Na savana imensa que caracteriza as terras-do-fim-do mundo,
uma chana é a designação que aquele povo dá a qualquer espaço plano, silente e sem
árvores ou arbustos que o sombreiem. Descampado será porventura o termo que por
cá se usa para designar algo semelhante mas, desiluda-se quem pense que é a
mesma coisa. Chana só existe naquelas paragens e não me parece que possa ser
comparada com o que quer que se lhe assemelhe. Planície não é certamente.
Uma chana, normalmente abraça qualquer curso de água e essas
fazem lembrar pântanos, mas sem areias movediças, que é coisa que nunca ouvi
dizer que existisse por ali. Mas também as há onde não corre água; estendem-se
em zonas mais baixas para onde, na diluviana época das chuvas, a água escorre pelo
terreno arenoso e se aquieta submissa até que o sol as leve. São as chanas
secas, como era a da Neriquinha. Por ser seca e nunca ali ter medrado uma
árvore, acabou por se transformar naturalmente na pista poeirenta onde, duas
vezes por semana, aterrava o pequeno Cessna do Barros que nos trazia o tão
desejado correio. Aliás, uma chana era sempre um recurso para qualquer piloto
que cruzasse aqueles céus: mais aquém ou mais além havia sempre uma aberta onde
era possível aterrar um pequeno avião sem dificuldades de maior, como daquela
vez em que faltou o combustível a uma pequena avioneta. O mais difícil foi
chegar lá com um jerrican de gasolina mas, depois de abastecido, levantou voo
com facilidade e rumou ao seu destino.
Tinham ainda outra vantagem. No tempo do cacimbo, quando,
com a ausência de chuva, tudo secava, mesmo as que não tinham um curso de água
por perto, retinham normalmente humidade que garantia a verdura perene das
ervas e, em casos de necessidade, era sempre um local onde se poderia encontrar
água para matar a sede. Bastava escavar um pequeno buraco com um palmo de
profundidade e esperar que a água nascesse. Os bichos sabiam disso, nós
sabíamos disso e até as hienas estavam informadas. Por tudo o que ficou dito, era
o sítio mais óbvio para se encontrar caça.

Vistas do céu, o seu aspecto era diferente. A mim, nas vezes
em que andei lá por cima, sempre me pareceram como peladas no meio daquela
imensidão de verde, numa sucessão caótica de espaços que apenas insinuavam
cursos de água escondidos pela vegetação, hesitantes, sem direcção definida e
descobrindo-se onde menos se esperava em fartas lagoas que reflectiam
resplendorosas o azul intenso do céu.
Para o Barros, piloto da empresa de táxis aéreos do sul de
Angola (TASA) que voava diariamente por sobre aquela imensa savana, todo aquele
intrincado de chanas e linhas de água era como se fosse um mapa desenhado pela
natureza. Conhecia cada palmo da savana e dizia-se que nunca usava as cartas e
instrumentos de navegação para se orientar. Normalmente o percurso que fazia
era sempre o mesmo: nuns dias descia ao longo do rio Cuito, noutras, quando nos
trazia o correio, seguia, a partir de Serpa Pinto em direcção ao Cuito
Cuanavale, tomava a direcção do Rio Lomba até ao Dima, seguia por Mavinga e
enfiava direito à Neriquinha onde, ansiosos, o esperávamos duas vezes por
semana. Depois, sobrevoava as chanas que se estendiam a oeste do Rio Cuando em
direcção ao Rivungo. O percurso seguinte, de regresso a Serpa Pinto, já não nos
interessava. Assim, se alguma vez o soube, o tempo lá se encarregou de o
arrumar nos escaninhos mais profundos da memória, lugar de onde nunca mais
saiu.
Mas isso era o Barros, qualquer outro piloto que por ali se
aventurasse não podia dispensar a ajuda das cartas e do mais que, para o
efeito, equipa os aviões. Certa vez, um piloto, novato e desconhecedor daquelas
paragens, incumbido de levar até Serpa Pinto um engenheiro agrónomo que para
ali se deslocara para tratar de assuntos da sua especialidade, levantou da
pista do Rivungo com pouco combustível planeando reabastecer na Neriquinha, orientando
o voo pela carta que reproduzia fielmente os rios, afluentes e riachos que se
avistavam de lá de cima.
Havia, contudo, um problema; todas as cartas da região
assinalavam aquela nossa precária e provisória residência como estando
localizada nas margens do Rio Cuando, aí uns vinte quilómetros para leste,
local então designado por Neriquinha-Velha onde apenas havia umas lavras,
alguma população dispersa e quatro paredes quase desfeitas, verdadeiro esqueleto
de uma casa que por ali existira. Ou seja, as cartas não conheciam a localização
da nossa Neriquinha e, pelos vistos, aquele piloto também não.
Como é bom de ver, dirigira o avião para um local onde não poderia
aterrar e, ao aperceber-se disso, terá pensado que se desviou do rumo. Deu uma
volta, e mais outra sem nunca divisar a tão famigerada pista e na ânsia de a encontrar,
desorientou-se e foi-se desviando cada vez mais do seu objectivo até não
conseguir mais encaixar no mapa os recortes do terreno lá em baixo. Desatinou e
deambulou pelos céus da savana até que se lhe esgotou o combustível sem que
tivesse divisado o seu objectivo.
Nem discernimento teve para procurar uma chana seca. Acabou
por amarar no meio do capim alagado, ali logo ao lado de um acampamento inimigo
que tínhamos destruído um par de meses antes, muito longe do seu destino
inicial.
Tirando umas escoriações, todos saíram ilesos da queda, mas
deambularam por aquelas matas durante três dias antes que fossem encontrados
por um PV2 da força aérea quando, depois de ter passado a pente fino toda a
região estava prestes a desistir. É caso para dizer que não morreram da queda
mas iam morrendo de fome.
A carcaça do avião, essa, foi recuperada, mais tarde, numa espantosa aventura chefiada pelo furriel Leitão. Mas isso já eu contei aqui.
A carcaça do avião, essa, foi recuperada, mais tarde, numa espantosa aventura chefiada pelo furriel Leitão. Mas isso já eu contei aqui.