Saíra muito cedo com a incumbência de recolher no Chipundo o acidentado Land Rover da PSP daquele posto. Para a missão, dispunha de uma velha berliet e meia dúzia de homens (eu e o condutor incluídos). Uma pequena depressão no terreno, a ajuda dos taipais laterais a fazerem a vez de rampa, alguma imaginação e trabalho braçal, resolveram o problema de carregar sobre a berliet a viatura estropiada que jazia morta, inútil e exposta às intempéries, nas imediações das instalações da PSP, autêntica imagem de um trágico desastre, dificilmente compreendido.
Percorríamos agora o caminho de regresso, avançando cautelosamente pela picada irregular, já que o Land Rover, movendo-se constantemente numa dança instável, ameaçava fugir da boleia, obrigando a uma paragem para reforçar as improvisadas amarras que, através dos buracos do fundo da carroçaria, o prendiam à estrutura da berliet.
Aquele troço, já nosso conhecido, serpenteava ao longo de uma zona desarborizada no meio da qual, dois sulcos desenhavam uma picada riscada no verde da paisagem, compondo uma espécie de corredor apontando em direcção a norte. A mata, de ambos os lados, aparecia um pouco mais ao longe, definida por uma linha de árvores feitas sentinelas à entrada de uma terra de ninguém de onde emergia uma manada de imponentes búfalos pastando indolentes. No outro lado, um grupo de pequenos macacos saltitando de árvore em árvore, grunhiam atrevidos como que provocando aqueles intrusos montados numa geringonça barulhenta por ali vista apenas de quando em vez.
O Chipundo era o último reduto, espécie de fronteira mais a sul daquilo que se poderia chamar área de actuação da CCaç 3441 e distava cerca de 3 a 5 horas a partir do Rivungo. Naquelas paragens, a distância dependia sempre da época do ano, do estado da picada, das condições climatéricas e muitas vezes das birras da viatura que se utilizasse, fazendo com que algumas dezenas de quilómetros parecessem centenas.
Era uma espécie de subdivisão do círculo administrativo do Rivungo e assimilava-se, em quase tudo, a um Kimbo, só que maior, mais populoso e claro, mais importante. Ficava situado no bocado de terreno que compunha o interior do cotovelo formado por uma curva apertada do Rio Cuando, lugar aprazível que propiciava, entre outras coisas, o ensejo de se poder tomar banho no rio, coisa não propriamente despicienda numa região onde não existiam duches e as temperaturas podiam subir aos 45º durante a maior parte do ano. Quanto ao mais, dir-se-ia que o Rivungo, comparativamente, nos parecia estar no limiar da civilização.
A maior dimensão do Chipundo e porque não, importância, face aos restantes Kimbos, determinava maior efectivo policial, ali composto por três ou quatro polícias e outros tantos ajudantes. Para os comandar fora nomeado um Sub-Chefe que chegara de Serpa Pinto, passando pelo Rivungo e transferindo-se para o Chipundo no velho Land Rover do posto, conduzido pelo experiente motorista, conhecedor da viatura, do trajecto e correspondentes redondezas.
Era um homem jovial, alegre, de riso fácil e vivacidade contagiante, estabelecendo de imediato uma empatia com toda a gente. O seu estilo desinibido permitiu-lhe ganhar amigos rapidamente, tornando-se popular e conhecido
Aprendemos a conhecê-lo. Aparecia de quando em vez no Rivungo, quando ali se deslocava para tratar dos assuntos a que a função obrigava ou, quando em missão para aqueles lados, parávamos pelo Chipundo.
Uma vez chegado ao seu novo posto de comando, tratou de reconhecer a zona. A sua missão de proteger as populações obrigava a que conhecesse bem o terreno circundante. Num local onde a mata começa a escassos metros do limite da aldeia e nada existe a separar, é muito difícil ficar-se confinado ao perímetro das cubatas, especialmente para um homem com as características do Sub-Chefe, que tirava o máximo proveito do que a natureza tinha para oferecer.
Tratava-se de uma região imensa, absolutamente plana e muito pouco povoada, já que a guerra empurrara para pequenos aglomerados uma população essencialmente nómada. A natureza propiciava uma certa abundância natural em frutos selvagens, algumas raízes e fundamentalmente em caça. Num local tão distante, onde não havia supermercados e os géneros chegavam a conta gotas trazidos pela tropa em reabastecimentos conduzidos por uma logística de guerra, a caça, abundante e variada, era sem dúvida um recurso não negligenciável e a juventude e voluntarismo do Sub-chefe, levava-o a aventurar-se em incursões pela mata, com o objectivo de arranjar algo de fresco para o jantar e, muitas vezes, para alimentar as populações.
Numa destas incursões, por excesso de confiança à mistura com outro tanto de incúria e desrespeito pelas mais elementares regras de segurança, o sub-chefe, sabe-se lá porquê ou para quê, colocou no porta-luvas do Land-Rover uma granada.
Não é difícil imaginar o que acontece a uma viatura destas, ao percorrer aqueles itinerários acidentados, numa altura em que a tecnologia de conforto na construção automóvel ainda não atingira o grau de sofisticação actual, especialmente quando se fala de um veículo já com seis dígitos no conta-quilómetros. Tudo o que se encontra dentro no habitáculo salta num frenesim constante e violento.
A granada, solta dentro do porta-luvas, saltava perigosamente com os constantes solavancos. O bater continuado nas paredes do minúsculo espaço a que fora confinada, fez com que a cavilha de segurança se fosse soltando lentamente. Para ajudar, o compartimento não tinha porta. Esta, há muito desaparecera com os anos de uso da viatura. Na verdade creio que nunca existiu.
A granada acabou por saltar do minúsculo porta-luvas, caindo aos pés do sub-chefe. A cavilha de segurança, já praticamente fora do orifício, acabou por se soltar totalmente ao embater no fundo da viatura, libertando a alavanca e espoletando o mecanismo que acciona a explosão.
Não se sabe se o malogrado polícia chegou a aperceber-se da queda da granada. Decorridos quatro segundos, tempo que leva a consumir o pequeno rastilho que liga a espoleta ao detonador, a explosão, violenta e assassina, projectou um sopro de morte, carregado de estilhaços, que retalhou o corpo do sub-chefe, roubando-lhe a vida e abrindo um rombo no tejadilho metálico da viatura.
No dia seguinte, o corpo foi transportado para o Rivungo, aguardando, numa das casas vazias, os necessários preparos para a trasladação. Tive a infeliz oportunidade de ver o efeito devastador que aquele engenho de morte provoca num corpo humano. É que, fui destacado para ajudar o técnico que, vindo de Serpa Pinto, procedeu à selagem da urna de chumbo já que, o estado lastimoso em que se encontrava o corpo impedia que um homem só desse conta do recado. Ainda hoje, por vezes, associo a mortos o cheiro de chumbo derretido.
Por ironia do destino e passado algum tempo sobre o acontecido, também me coube a tarefa de recolher a viatura acidentada. O Land Rover viajava agora sobre a Berliet, balançando ao ritmo bamboleante da picada, como se de um corpo morto se tratasse.
Saí da letargia em que a recordação me mergulhara. O silêncio era apenas violentado pelo motor da berliet que, indiferente a tudo, vencia o resto do troço que levava ao Rivungo.
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