Memórias das aventuras e desventuras de 140 militares que, em Novembro de 1971, armados de G3, foram largados num ermo algures no meio das remotas savanas das terras-do-fim-do-mundo nos confins de Angola
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016
O "levantamento de rancho" que não foi
Lembro-me bem; durante o tempo em que o Morais, o nosso
furriel vagomestre, esteve ausente, gozando no puto umas merecidas férias,
longe daquela terra de ninguém, fui incumbido de o substituir na arte de
alimentar o pessoal sem ultrapassar a verba diária de vinte e dois escudos e
meio por cabeça. A tarefa não era fácil e a experiência nenhuma, mas lá me
desenrasquei o melhor que pude, procurando compor, com os parcos víveres
existentes, qualquer coisa que se pudesse comer. A chatice é que, dia após dia
e sem que disso me desse conta, fui ultrapassando a fasquia do orçamento.
Não me recordo das chatices que o Morais teve de enfrentar
para voltar a meter as coisas sobre carris. É provável que a ameaça de
levantamento de rancho, a propósito de uma das ementas mais detestadas
(dobradinha com feijão) tenha sido um acontecimento que se se terá desenrolado
quando fui mandado para uma segunda comissão no destacamento do Rivungo.
Sorte a minha, que só soube dos pormenores muito tempo depois
de tudo ter acontecido.
O texto que se segue é da autoria do Morais, o nosso vagomestre de então.
.... O texto que se segue é da autoria do Morais, o nosso vagomestre de então.
Enquanto
decorreram os dezoito meses de destacamento na N’riquinha, consegui gozar dois
períodos de férias, de trinta e cinco dias, no “Puto”. Com as deslocações, via
Luso (Luena), Nova Lisboa (Huambo) e Luanda, as ausências atingiam cerca de
cinquenta dias, períodos que fui substituído, como responsável pelo serviço de
alimentação, pelo Egídio Cardoso.
A
contabilidade do serviço exigia um inventário ao armazém cada final de mês, com
o qual verificávamos se o consumo de géneros alimentares estava dentro do
orçamento de receita para o mês em causa.
Os
primeiros meses de estada na N’riquinha, embora coincidissem com a estação das
chuvas, foram relativamente generosos em caça e, por via disso, além de nos
alimentarmos melhor, pudemos gastar menos em alimentação. O serviço foi passado
ao “vaguinho” Cardoso, com um excedente de tesouraria correspondente a cerca de
dez dias de alimentação.
Quando cheguei
do primeiro período de férias, aguardámos a chegada do fim do mês para a
passagem do testemunho. O “vaguinho” em exercício tinha desenvolvido um
trabalho notável no serviço, e era alvo de grandes elogios, pelo empenhamento e
grande imaginação posta na elaboração das ementas, ao ponto de alguém, bem situado
junto do comando, ter pressionado, sem sucesso (o primeiro sargento Pinto foi
contra), a sua passagem a efectivo. Feito o inventário e uma estimativa à gestão
cessante, constatou-se que havia um défice no serviço de cerca de vinte dias de
alimentação. Ou seja, durante três meses viveu-se acima das possibilidades.
Posto o problema ao conselho administrativo (comandante da companhia e primeiro
sargento), e porque o défice teria que ser compensado no futuro, sob pena de
responsabilização e pagamento dos montantes em falta, foi decidido “apertar o
cinto”.
A
situação chegou rapidamente ao conhecimento de toda a companhia, e comecei a
ouvir ameaças veladas de que, se tal acontecesse, ia haver “levantamento de
rancho”. O contingente lisboeta liderava a “revolta”.
Por
todas as razões e também por solidariedade com o “vaguinho” Cardoso, houve que
prosseguir no caminho traçado, evitando as ementas que fossem mais
dispendiosas, até porque o entusiasmo pela caça tinha esfriado. De facto, os
habituais voluntários não estavam tão disponíveis para continuar, e a época das
queimadas ainda não se iniciara. A primeira caçada que liderei, neste período,
teve como resultado uma cabra do mato (bambi) e um nunce, insuficientes para
dar uma refeição a toda a companhia.
O pretexto
para um incidente apareceu quando se serviu, ao almoço, uma dobradinha com
feijão. Como era norma, a comida era igual para todos, oficiais, sargentos e
praças, e confeccionada nas mesmas panelas. Servidas as terrinas para os
doentes na enfermaria e para as messes, passava-se a atender os praças. Quando
estava a terminar a minha refeição fui chamado ao refeitório para ouvir a
reclamação de que a comida estava imprópria para consumo porque o feijão tinha
bicho, e mostraram pratos onde se viam dois ou três feijões com um ponto negro.
Entretanto chegou o comandante da companhia que mandou formar na parada e
tentou convencer o pessoal a retomar a refeição, porque todos os oficiais e
sargentos tinham consumido a mesma feijoada, sem notarem nada de anómalo: Não
havia levantamento de rancho!! E avisou que a cantina estaria encerrada e só
abriria depois do jantar. O pessoal persistiu na decisão.
O comandante
da companhia, para evitar que o incidente se repetisse mandou que o saco de sessenta
quilos de feijão, recentemente encetado fosse servido aos hóspedes da pocilga,
situada nas traseiras do aquartelamento. Posso garantir que desobedeci a tal
ordem, e o feijão, tão proteicamente enriquecido, foi por nós consumido nas
sopas, depois de processado no “passe-vite”… a vingança foi servida quente.
“vaguinho
“ Morais
sexta-feira, 1 de janeiro de 2016
A Prisão
O rigoroso RDM, kafkiano regulamento da disciplina militar de que se
dizia ser incumprível, alimentava boa parte do anedotário de caserna dos tempos
idos da tropa. Estava capaz de apostar que se contariam pelos dedos de uma mão
– vá lá, de duas mãos – aqueles que, naquele tempo, se deram ao trabalho de ler
tão exigente normativo, o que, entenda-se, seria de todo desnecessário e isso
porque, para não cair nas suas malhas, bastaria atender a duas regras
principais: “cuidado com o que dizes”
e “vê lá o que fazes”, o que
significa que, até a dormir, era razoável a probabilidade de se infringir um
qualquer dos seus inúmeros artigos, ainda que inconscientemente e sem se saber
como, espécie de círculo vicioso da justiça militar que tanto poderia
considerar alguém culpado por ter cão, como por o não ter. A crítica ao seu
excesso de rigor era, naquele tempo, expressivamente ilustrada com a afirmação
galhofeira de que, o seu autor, uma vez completado o seu trabalho de
legislador, se suicidara ao dar-se conta de que não seria capaz de cumprir os
ditames plasmados em tão intransigente e espartano diploma.
A aplicação do direito sancionatório correspondente competia aos
comandantes das unidades que não tinham dificuldade em enquadrar cada infracção
no respectivo articulado. As penas menos severas transferiam o recruta para o
serviço de faxina às cozinhas, seguindo-se, por ordem de gravidade, a limpeza
dos sanitários, a proibição de sair do aquartelamento até ao recolher, a perda
de direito a gozar o fim-de-semana e por aí adiante até às penas de prisão. É
verdade, as infracções mais graves, ainda que não constituíssem crime, eram
cumpridas na prisão.
Mas vamos ao que interessa. Na Neriquinha, não havia cadeia. E não
havia, porque não era preciso. A singela e frágil cerca de arame farpado, que
delimitava aquele quadrado de pó areento perdido no meio da savana, já era o
bastante para que nos sentíssemos enclausurados, não obstante a ausência de
muros permitir acesso livre e directo à vastidão do espaço envolvente. E nunca se
pensara nisso, até porque, pelos vistos, nenhuma das unidades que ali nos
antecederam teve necessidade de tal coisa.
Mas, a companhia de caçadores 3441 pertencia a um batalhão – o 3857 – cujo
comandante, a que todos deviam vassalagem, não entendia assim e, por isso, a
ordem expressa, vinda directamente do seu gabinete, lá no Cuito Cuanavale, determinou:
– construa-se uma cadeia.
A ordem, exigente e imperativa, não admitia desculpas e qualquer desobediência
seria insensatez; na tropa era assim e com aquele comandante, mais ainda. E,
assim sendo, não havia sequer que discutir: –
pois construa-se o tal de cárcere, determinou o capitão.
Passado todo este tempo, não tenho memória do aspecto físico de tais
instalações, mas alvitra-se a hipótese de o local escolhido ter sido, logo ali,
paredes meias com a oficina auto, confinando com as traseiras da enfermaria e
não longe do refeitório, junto ao gerador pequeno, espécie de reserva
energética que permitia a existência de luz pelo tempo que levava a resolver os
amuos do gerador principal. O facto é que, e isso é uma certeza, se deitou mãos
à obra, desencantaram-se os materiais necessários e, em pouco tempo, lá nasceu,
isso sim, um casinhoto precário, sem condições e de pequenas dimensões; enfim,
um cubículo. Talvez porque se entendia que nunca teria serventia, não se lhe
meteram grades e creio que a porta, se é que alguém disso se lembrou, nem
fechava. Pelo menos não tinha chave. E para quê, se ali não havia para onde
fugir.
Contrariamente ao que seria de esperar, o presídio foi estreado, e coube
ao Pinheiro o privilégio da inauguração, sem pompa nem discursos mas, ainda
assim, um acontecimento inaugural. O Pinheiro era um chato, um refilão
preguiçoso que, com alguma frequência, esticava por demais a corda. Até que um
dia, exagerou, ultrapassou o desculpável e foi além da capacidade de tolerância
do capitão. A pena aplicada, ainda que com algumas atenuantes, ficou-se pelos
cinco dias de prisão.
Tanto quanto julgo saber, não os cumpriu todos. Provavelmente houve a
percepção de que, para o preguiçoso do Pinheiro, estar detido, para mais
naquela estranha cadeia, produzia efeito contrário ao que é suposto ser um
castigo. É que, o estar preso, implicou não ser escalado para os sempre
detestados quartos de sentinela e outros serviços do dia-a-dia. E o pior é que
passava pouco tempo enclausurado, não fazia nada, comia no refeitório como
todos os outros, passava o dia chateando o pessoal da ferrugem e, de caminho,
infernizava a vida dos cozinheiros e exigia atenção especial aos enfermeiros.
Para completar o quadro, transferia-se, à noite, para a sua cama na caserna e
ainda gozava com o pessoal que com ele se cruzava, não perdendo a oportunidade
de, disfarçadamente, provocar o segundo-sargento que, achando tudo aquilo um
abuso, resmoneava visivelmente agastado, um “num tá bem!” reprovador. Tirando
isso, dormia o resto do tempo e preguiçava nos intervalos de cada soneca, feliz
da vida e apostado em cumprir, com zelo sacana, o castigo que lhe foi imposto, comportando-se
de forma a convencer disso o capitão, até porque, o segundo-sargento nunca se
atreveu a denunciar uma situação que, no seu entender, “num tava bem”.

Creio que o cárcere apenas teve mais um inquilino ainda que apenas por
umas horas. E como não podia deixar de ser, coube ao Candeeiro esse privilégio.
O soldado Raimundo, por todos conhecido como Candeeiro, pescador algarvio vindo
dos lados de Vila Real de Santo António, era um homem quezilento, especialmente
quando estava com umas cervejas a mais, situação algo frequente. Nessas
alturas, tinha por hábito desatar num berreiro, ameaçando todos aqueles de quem
não gostava, elegendo sempre o alferes Torres como primeiro alvo a abater.
Felizmente, levado a bem, era fácil apaziguar-lhe as fúrias, mesmo quando bem
bebido. O problema era que, como se sabe, o excesso de bebida tolda o
raciocínio e o bom senso a certas pessoas e, no caso do Candeeiro, nunca se
sabia se as fúrias eram apenas desabafos alcoólicos ou algo mais. E, assim
sendo, mais valia prevenir, obviando a que, de um momento para o outro, fizesse
um qualquer disparate.
Certo dia, excedeu-se mais do que costumava e, antes que os desacatos
descambassem em grossa asneira, foi encarcerado. O berreiro ainda continuou por
algum tempo, mas acabou por calar-se. Talvez vencido pelo cansaço e totalmente
dominado pela bebedeira, adormeceu e, rangendo os dentes, por ali ficou o tempo
necessário para cozer e processar o álcool ingerido, saindo em liberdade
quando, já esquecido da guerra que apregoara, acordou.
É caso para se dizer que a cadeia, ali, não fazia falta. Mas, uma vez construída, teve uso, ainda que apenas por duas vezes: uma para estreia e outra para curar uma bebedeira.
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