Não fui um militar convicto. As fardas, a obediência cega, mesmo a ordens sem sentido, nunca foram coisas que casassem com a minha maneira de ser. Cumpria as regras. Afinal, estava ali de passagem e criar problemas não me parecia uma atitude inteligente. Particularmente detestável foi o tempo de instrução, não obstante considerar que era sempre útil aprender fosse o que fosse. Dizia o meu pai, copiando um dito popular, que o saber não ocupa lugar. Assim, captava os ensinamentos que outros transmitiam, dando especial atenção a tudo o que considerava poder vir a ser-me útil.
Respeito todos aqueles que, com honestidade, competência e alguma humildade, procuraram desempenhar o papel em que tinham sido investidos, mas irritava-me particularmente o ar autoritário e a atitude de alguns instrutores que, lá do alto do seu efémero pedestal, ensaiando uma pose bacoca de lentes que não eram, soltavam balelas e trivialidades com ares de bazófia, arrogando-se em mestres de técnicas e estratégias de uma guerra onde nunca tinham estado.
Aprendemos assim as teorias do preparar e reagir a uma emboscada, dos truques da queda na máscara e outras manobras de defesa e ataque, passando-se depois à sua aplicação prática. Os ensaios decorriam no terreno mais à mão, escolhendo-se o cenário mais adequado para repetir vezes sem conta as cambalhotas e as quedas na máscara, caindo de joelhos, ao mesmo tempo que se deixava tombar o corpo, de forma a ficar exactamente por detrás da moita (a máscara). Frequentemente acertava-se com um joelho numa pedra, a coronha da G3 partia-se, caía-se em cima da máscara ou ficávamos perigosamente afastados da dita. Se a queda corria bem, vinha a seguir a atrapalhação com a arma. Não se encontrava posição, a mira ficava fora da vista, não se sabia para onde apontar e normalmente não se conseguia descortinar o inimigo.
- Seus lerdos
Berrava o instrutor.
- Se fosse a sério, com essa lentidão, já estavam todos mortos.
Sentenciava.
Felizmente, nesta guerra de brincar, não era preciso disparar, pelo menos com bala real. Lembro-me que, certa vez, um alferes, pequenino, com ares de atleta e postura de guerreiro, quis fazer uma demonstração. Carregou a G3 com munições de salva, tomou pose de ataque, atirou-se para o chão via cambalhota em frente seguida de uma meia queda na máscara e começou a rebolar para um lado e para o outro, como se evitasse ser atingido pelas balas do inimigo imaginário, ao mesmo tempo que disparava sempre que entendia tê-lo na mira.
Assisti boquiaberto àquela cena. Tenho a certeza que em momento algum, o destemido militar sabia para onde estava a disparar. Se a arma estivesse carregada com bala real, tinha acertado em si mesmo umas duas ou três vezes e nenhuma, no que quer que pudesse ser considerado inimigo.
- Filmes a mais! Pensei.
Mas muita coisa valeu a pena, especialmente se tivermos em atenção que, quer quiséssemos quer não, estávamos a ser treinados para a guerra. A preparação física era uma delas, o manuseio das armas era outra, complementada com o conhecimento específico das suas manias e truques.
Detestava particularmente o salto do Unimog em andamento. Tinha que ser feito segurando a arma com as duas mãos. Ao atingir o solo, era projectado e nunca conseguia controlar a queda. Magoava-me quase sempre.
A verdade é que, durante os 26 meses que andei por terras africanas, nunca tive necessidade de fazer a queda na máscara, de dar uma cambalhota, rastejar ou outra qualquer das habilidades que pratiquei com tanto denodo. Excepção para o salto da viatura. Executei-o uma única vez. Uma excepção.
Assim, de entre as estratégias definidas para a missão da companhia, contava-se a importância em manter uma presença em toda a área. Tínhamos de nos tornar visíveis. Mostrar que não nos quedávamos pelo conforto do aquartelamento. Para além do mais, era importante manter as picadas abertas, reabrir as que as chuvas faziam desaparecer, abrir outras e mostrar à população a nossa presença.
Numa dessas missões, fui incumbido de percorrer um determinado itinerário. Comandaria um grupo de dez homens (dois condutores incluídos) montado em dois pequenos Unimogs 411. Importava principalmente cobrir a zona de picada que ligava o Demba ao Caxoxo. Havia-nos sido dito que a companhia anterior nunca por ali passara e era necessário verificar o estado da picada. Reavivá-la, se fosse caso disso.
O Demba era o último dos Kimbos no trajecto que vinha da Neriquinha e por isso, visitado amiúde pelas colunas de reabastecimento. O Caxoxo ficava no términus da picada que daqui seguia para o interior e só era visitado em missão de patrulhamento ou de passagem para as zonas de caça, mas normalmente seguindo a picada que o ligava directamente ao Rivungo, nunca por ali.
Os dois Unimogs, apelidados carinhosamente de “burros do mato”, venceram penosamente o percurso até ao Demba, numa marcha saltitante e desconfortável, com paragens frequentes para abastecer os radiadores, única forma de compensar o aquecimento excessivo dos motores.
O percurso até ao Caxoxo foi mais fácil. Com efeito, em alguns sítios a picada quase desaparecera. A areia reocupara os sulcos que a definiam, implicando um menor esforço das viaturas. Foi possível rodar em 2ª e em alguns troços conseguiu-se engrenar a terceira velocidade. A picada ia assim ficando para trás, como que reavivada. Contudo, seria preciso passar por ali mais vezes. O peso dos Unimogs não era suficiente para definir um sulco que não desaparecesse com a próxima chuvada.
A noite já se anunciava quando nos despedimos dos PSP’s do Caxoxo e iniciámos a última etapa, agora já de regresso a casa. Era uma picada que já conhecíamos, sinuosa, percorrendo uma área arborizada de terreno arenoso, bem visível na profundidade do sulco marcado pelos rodados das viaturas, impondo um andamento lento, por entre a densa noite sem luar que cobria totalmente a mata circundante.
As viaturas seguiam, uma atrás da outra com um razoável intervalo de segurança. Eu seguia na da frente, na que era conduzida pelo Comandos. Magro, mas de porte atlético, o Figueiredo ganhara a alcunha de o Comandos pelo facto de, na instrução, ter andado por Lamego, em cujo quartel se formavam as tropas especiais. Era um militar muito activo e sempre disponível para uma missão, especialmente se se tratasse de uma incursão de caça. Conduzia com mestria quer a corta mato quer pelas difíceis picadas de areia, conseguindo obter maior rendimento dos pequenos Unimogs, minimizando com oportunos aconchegos de travão, o desconforto dos contínuos saltos que a precária suspensão da viatura agravava.
Do segundo Unimog, apenas se divisava, lá mais atrás, a luz saltitante dos faróis, ora mais intensa ora desaparecendo ao sabor dos meandros caprichosos da picada.
Seguíamos assim descontraídos, embora, por hábito, as armas estivessem a postos, bem agarradas, com excepção da do condutor. A arma do Comandos seguia presa a um dispositivo para o efeito montado na frente, no local onde normalmente estaria o pára-brisas, que ali não se usava. Era um dispositivo engenhoso e ao alcance do condutor. Prendia a G3 sob pressão, bastando puxá-la com força para se soltar.
De repente, no meio da noite, inesperadamente, soou um tiro. Isolado, seco, perturbador. No segundo seguinte, ainda o som do disparo ecoava nos meus ouvidos, dei por mim deitado no chão, arma aperrada, apontando o negrume da noite. Olhei à volta. Todos estavam igualmente deitados no chão, em pose defensiva.
O Comandos também. De uma forma que nem o próprio conseguiu explicar depois, quase foi mais rápido que eu. Num ápice, apagou os faróis, desligou o motor, sacou a arma da geringonça e atirou-se para o chão. Tenho a certeza que se se tivesse tratado de um exercício, não teria sido tão rápido. Efectivamente, o instinto de preservação leva-nos a fazer coisas de que nunca pensaríamos ser capazes. Pelo menos nunca ensaiáramos nada parecido.
Perscrutámos em redor trespassando com o olhar a parede negra da noite à procura de qualquer movimento, sondando o silêncio à caça de um restolhar. Nada aconteceu. Nem um som ou movimento. Nada, ninguém. Decididamente não se tratava de uma emboscada.
- Será que atacaram a outra viatura? Pensei.
Procurámos na escuridão, projectando a vista através da espessa noite. Ao longe, o som familiar do motor do Unimog em esforço, acompanhava o risco de luz dos faróis dançando por entre as sombras do arvoredo. Aproximaram-se.
- A viatura foi abaixo?
Atreveu-se a perguntar um dos soldados.
- Não, ouvimos um tiro e desliguei o motor.
Respondeu o Comandos com simplicidade.
- Foram vocês que dispararam? Perguntei.
- Sim, vimos uma cabra do mato, mas não lhe acertámos.
Respondeu um deles.
Não me deu para ralhar. Afinal, era hábito atirar-se à caça. Na noite, os seus olhos pareciam pequenas luzinhas e se tivessem acertado, teríamos mais um petisco do Máquina em perspectiva - cabra do mato no forno.
Afinal, não fora uma emboscada, nenhum ataque ou acção de um qualquer sniper. Apenas um susto. Creio no entanto que a solitária cabrinha do mato terá apanhado um susto maior.
Enquanto se vencia a escassa meia hora de caminho que faltava até ao Rivungo, matutava sobre a nossa reacção. Uma tropa de elite não teria reagido melhor. Tanto joelho esfolado na instrução e afinal nada do que nos ensinaram foi ali aplicado. Lembro-me bem. Os Unimogs usados na instrução não possuíam aquele dispositivo para segurar a arma do condutor e nunca ninguém me disse que o motor deveria estar em silêncio. Creio que também nunca alguém se lembrou da conveniência em desligar faróis. É que, todos os exercícios haviam sido executados em plena luz do dia e o condutor não fazia parte deles.
Ainda assim, não posso censurar os autores dos manuais. Não me parece que os mesmos pudessem prever que uma cabra do mato seria capaz de pôr à prova o instinto de sobrevivência de um ser humano.
5 comentários:
Já nasci depois da guerra do Ultramar ter terminado, mas muitas histórias ouvi e li para poder formar a minha opinião acerca do que se passou, do que provocou e das marcas que deixou.
Este episódio é mais um. Revela-me que a famosa capacidade de improviso do soldado português o deixava bem preparado para quase tudo o que lhe aparecesse pela frente.
É verdade. Confirmei isso inúmeras vezes. Na altura, a insciência da juventude leváva-nos, por vezes, a entender que até a instrução era desnecessária.
Creio que é uma característica do ser humano em geral, mas aceito que o típico desenrascanço do português, supera o de qualquer outro.
É pena,só agora ter encontrado este
bem construido e muito elucidativo
Blogue acerca do que foi a nossa
vida militar(Contingente Geral e
Melicianos).Passado um ano desta
publicação,nem provàvelmente o sr.
Egidio Cardoso,lerá o meu comentá_
rio.Estou de acordo(por experiência
própria).Como neto;filho e não só,
de elementos de Forças Paramilita_
res,eu não fui dos que foi para a
tropa de olhos completamente fecha_
dos,nem armado em esperto.Ía embui_
do do espírito de disciplina e com_
petência,livros lidos sobre a Indo_
china;Argélia,etc.Mesmo assim enga_
nei-me,competência não confundo com
militarismo;achincalhamento e cas_
tração psicologia,para me embrute_
cer e fazer de mim um "matador"sem
pensar.O SER Humano tem instintos
de Auto-Defesa,para quando sentir
as calças apertadas se defender,só
há que canalisar esses instintos e
orientá-los e não despersonalizan_
do.Comigo não resultou.Levei uma
"Porrada"fui parar ao Contingente
Geral,depois de ter passado pelo
CSM,pregaram-me com umas Dívisas de
Cabo(Palhaço)e fui parar em Moçam_
bique.Lá não andei a brincar,coman_
dei: patrulhas;escoltas;emboscadas;
picagens,etc.(competências de sor_
ja).Nem os praças como eu,os trata_
va por "tu".Depois no fim da Comis_
são, fui agraciado,sem ter perdido
a minha maneira de ser gente.Apesar
de ter sido meu comandante de Com_
panhia,já no fim da Comissão, penso
que seja vosso conhecido o sr.Coro_
nel,João Sena.
Este antigo combatente e vosso mo_
desto leitor.C.N.
esc
Caro C.N.
Como vê, os comentáriso são sempre lidos, não importa há quanto tempo o post foi escrito.
Continue a ler-nos.
Vá a "http://angola3441.blogspot.com" e siga o índice.
E.C.
Sr.Egidio Cardoso.Grato pelo aco_
lhimento e pelo convite,terei muito
gosto,sinto-me honrado.
Carlos Nabeiro.
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