terça-feira, 29 de dezembro de 2009

TOQUE A INIMIGO...!

Para lá da inspecção administrativa regular, o Major Tamegão trouxe, em determinada altura, a missão de avaliar a capacidade de resposta operacional da Companhia no aquartelamento.
O Major levantava-se sempre muito cedo, por mais que eu lhe sugerisse que relaxasse enquanto estivesse por ali, longe das suas obrigações de 2º comandante do Batalhão. Que tinha tempo, quando regressasse ao Cuito-Cuanavale, de exercitar aquele hábito meio militarizado de madrugar. O corpo, no entanto, estava habituado àquela tarimba e ei-lo que, todos os dias pelas sete horas, já vagueava pelo aquartelamento de mãos atrás das costas, esperando que nos levantássemos para lhe fazermos companhia. Entretanto ia metendo o nariz aqui e ali.
Um dia, logo após o hastear da bandeira, cerimónia a que assistia todos os dias com inusitada devoção (uma espécie de missa da madrugada que elevava a fé na instituição) o nosso Major solicitou ao oficial de dia que mandasse tocar a alarme para verificar como reagia a tropa. Segundo as regras militares, ao som daquele toque, toda a Companhia se deveria dirigir aos abrigos o mais rápido possível, tomando posição de combate, postando-se em defesa do aquartelamento.
O oficial de dia, receando alguma falha, decidiu perguntar ao corneteiro se conhecia o toque, porque para ele aquilo era uma novidade.
Embaraçado o corneteiro lá consultou os seus colegas de função e lá se arranjou uma “opereta” de circunstância, que se depreendeu dever ser parecida com o que solicitara o Major. Estou em crer que, ainda que muito diferente, o nosso Major não teria ouvido suficientemente educado para exercer qualquer crítica sinfónica. Para ele qualquer coisas serviria, desde que com o efeito programado.
De permeio o corneteiro lá foi bufando pelo canto da boca a um ou outro companheiro que passava nas proximidades, que aquilo que se ia ouvir era um toque de alarme, pelo que todos se deveriam dirigir aos abrigos. Sintoma que não augurava grande crédito ao corneteiro quanto à peça melódica que iria ecoar pelos ares nas terras do fim do mundo.
Assim foi. O toque soou, com o pessoal a encaminhar-se pachorrentamente para os abrigos em amena cavaqueira e cigarrito ao canto da boca – alguns com a arma apoiada no ombro segura pelo cano – cumprindo aquela chatice de alguns terem que sair da cama mais cedo e outros a irem à caserna buscar a arma, quando já se encontravam nos trabalhos que lhes estavam destinados naquele dia. Parece que quinze minutos depois de ter soado o toque de alarme ainda havia soldados a dirigirem-se para os abrigos, quando o nosso Major, de relógio em riste, esperava que o tempo não ultrapassasse um ou dois minutos para considerar aceitável a resposta dada ao sinal de alarme.
O nosso Major ficou destroçado e incrédulo, enquanto o Alferes se mostrava incapaz de encontrar alguma justificação plausível que satisfizesse a frustração de nosso Major, perante tanta “permissividade” da tropa.
Habituado ao toque costumado do hastear da bandeira, autêntico despertador natural do mato, acordei um pouco confuso com aquela nova melodia. Levantei-me de um salto, como quem não quer perder nada da festa que parecia anunciar-se com aquele rebate matinal.
Já me dirigia para a messe quando, autenticamente “emboscado”, o Major me esperava a meio do caminho das tabuinhas, agitando frenético e nervoso os dedos das mãos atrás das costas. Eu já lhe conhecia o gesto e a partir daí comecei de imediato a desmontar a ideia de festa que me vinha animando a alvorada.
Sem mais delongas, ainda eu não tinha desfeito a continência, já ele desfiava logo ali a enorme ladainha do seu descontentamento e estupefacção pela resposta totalmente inadequada que a minha tropa tinha dado ao toque de alarme. Percebi de imediato o significado daquela estranha melodia que me tinha acordado prazenteira logo pela manhã.
Desliguei um pouco daquilo que ouvia, enquanto o Major continuava a despejar-me motivos de sobra para as minhas futuras preocupações, que deveriam concentrar-se naquele desastre de segurança para todos. Incluindo o Major, claro. Por fim encontrei algo para dizer.
- O meu Major não se importa de esperar umas horas?
- Umas horas? Mas para quê? Respondia-me sem vislumbrar o meu ponto de vista.
- Isto não pode ser. Um dia o inimigo entra-vos pelo quartel dentro e vai ter convosco à cama.
Percebi que era uma visita que o Major não desejava, pelo menos enquanto se mantivesse por ali. Julgo que terá sido o momento em que, por fim, sentiu a insegurança que todos nós vínhamos sentindo havia largos meses, por via do isolamento em que nos encontrávamos.
Contudo, após mais uma ou duas censuras lá anuiu e acalmou. Durante todo o dia não se falou mais no assunto mas sentia-se que o Major tinha ficado incomodado.
Escureceu.
Logo a seguir ao jantar, solicitei a um dos Alferes que levasse o nosso Major para junto das casernas onde os militares se acomodavam para dormir. Intrigado o Major deixou-se conduzir, sempre naquele seu ar de latifundiário com boa vida, mãos atrás das costas e passos lentos despreocupados.
No silêncio da noite fiz explodir uma granada ofensiva nas proximidades das casernas. O estrondo naquele silêncio nocturno soou demolidor.
Foi um pandemónio. O Major quase foi atropelado e teve que se proteger. Em menos de um minuto as casernas ficaram vazias e todos os soldados ocuparam os seus postos de combate. Peguei no Major e convidei-o a percorrer comigo todos os abrigos. Parte dos soldados, ou estavam em cuecas e descalços, ou em tronco nu, mas de cartucheiras à cintura e a espingarda na mão. O Major não balbuciou uma palavra, nem voltou mais a falar no assunto. Apenas me respondeu quando, perante aquele quadro, lhe disse:
- Meu Major; é que não estou propriamente à espera que o inimigo me apareça e eu tenha tempo de mandar o corneteiro tocar a alertar porque nos vão atacar...!
- Pois. Mas sempre era bom que conhecessem o toque...
- ... ?!!

In “Capitães do Vento”, Roma-editora.

2 comentários:

Gabriel Costa disse...

Este Major Tamegão era um tipo catita. Certo dia, dee passagem pela N'riquinha, quis ir á caça e lá me calhou como companhia. Lá conseguiu matar uma espécie de mocho gigante com uma arma que montou a partir de um estojo que trazia consigo. Era uma arma checa que, de pistola, se transformava em espingarda com o acrescento de um cano e a aplicação de uma coronha. Parecia um miúdo, tal foi o seu contentamento. Não gostava de negros e não podia com o Araújo, um cabo-verdeano, dos poucos que havia na companhia.
Um dia, já com a companhia nas Mabubas e com o comando do batalhão na fazenda Tentativa, estava o major Tamegão junto do comandante quando este se queixava das melgas que, eram tão ferozes, que o mordiam mesmo através do tecido das calças. O major Tamegão, muito rápidamente, atira: "A mim não, meu comandante. A mim não me mordem através das calças". Tinha razão: estava de calções|

Egidio Cardoso disse...

O Major Tamegão era o que hoje se poderia apelidar de "um cromo", era o motivo ideal para uma anedota.
Se todos os que com ele lidaram se lembrassem de escrever as suas máximas, teríamos certamente um best seller de humor militar.
A história do TOQUE a INIMIGO é verídica e ilustra a falta de bom senso do homem. Creio que demonstra que ainda não percebera as características da guerra colonial.
Continuava agarrado às teorias de compêndio que fora assimilando ao longo da sua longa carreira militar.
Era conservador, pouco iluminado, retrógrado, caricato, mas não deixava, por isso, de ser um bom homem, como aliás referi na história, “COMANDANTES” publicada neste blog em Setembro de 2009.