administradores assim descritos, dominavam vários dialetos angolanos e tinham um domínio sobre as populações, que nem armas precisavam para circular em qualquer ponto de Cabinda ao Cunene.

Muitas vezes ficava-se na dúvida se não jogavam com "pau de dois bicos".

Ou mesmo com vários bicos, MPLA. UNITA, FNLA, e SALAZAR.

Penso, hoje, que nos meus 18 anos de Angola, nnunca conheci um Administrador assassinado pelos Turras.

Cumprimentos

Antº Rosinha

Egidio Cardoso disse...

Bem observado, caro amigo Rosinha.
E também relativamente à origem do homem. A memória já vai sendo castigada pelo tempo, mas a sua observação conjugada com a do Gabriel que o refere como Monhé, trás-me á memória um facto; este homem era Goês. Daí a sua pela tisnada.

Anónimo disse...

Devem ter sido todos "fundidos"no
mesmo molde.Encontrei idênticas
criaturas em terras de Moçambique.
Curiosamente do outro lado do mar
que banha Angola,na Amazónia vamos
encontrar os mesmos "passarões".

"O administrdor da circunscrição,
único funcionário,máxima autoridade
e representante de um poder demasi_
ado longínquo para infundir receio,
era um indivíduo obeso que suava sem descanso.
Diziam os habitantes do lugar que
a suadeira dele começara logo que pusera pé em terra depois de desem_
barcar do "sucre"e que desde então
não deixara de espremer lenços,ga_
nhando assim a alcunha de "a Babo_
sa".
Murmuravam também que,antes de chegar a EL Idilio,esteve nomeado para uma cidade grande da serra e que,por causa de um desfalque,o mandaram para aquele recanto perdi_
do da região oriental como castigo"

No romance do Chileno Luís Sepúl_
veda,inteiramente passado na Amazó_
nia,que ele intitulou"O velho que lia romances de amor".
Carlos Nabeiro.

Anónimo disse...

Só para ficar registado, "se bem me lembro", o nome do Litenda era Vasconcelos.

Morais