terça-feira, 19 de maio de 2009

ANGOLA - A Guerra e a sede.

…/… Há dois dias que andamos sem encontrar água.
Dois longos dias sem inimigo nem água, sendo que o primeiro não nos faz falta nenhuma. O sol não dá tréguas e continua a derramar ondas de calor chamejante desde que nasce até se esconder no horizonte vermelho, num presságio de promessa de novo inferno para o dia seguinte.
As reservas de água carregadas no rio há dois dias atrás estão esgotadas há muito. Vem-nos à memória, em jeito de miragem de uma onda de frescura, a malfadada travessia do rio dias atrás às sete da manhã. Há quem verta um resto de água quente na tampa do cantil para molhar apenas os lábios, voltando a guardar religiosamente as gotas que restaram, como se de ouro ou uma relíquia se tratasse. Há quem se atire para o chão e jure que não sai mais dali, para logo mudar de ideias mal a coluna preguiçosa se põe de novo em marcha em busca de um oásis que ninguém promete.
A língua fica pastosa e dificulta o falar. A saliva é praticamente inexistente. É como se viéssemos a mastigar cola. Os lábios ásperos e gretados ouvem-se roçar um no outro e queimam.
- Água! Ouve-se na frente.
- Água!
Passos apressados, um ânimo que parece renascer não se sabe donde, um ir destapando um cantil que ferve à cintura vazio e seco.
- ... água?
A “água” é um charco pestilento calcado por dezenas de pegadas de animais, mistura de lodo e algum líquido que borbulha à superfície, onde pululam uns bichinhos minúsculos de pouco mais de meio centímetro, movimentando-se num saracotear de corpo todo – que em pequeno costumava ver nas valetas de água parada da minha aldeia misturados com os girinos – a que se dava o nome de saltitões.
Muitos não resistem. Procuram uma zona de maior profundidade, três a quatro dedos, inclinam o cantil e enchem-no até onde é possível, procurando enxotar as pequenas jangadas de porcaria pestilenta que se precipitam em direcção à boca do cantil. Com uma bola de algodão tapam o bocal do outro cantil e vertem-lhe aquele líquido meio espesso que vai deixando o algodão empapado de lama e saltitões que se debatem como nós pela sobrevivência.
Juntam-lhe um daqueles comprimidos militares que garantem destruir a maior parte das doenças (além do fígado e dos rins) que pululam nas águas podres – teoria jamais comprovada, mas que ajudava a beber qualquer porcaria para não morrer de sede – e agitam o cantil com grande intensidade procurando aumentar o efeito do químico. Alguns nem dão tempo sequer a que se derreta e apazigúe alguns dos milhentos micróbios que se preparam para ajudar o IN, devorando-nos a nós.
O sabor é horrível mas só param depois da quarta ou quinta golada, não vá o saborear antecipado corromper a vontade de matar a sede. Alguns resistentes parecem preferir o risco de morrerem à sede, mas têm algumas armas escondidas em que confiam e que hão-de utilizar na hora certa e no momento apropriado.
Cai a noite estrelada e fresca. O desânimo é enorme. No silêncio murmuram-se maldições.
- Agora só faltava os turras atacarem, ouve-se.
- Se trouxerem água até a G3 lhes dou, carago. Que puta de vida. Que mal fiz eu a Deus? Andou a minha mãe a criar-me com tanto carinho para isto.
Ninguém tem vontade de comer. A sede tira qualquer vontade de mastigar ou engolir o que quer que seja. No mato morre-se de sede. Dificilmente se morre de fome. A água até a fome engana.
A boca tem um sabor estranho, o raciocínio imobiliza-se, o pensamento tem um único sentido: chuva, rios, mar, vinho, cerveja, água, água, água …
Na escuridão que já nos envolveu há duas ou três horas, vislumbro três vultos que deslizam em silêncio saindo duma tenda afastando-se ligeiramente da zona de concentração, sendo claro o cuidado que põem em não fazer o menor ruído para não serem vistos. Tanto quanto me é dado a perceber, um pouco mais além agacham-se os três e ficam imóveis. A situação desperta inicialmente a minha curiosidade. Há militares que ficam de sentinela de noite guardando o sono dos companheiros que dormem. Mas não assim. Normalmente são quatro que se dispõem formando um quadrado, alguns metros para lá das tendas dispostas em círculo. Admito uma segunda circunstância relacionada com a satisfação de necessidades fisiológicas, cujo uso tinha regras. Mas em grupo não me parecia apropriado. E para outras, … essas sim de grupo... o momento não me parecia o mais oportuno...
Desligo-me da situação porque nem me apetece indagar. Disponho-me a tentar dormir.
Cinco minutos depois.
- Meu Alferes, meu Alferes! Já viu? Sussurra-me o furriel “Montijo” entrando de cócoras na tenda em grande agitação.
- O quê? Pergunto, sem me mexer nem abrir os olhos. Achei que na altura me podiam até atacar que a vontade de me mexer seria nula.
- O Serrano, o “Galinhas” e o Gama estão ali atrás das tendas de joelhos a rezar para que chova. O meu Alferes já viu o que é que a merda da falta de água faz? Os gajos piraram. Têm os miolos cozidos do sol.
- Não me parece “Montijo”. Na hora do aperto a fé é a última arma para algumas pessoas. Você não acredita em Deus? Disse, continuando de olhos fechados perguntando-me a mim próprio por que carga de água trazia eu aquele tema para a conversa numa altura daquelas.
- Nunca fui de ir à missa, meu Alferes. Só me lembrei de Deus quando estive quase a patinar naquele acidente em que me ia partindo todo contra um poste. Ia lá deixando os dentes todos. Já lhe contei essa, não contei? Depois curei-me e olhe, nunca mais me lembrei disso outra vez.
- Pois é “Montijo”; quando a vida começa a andar para trás é que as pessoas se lembram de Deus. É assim como quando faz trovões. Depois, passa a tempestade e só se voltam a lembrar quando trovejar de novo.
- Não tinha que morrer. Senão tinha morrido mesmo, não acha? Eu só me lembrei. Mas não pedi nada. Eu nunca acreditei em Deus. O que tiver que ser é... e seja o que Deus quiser...
- Claro, “... e seja o que Deus quiser “Montijo”… ”.
- Vamos mas é dormir ó “Montijo”, porque assim nem sentimos a sede. Amanhã à noite estamos em casa.
O “Montijo” acomoda-se na tenda virando-se de costas para mim enquanto abafa um riso fungado que se lhe escapa pelos dedos que comprimem o nariz.
- Meu Alferes! Tenho a impressão que já está a pingar...
- Não goze “Montijo”, não goze.
- Os gajos piraram. O “Galinhas” então, mesmo sem sede já é marado.
Na mata às sete horas já se dorme. Naquela noite seriam umas nove quando nos dispusemos a tentar descansar, perturbados como estávamos com a falta de água que nos martirizava de uma forma difícil de traduzir por palavras. Os tormentos da sede confundem-nos de tal forma o raciocínio e os sentimentos que o que fica na memória é uma espécie de dor vazia de imagens, cuja recordação traz mal-estar e um enorme desejo de não lembrar.
Duas da madrugada. Em enorme sobressalto agarro-me à espingarda com o “Montijo” em grande alvoroço dentro da tenda.
- Meu Alferes, meu Alferes; porra chove para caraças; o cantil, o cantil!
Uma das características do clima de África é a alternância brusca entre um sol radioso ou uma noite estrelada e uma chuvada diluviana em menos de uma hora, para logo depois tudo serenar.
O alvoroço era indescritível. Inventavam-se mil e uma maneiras de apanhar a água que caía generosamente do céu. Fizemos uma goteira a partir do bico dos ponchos que formavam a tenda e a água corria a fio ali mesmo à nossa frente. Alguns soldados dançavam em grande algazarra à chuva agarrados uns aos outros, perante a escamação do Alferes Chagas que lembrava em vão a necessidade de observância do silêncio e das normas de segurança.
- Eu quero que os turras se f....
Era o tipo de resposta que invariavelmente se conseguia ouvir, numa perfeita loucura que subvertia os conceitos e preconceitos, comandos e hierarquias, que no escuro de uma noite de chuva intensa sofregamente abençoada se misturavam e confundiam.
A água sabia à borracha dos ponchos e trazia um leve travo salobro do suor que se lhe entranhava durante o dia quando transportado às costas dobrado e atado ao saco. E tudo porque ninguém se atreveu a perder as primeiras gotas que caíram e o lavaram de três dias de poeira e transpiração transbordante. A chuva podia terminar de um momento para o outro. O céu escuro não deixava adivinhar a dimensão da chuvada.
Choveu toda a noite. Foram bebedeiras de água e de pragas devolvidas ao sossego dos espíritos saciados da guerra da sede. Qual alambique destilando o melhor álcool, cada cantil sabia melhor que o anterior, depois de bem lavados os telhados da tenda que nos abrigava. Ninguém mais dormiu. Não só porque todos queriam beber até não poder mais, mas também porque a chuva inesperada encharcou tudo, entrando pelas tendas adentro.
Meditativo, o “Montijo” está sentado à porta da tenda de pernas cruzadas e olhar fixo no fio de água que escorre para dentro do cantil.
- Porra meu Alferes! E choveu mesmo. Diz sem tirar os olhos da água que corre límpida para dentro do terceiro ou quarto cantil que enche.
- Agora é que você começa a ir à missa ó “Montijo”.
- Náh! O meu primo era um beato do caraças que até ajudava à missa. Mesmo assim não deixou de se enfiar por uma ribanceira abaixo com uma bebedeira que nem queira saber. Olhe, ainda ficou com menos dentes do que eu.
- Mas ó “Montijo”; isso foi da bebedeira.
- Ó meu Alferes; e Deus naquela altura também estava distraído ou com os copos, não? Ao que consta, Deus não dorme... nem bebe. Só que... sei lá…
Pronto. E assim se tresmalhou mais uma ovelha que se admitiria poder constituir-se num sério candidato ao rebanho de Deus, passada que foi aquela provação de tão grande aperto e sofrimento.
Talvez na próxima, quando Deus e os homens ousarem desafiar as convicções de um “Montijo” que entende que a chuva nem sempre cai quando Deus quer ou manda…/…

P. Cabrita
Excerto do livro “Capitães do Vento” Dezembro de 1970, algures nos Dembos – Norte de Angola

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