Muito lentamente, é verdade, mas de forma inexorável o tempo ia passando. Cada dia se sucedia ao anterior numa repetição monocórdica que ia deixando aquela sensação de contínuo voltar ao ponto de partida, embora os ponteiros do relógio seguissem paulatinamente o seu ritmo. Assim, como quem não quer a coisa, já levávamos um ano de Neriquinha.
Para nós, a savana já não tinha segredos. Conhecíamos as armadilhas da chana, sabíamos dos melhores lugares para caçar, identificávamos ao longe qualquer animal da rica e variada fauna, desde a gigantesca gunga à pequenina cabra do mato, tratavam-se os mosquitos por tu e percebemos finalmente que a única forma de correr com os percevejos da cama era regá-la com gasolina e deitar-lhe fogo.
Entretanto, já todos os grupos de combate tinham passado pelo destacamento do Rivungo. Com excepção do primeiro, mas como este não entrava na rotação, a volta estava completa e chegava de novo a nossa vez. Mais uma missão comandada pelo alferes Fausto Oliveira, secundado por três furriéis: eu, o Silva e o Ramires que, já lá estando, continuaria a comissão em substituição do Palúdico que fora evacuado para o Cuito Cuanavale. A fraca resistência do Duarte ao paludismo teria determinado da sua colocação na sede do batalhão, se bem que eu nunca tivesse conseguido ver qual a diferença entre a Neriquinha e o Cuito no que toca à maior ou menor exposição às picadas das fêmeas dos mosquitos transmissores da doença.
É verdade, apenas as fêmeas do Anopheles eram portadoras da doença e como nunca fui infectado, só posso concluir que não queriam nada comigo. Razão tinha eu para as detestar; fêmeas promíscuas, infectadas e ainda por cima não gostavam de mim. Ou seria ao contrário?
Mas, adiante. Embora todos concordassem que estar no Rivungo era sempre mais agradável que na Neriquinha, lembro-me de não fazer muita questão. Para mim era indiferente. Já criara a rotina e conformei os meus hábitos com a monotonia diária, quebrada de quando em vez por este ou aquele episódio que nos desviava a atenção da paisagem circundante. Sempre a mesma, embora mudasse para um verde luxuriante com a chegada das chuvas e voltasse ao amarelo ocre e poeirento com o avanço do cacimbo.
A verdade é que, não podendo sair dali, tanto se me dava um sítio como o outro se bem que o Rivungo, mais aprazível, acabasse por ganhar a preferência e vencer a minha frágil e aparente indiferença.
Empacotei as poucas tralhas, acomodei-me na berliet com o resto do pessoal e metemo-nos a caminho, seguindo o mesmo itinerário que fizera quando ali cheguei. Só que agora a picada era sobejamente conhecida, as chanas não tinham segredos e sabíamos mais ou menos o que vinha a seguir a cada curva. Aqui um buraco feito no último atascanço, ali um troço de picada a evitar, acolá onde se poderia apanhar alguma peça de caça, mas sempre sob o mesmo calor tórrido acompanhado dos irritantes insectos indiferentes ao pó que nos entrava pelas narinas e a que já não se dava importância. Aquele era agora o nosso mundo e a viagem era igual a tantas outras que já fizéramos. Na verdade, sentia-me perfeitamente adaptado, autêntico alter-ego nascido naquela terra de ninguém, indiferente à dureza dos elementos e capaz de aproveitar o que de melhor se pudesse tirar daquela natureza inóspita e agreste.
A viagem correu sem incidentes, pela picada sinuosa, passando pelas bem conhecidas pontes do Cúbia, seguindo-se a chana extensa que abraça o rio do mesmo nome e despontando umas horas depois na charca semi-pantanosa que antecedia o Liahona. Desta vez o Alexandre já não nos esperava de cerveja na mão e sorriso franco. O Liahana estava agora deserto, restando apenas cubatas envelhecidas, abandonadas pela população. As autoridades administrativas haviam decidido mudar a localização do kimbo para perto das margens do Rio Cuando. Aí foram construídas novas cubatas, fazendo nascer um kimbo novo em folha. Diziam que ficava mais perto das zonas agrícolas que a população utilizava.
Contudo, ficava fora do trajecto normal que ligava a Neriquinha e o Rivungo. Ir lá, implicava fazer um desvio ou deslocação propositada, coisa que não fizemos, nem daquela nem de outra vez. Preferimos o caminho do costume que seguia em frente passando pelo Mugamba e pelo Demba aproveitando-se para amenizar um pouco o isolamento monótono dos dois polícias ali destacados numa vida de miséria, no cumprimento de uma missão espinhosa: garantir algum apoio às populações já que, falar de segurança era exagero, dada a sua fraca capacidade de resistência a qualquer incursão que os turras pudessem fazer. A sorte é que, pelo menos enquanto por ali estivemos, apenas o Mugamba foi atacado uma vez e mesmo essa, só para chatear.
Chegámos ao Rivungo dentro do previsto, após sete horas de solavancos e sacudidelas pela picada caprichosa que mudava frequentemente de aspecto, consistência e traçado. Umas vezes sinuosa, outras correndo a direito, nuns sítios mergulhando em terrenos pantanosos, noutros plana e transitável para de seguida se transformar inopinadamente em regos arenosos onde as berliets se enterravam escoiceando para se livrarem da armadilha.
Confesso que na altura já considerava tudo isso, normal; o longo tempo do percurso, o desconforto da estrada, a paisagem variada, ora monótona ora extasiante, o silêncio circundante apenas perturbado pelo roncar dos motores, os animais que surgiam aqui e ali, ora mirando-nos indiferentes ora fugindo num galope desordenado, os bandos de rolas debandando por sobre as árvores, as infernais moscas minúsculas que não nos largavam e sempre aquele sol implacável, ferindo os olhos, queimando a pele e desidratando os corpos.
A chegada, após as costumeiras mais de sete horas de viagem, pareceu-me uma espécie de retorno a um local familiar. Tão diferente de quando ali aportei pela primeira vez. Nessa altura, o temor pelo desconhecido e a surpresa do inesperado deixaram um certo amargo de boca. Agora não. Conhecia as pessoas, os recantos, até alguns da população. O Administrador Litenda apareceu logo a dar-nos as boas vindas e com pressa de apresentar o seu substituto que a idade já ia avançada e a reforma estava à vista. O Chefe França da PSP continuava com o seu bom humor e o aspecto seráfico dos dois pides não se alterara; ainda assim continuavam simpáticos se assim se pode dizer. O Camassango já se tinha ido, com um fim de comissão atribulado. O pequeno avião que, numa boleia de ocasião, utilizou para deixar aquele local remoto onde tinha sido colocado, cairia algum tempo depois de levantar voo, num local qualquer perdido na savana. Decorreram 3 ou quatro dias antes que uma equipe de busca da Força Aérea os encontrasse, famintos e quase a soçobrar.
Lá estava o destacamento da Marinha, mas agora exibindo um posto de vigia, bem alto, construído com paus cortados na mata e encimado por um nicho coberto de capim. Era de facto um bom posto de sentinela e que propiciava uma vista privilegiada sobre as redondezas. A lancha, encostada e ainda incapacitada pelo ataque que sofrera, quedava-se imóvel no pequeno ancoradouro escavado na margem do rio, aguardando que de Luanda viessem as peças e os técnicos para a necessária reparação. Na verdade nunca mais a vi navegar. Sei apenas que foi reparada mais tarde quando já andávamos por outras paragens.
Muitos dos fuzileiros que conheci, nos meus primeiros três meses de Rivungo, já tinham dali saído uma vez acabada a comissão que lhes fora imposta. Mas ainda restavam alguns, entre eles, o Jorge, artilheiro da lancha.
As instalações da tropa, continuavam no mesmo local, debruçadas sobre o pequeno charco de água em tons de âmbar, com o mesmo aspecto de sempre, numa quietude serena, embora continuamente renovada pelo caudal do Rio Cuando correndo ali perto, sinuoso, tocando terra firme nos mesmos locais, para logo se afastar perdendo-se caprichoso no meio dos caniços da chana imensa como se fizesse questão de dar um salto ao outro lado da fronteira onde, difusa pela distância, a silhueta esbranquiçada das casas da vila zambiana de Shangombo, nos espiava de território inimigo.
Sentia-me bem. Era o retornar a um sítio já conhecido onde tinha passado momentos agradáveis. Larguei os meus haveres, assinei a papelada que me tornava desta vez responsável pelas coisas do depósito de géneros e da cozinha e fui mergulhar nas águas frescas do rio, dar umas braçadas e livrar-me do sarro da viagem. Já tinha saudades, na Neriquinha havia duches mas nada onde se pudesse mergulhar, nem perto nem longe. E num sítio onde as temperaturas são sempre elevadas, isso não é coisa que se possa descartar.
Naquela noite, dormi profundamente numa cama em tudo igual à da Neriquinha, só que esta não tinha percevejos. Só os mosquitos a tentar penetrar a barreira da rede mosquiteira, mas nada que me tirasse o sono como da primeira vez. O dia seguinte seria dedicado a procurar a mulher que me lavava a roupa e a rever os amigos que ali deixara.
2 comentários:
Se a memória não me falha,não foi
em 14 de Dezembro de 1975,menos de
um ano da vossa partida do Cuando-
Cubango,que toda a Região estava a
ferro e fogo com os confrontos en_
tre a África do Sul,o MPLA e os Cu_
banos?A batalha da ponte 14;a do
Okavango e a Operação Savannah?,ou
parte destes confrontos foram tra_
vados no kuito-Canaval.Provávlmente
estou a baralhar os factos.
Obrigado. Carlos Nabeiro.
Saímos da Neriquinha por alturas do mês de Abril de 1973, acabando o resto da comissão num local mais aprazível, factos que integrarão episódios que ainda iremos contar.
Pouco sabemos do que se passou depois de nós, especialmente depois de Abril de 1974 (regressámos a Lisboa a 6 de Janeiro de 1974).
Sabemos apenas, por notícias sobre a guerra civil, que a grande batalha entre o MPLA apoiado pelos Cubanos e a UNITA secundada pela África do Sul, se deu junto ao Rio Cuito, nas imediações do Cuito Cuanavale.
No Google Earth está uma fotogarfia minha da ponte sobre o Rio Cuito que terá sido destruída nessa batalha.
A Neriquinha foi entretanto abandonada e hoje apenas ali existirão algumas ruínas.
Enviar um comentário